A Rocinha não é nossa

19-11-2011
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1. A Rocinha é do Martins, que hoje comemora 65 anos, lá estarei. Conheci o Martins porque conheço o Manoel. Quem leia A Cidade Partida de Zuenir Ventura vai encontrar um arquitecto metido nas favelas e no funk dos anos 90, quando a polícia entrava para matar, como aconteceu no massacre de Vigário Geral (21 mortos). Esse arquitecto é o Manoel Ribeiro, e continua metido nas favelas, do Rio de Janeiro a Manaus. Merece uma crónica inteira, mas para já obrigada por me ter dito:

- Fala com o Martins.

Isto, no dia em que o Nem, chefe do tráfico na Rocinha, foi preso. Viram as imagens? Um homem atordoado, baixando a cabeça, enquanto polícias a toda a volta tentavam fotografá-lo com o telemóvel.

2. Depois da prisão de Nem, a revista Época publicou um texto assinado por Ruth de Aquino. Ela conta que, com intermediação de uma igreja da Rocinha, foi levada até ao chefe do tráfico no dia 4 de Novembro. Ele estava no campo de futebol da favela a apertar as chuteiras, tratou-a por senhora e não usou palavrões. Travaram "uma conversa de 30 minutos, em pé", sem gravador nem fotos, porque Nem não queria uma entrevista. Ela manteve "silêncio até sua prisão", e a seguir publicou "a reconstituição de um extrato da conversa". Não explica se tomou notas, mas espera-se que sim, porque o resto do texto é uma série de parágrafos entre aspas, com Nem a falar na primeira pessoa, tema a tema.

Sobre as UPP (Unidades de Polícia Pacificadora) que visam pôr fim ao poder armado do tráfico: "É um projeto excelente."

Sobre José Maria Beltrame, secretário de Segurança do Rio de Janeiro, rosto da política das UPP: "Um dos caras mais inteligentes que já vi. Se tivesse mais caras assim, tudo seria melhor."

Sobre fé: "Não vou para o inferno. Leio a Bíblia sempre, pergunto a meus filhos todo dia se foram à escola, tento impedir garotos de entrar no crime, dou dinheiro para comida, aluguel, escola, para sumir daqui."

Sobre tráfico: "Sei que dizem que entrei no tráfico por causa da minha filha. Ela tinha dez meses e uma doença raríssima, precisava colocar cateter, um troço caro, e o Lulu [ex-chefe] me emprestou o dinheiro. Mas prefiro dizer que entrei no tráfico porque entrei. E não compensa."

Sobre fé e tráfico: "É muito ruim a vida do crime. Eu e um monte queremos largar. Bom é poder ir à praia, ao cinema, passear com a família sem medo de ser perseguido ou morto. Queria dormir em paz. Levar meu filho ao zoológico."

Sobre droga: "Não uso droga, só bebo com os amigos. Acho que em menos de 20 anos a maconha vai ser liberada no Brasil. Nos Estados Unidos, está quase. Já pensou quanto as empresas iam lucrar? Iam engolir o tráfico. Não negocio crack e proíbo trazer crack para a Rocinha. Porque isso destrói as pessoas."

Sobre Lula: "Meu ídolo é o Lula. Adoro o Lula. Ele foi quem combateu o crime com mais sucesso. Por causa do PAC [Programa de Aceleração do Crescimento, que financiou vários projectos na Rocinha]. Cinquenta dos meus homens saíram do tráfico para trabalhar nas obras. Sabe quantos voltaram para o crime? Nenhum."

Sobre a polícia: "Pago muito por mês a policiais. Mas tenho mais policiais amigos do que policiais a quem eu pago. Eles sabem que eu digo: nada de atirar em policial que entra na favela. São todos pais de família, vêm para cá mandados, vão levar um tiro sem mais nem menos?"

3. Quatro dias depois da prisão de Nem, a polícia invadiu a Rocinha sem um tiro, enquanto eu, Martins e o seu amigo Devlin, andávamos ladeira acima, ladeira abaixo, entre os tanques e os carros do BOPE, a tropa de elite que deu nome aos filmes Tropa de Elite.

Era o que parecia, um filme, ou o ensaio para um filme, sem tiroteio nem tensão verdadeira. Um polícia de outro batalhão ainda nos tentou enxotar, mas os outros quase posavam para as fotografias do meu telemóvel.

Onde estava o poder paralelo que o poder policial ia substituir? Os tais 200 traficantes que chamavam a Nem "presidente", sendo que nem 15 tinham sido presos nos dias anteriores? Haviam partido, com o anúncio prévio da ocupação? Nem combinara com eles uma estratégia? Todos tinham combinado uma estratégia com a polícia?

