“Longe vão os pacíficos
dias de Agosto em que circular em Lisboa ainda era viver. Com o regresso às
aulas e as primeiras chuvadas, a capital voltou a transformar-se num inferno
motorizado.
Basta andar uma tarde
às voltas por Lisboa para se ficar doido. Mas doido varrido, daqueles do
terceiro grau, que já não são os doidos lúcidos do primeiro, que reconhecem o
seu estado demente e pedem para os levar ao médico. Nem sequer dos malucos de
segundo grau, os quais já sem capacidade para reconhecerem a sua demência, se
deixam pacificamente conduzir por amigos e familiares ao Senhor Doutor. Não,
nada disso. Refiro- me a ficar positivamente destemperado, desparafusado,
desnorteado, chanfrado, pírulas, entrando assim animadamente em voo directo e
picado para a loucura em último grau, aquela que põe a família inteira do
doente no hospício.
O melhor exemplo de
que o trânsito transtorna irremediavelmente a saúde mental dos portugueses é
essa famigerada raça que amaldiçoamos o ano inteiro, excepto nos dias em que o
carro foi para a revisão, ou um pneu se furou estupidamente numa tampa da EPAL
mal assente. Nesses raros dias, e só nesses raros dias, os toleramos porque precisamos deles.
Deixam temporariamente de ser os maiores bandidos para se tornarem os nossos
cavaleiros do apocalipse heróis do asfalto.
O taxista é por
definição um animal urbano, enraivecido pelo peões indisciplinados, pelos
sinais sempre fechados, pelos sentidos proibidos que passam a vida a ser
mudados, pelos clientes que nunca têm trocados, pelas crianças que deixam os
estofos borrados, mas e sobretudo pelos outros automobilistas que eles
consideram uns asnos acabados. E como todos os ódios cultivados, este também
não deixa de ser recíproco.
Mas a principal razão
que nos faz odiar estes homens além do seu aspecto pouco lavado e digno: unha
do dedo mindinho comprida, cabelo oleoso, barriga proeminente e umbigo atrevido
e peludo, cotovelo de fora e bronzeado à bimbo, é, em primeiro lugar o facto
deles serem muitos. Não é só a sua maneira arrogante de conduzir,
atravessando-se nas nossas barbas como se a direita estivesse sempre do lado
deles, ocupando duas faixas ou parando ostensivamente no eixo da via (como
dizem os instrutores), quando dois metros à frente até há uma paragem de
autocarro onde podiam ter encostado para nos deixar passar, etc, etc.
Tudo isso é mau, mas
não é o pior. O pior é que eles são muitos e estão em toda a parte. E quando o
inimigo é numeroso o melhor é desistir de o provocar ostensivamente, ou o
arrependimento chega depressa e afoito