Fosse como fosse, era tão perfeito como o desfecho de um roteiro, da Rocinha para o mundo: anuncia-se o cerco; o chefe do tráfico é preso a fugir no porta-bagagens de um carro; os polícias que o prendem recusam um suborno de um milhão e tornam-se heróis; à hora marcada os tanques sobem o morro, os homens do BOPE avançam pela mata, os helicópteros sobrevoam tudo; nenhum tiro, nenhuma resistência, nenhuma queixa por abuso policial, daqui até às favelas contíguas Vidigal e Chácara-do-Céu, agora também ocupadas.

4. Então na segunda-feira o Globo traz na capa: "A Rocinha é nossa." E logo por baixo: "Estado retoma três favelas e restabelece serviços a 100 mil moradores." São os termos que o Governo usa: "retomar", "restabelecer", como se o Estado lá tivesse estado alguma vez.

No dia em que o Manoel me falou no Martins, que foi o dia em que Nem foi preso, o Martins estava fora da Rocinha, a trabalhar. Mas falou-me da dona Elisa ao telefone, explicando-me como chegar a casa dela, bem no alto da Rocinha, por um caminho onde nem cabem motos. E dona Elisa explicou-me porque estava de luto: o Brasil era um país com elites corruptas, que abandonam comunidades inteiras, a começar pelos jovens.

Difícil não lhe dar razão: estávamos entre o quinto e o sexto ministro demitido por corrupção.

5. Quando estive em Brasília, há um mês, fui visitar o fabuloso cenário do Congresso, com as suas formas brancas, convexa e côncava: à esquerda o Senado, à direita a Câmara dos Deputados. Era uma quinta-feira, plena tarde de trabalho. Ambas as câmaras estavam a funcionar, com presidente de mesa, orador, quadros electrónicos. Mas na plateia do Senado havia apenas um senador presente. E na Câmara dos Deputados, apenas um deputado presente.

- Isto é comum? - perguntei ao simpático relações públicas que me acompanhava.

- Infelizmente sim - respondeu ele.

O salário no Congresso é de 26 mil reais (11 mil euros), o que dá mais de 50 salários mínimos brasileiros. Saúdo o cronista Francisco Bosco, que depois da ocupação da Rocinha fez a excepção no Globo ao escrever uma crónica chamada "Falta pacificar Brasília" (ontem secundada por outra excepção no tom geral, a crónica de Arthur Dapieve, "O traficante tranquilo").

Durante a visita, mostraram-me o gabinete de José Sarney, presidente do Congresso e ex-Presidente do Brasil. Tinha santinhos e potes de plástico com frutos secos. Aos 80 anos, Sarney continua a ditar ministros, enquanto mantém o domínio sobre o Maranhão, seu estado feudal.

O Brasil é um país de muitos poderes paralelos.

6. O traficante Nem era um poder paralelo na Rocinha, mas a Rocinha fazia tanto parte do sistema como Sarney. A Rocinha fazia parte do sistema porque dava às elites babás, engomadeiras, taxistas, além, claro, da maconha e da coca que se consome do Flamengo ao Leblon. Um sistema de "Cidade Partida" entre favela e asfalto, com os pobres no morro a servirem os ricos no asfalto. Na estranha não-entrevista à Época, Nem fala do tráfico como uma espécie de prisão, e essa prisão não sujeita só quem manda e tem as armas, mas os muitos milhares que têm de pagar e calar e ver as armas todos os dias. É a prisão gerada pela ausência de Estado, e claro que a partir daí o melhor que o Estado pode fazer é acabar com essa prisão. Não é direito do Estado, é dever.

Conto pelos dedos das mãos os cariocas que conheço que não fumam maconha. As ruas do Rio não enchem com manifestações contra a corrupção, mas enchem com manifestações pela liberalização da maconha. São estes consumidores que alimentam o tráfico, porque o tráfico vive de quem compra, e enquanto a maconha for ilegal não vai comprar de outra forma, alguma dúvida?

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7. Portanto, a Rocinha sempre foi de toda a gente, quanto a empregados baratos e droga fácil. Mas na hora de dormir na favela, no barraco, com chuva, de voltar de ônibus no engarrafamento, de subir a ladeira em mototáxis guiados por quase-crianças sem capacete, de contar os tostões para pôr as crianças na escola, manter as crianças na escola, manter as crianças fora do tráfico, fazer entrar as crianças no asfalto, nessa hora, a Rocinha é só de quem lá mora, e não sei se são 100 ou 400 mil.

É da dona Elisa, do Guilherme, do Lucas, da Miriam, da Sheila, do Tico, do Aurélio, do Martins e de todos os que lá comemoram aniversário, apesar de tudo.

Como todos os que não lá moram, de uma forma ou de outra, eu só lá vou comer bolo.

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1. A Rocinha é do Martins, que hoje comemora 65 anos, lá estarei. Conheci o Martins porque conheço o Manoel. Quem leia A Cidade Partida de Zuenir Ventura vai encontrar um arquitecto metido nas favelas e no funk dos anos 90, quando a polícia entrava para matar, como aconteceu no massacre de Vigário Geral (21 mortos). Esse arquitecto é o Manoel Ribeiro, e continua metido nas favelas, do Rio de Janeiro a Manaus. Merece uma crónica inteira, mas para já obrigada por me ter dito:

- Fala com o Martins.

Isto, no dia em que o Nem, chefe do tráfico na Rocinha, foi preso. Viram as imagens? Um homem atordoado, baixando a cabeça, enquanto polícias a toda a volta tentavam fotografá-lo com o telemóvel.

2. Depois da prisão de Nem, a revista Época publicou um texto assinado por Ruth de Aquino. Ela conta que, com intermediação de uma igreja da Rocinha, foi levada até ao chefe do tráfico no dia 4 de Novembro. Ele estava no campo de futebol da favela a apertar as chuteiras, tratou-a por senhora e não usou palavrões. Travaram "uma conversa de 30 minutos, em pé", sem gravador nem fotos, porque Nem não queria uma entrevista. Ela manteve "silêncio até sua prisão", e a seguir publicou "a reconstituição de um extrato da conversa". Não explica se tomou notas, mas espera-se que sim, porque o resto do texto é uma série de parágrafos entre aspas, com Nem a falar na primeira pessoa, tema a tema.

Sobre as UPP (Unidades de Polícia Pacificadora) que visam pôr fim ao poder armado do tráfico: "É um projeto excelente."

Sobre José Maria Beltrame, secretário de Segurança do Rio de Janeiro, rosto da política das UPP: "Um dos caras mais inteligentes que já vi. Se tivesse mais caras assim, tudo seria melhor."

Sobre fé: "Não vou para o inferno. Leio a Bíblia sempre, pergunto a meus filhos todo dia se foram à escola, tento impedir garotos de entrar no crime, dou dinheiro para comida, aluguel, escola, para sumir daqui."

Sobre tráfico: "Sei que dizem que entrei no tráfico por causa da minha filha. Ela tinha dez meses e uma doença raríssima, precisava colocar cateter, um troço caro, e o Lulu [ex-chefe] me emprestou o dinheiro. Mas prefiro dizer que entrei no tráfico porque entrei. E não compensa."

Sobre fé e tráfico: "É muito ruim a vida do crime. Eu e um monte queremos largar. Bom é poder ir à praia, ao cinema, passear com a família sem medo de ser perseguido ou morto. Queria dormir em paz. Levar meu filho ao zoológico."

Sobre droga: "Não uso droga, só bebo com os amigos. Acho que em menos de 20 anos a maconha vai ser liberada no Brasil. Nos Estados Unidos, está quase. Já pensou quanto as empresas iam lucrar? Iam engolir o tráfico. Não negocio crack e proíbo trazer crack para a Rocinha. Porque isso destrói as pessoas."

Sobre Lula: "Meu ídolo é o Lula. Adoro o Lula. Ele foi quem combateu o crime com mais sucesso. Por causa do PAC [Programa de Aceleração do Crescimento, que financiou vários projectos na Rocinha]. Cinquenta dos meus homens saíram do tráfico para trabalhar nas obras. Sabe quantos voltaram para o crime? Nenhum."

Sobre a polícia: "Pago muito por mês a policiais. Mas tenho mais policiais amigos do que policiais a quem eu pago. Eles sabem que eu digo: nada de atirar em policial que entra na favela. São todos pais de família, vêm para cá mandados, vão levar um tiro sem mais nem menos?"

3. Quatro dias depois da prisão de Nem, a polícia invadiu a Rocinha sem um tiro, enquanto eu, Martins e o seu amigo Devlin, andávamos ladeira acima, ladeira abaixo, entre os tanques e os carros do BOPE, a tropa de elite que deu nome aos filmes Tropa de Elite.

Era o que parecia, um filme, ou o ensaio para um filme, sem tiroteio nem tensão verdadeira. Um polícia de outro batalhão ainda nos tentou enxotar, mas os outros quase posavam para as fotografias do meu telemóvel.

Onde estava o poder paralelo que o poder policial ia substituir? Os tais 200 traficantes que chamavam a Nem "presidente", sendo que nem 15 tinham sido presos nos dias anteriores? Haviam partido, com o anúncio prévio da ocupação? Nem combinara com eles uma estratégia? Todos tinham combinado uma estratégia com a polícia?

Fosse como fosse, era tão perfeito como o desfecho de um roteiro, da Rocinha para o mundo: anuncia-se o cerco; o chefe do tráfico é preso a fugir no porta-bagagens de um carro; os polícias que o prendem recusam um suborno de um milhão e tornam-se heróis; à hora marcada os tanques sobem o morro, os homens do BOPE avançam pela mata, os helicópteros sobrevoam tudo; nenhum tiro, nenhuma resistência, nenhuma queixa por abuso policial, daqui até às favelas contíguas Vidigal e Chácara-do-Céu, agora também ocupadas.

4. Então na segunda-feira o Globo traz na capa: "A Rocinha é nossa." E logo por baixo: "Estado retoma três favelas e restabelece serviços a 100 mil moradores." São os termos que o Governo usa: "retomar", "restabelecer", como se o Estado lá tivesse estado alguma vez.

No dia em que o Manoel me falou no Martins, que foi o dia em que Nem foi preso, o Martins estava fora da Rocinha, a trabalhar. Mas falou-me da dona Elisa ao telefone, explicando-me como chegar a casa dela, bem no alto da Rocinha, por um caminho onde nem cabem motos. E dona Elisa explicou-me porque estava de luto: o Brasil era um país com elites corruptas, que abandonam comunidades inteiras, a começar pelos jovens.

Difícil não lhe dar razão: estávamos entre o quinto e o sexto ministro demitido por corrupção.

5. Quando estive em Brasília, há um mês, fui visitar o fabuloso cenário do Congresso, com as suas formas brancas, convexa e côncava: à esquerda o Senado, à direita a Câmara dos Deputados. Era uma quinta-feira, plena tarde de trabalho. Ambas as câmaras estavam a funcionar, com presidente de mesa, orador, quadros electrónicos. Mas na plateia do Senado havia apenas um senador presente. E na Câmara dos Deputados, apenas um deputado presente.

- Isto é comum? - perguntei ao simpático relações públicas que me acompanhava.

- Infelizmente sim - respondeu ele.

O salário no Congresso é de 26 mil reais (11 mil euros), o que dá mais de 50 salários mínimos brasileiros. Saúdo o cronista Francisco Bosco, que depois da ocupação da Rocinha fez a excepção no Globo ao escrever uma crónica chamada "Falta pacificar Brasília" (ontem secundada por outra excepção no tom geral, a crónica de Arthur Dapieve, "O traficante tranquilo").

Durante a visita, mostraram-me o gabinete de José Sarney, presidente do Congresso e ex-Presidente do Brasil. Tinha santinhos e potes de plástico com frutos secos. Aos 80 anos, Sarney continua a ditar ministros, enquanto mantém o domínio sobre o Maranhão, seu estado feudal.

O Brasil é um país de muitos poderes paralelos.

6. O traficante Nem era um poder paralelo na Rocinha, mas a Rocinha fazia tanto parte do sistema como Sarney. A Rocinha fazia parte do sistema porque dava às elites babás, engomadeiras, taxistas, além, claro, da maconha e da coca que se consome do Flamengo ao Leblon. Um sistema de "Cidade Partida" entre favela e asfalto, com os pobres no morro a servirem os ricos no asfalto. Na estranha não-entrevista à Época, Nem fala do tráfico como uma espécie de prisão, e essa prisão não sujeita só quem manda e tem as armas, mas os muitos milhares que têm de pagar e calar e ver as armas todos os dias. É a prisão gerada pela ausência de Estado, e claro que a partir daí o melhor que o Estado pode fazer é acabar com essa prisão. Não é direito do Estado, é dever.

Conto pelos dedos das mãos os cariocas que conheço que não fumam maconha. As ruas do Rio não enchem com manifestações contra a corrupção, mas enchem com manifestações pela liberalização da maconha. São estes consumidores que alimentam o tráfico, porque o tráfico vive de quem compra, e enquanto a maconha for ilegal não vai comprar de outra forma, alguma dúvida?

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7. Portanto, a Rocinha sempre foi de toda a gente, quanto a empregados baratos e droga fácil. Mas na hora de dormir na favela, no barraco, com chuva, de voltar de ônibus no engarrafamento, de subir a ladeira em mototáxis guiados por quase-crianças sem capacete, de contar os tostões para pôr as crianças na escola, manter as crianças na escola, manter as crianças fora do tráfico, fazer entrar as crianças no asfalto, nessa hora, a Rocinha é só de quem lá mora, e não sei se são 100 ou 400 mil.

É da dona Elisa, do Guilherme, do Lucas, da Miriam, da Sheila, do Tico, do Aurélio, do Martins e de todos os que lá comemoram aniversário, apesar de tudo.

Como todos os que não lá moram, de uma forma ou de outra, eu só lá vou comer bolo.

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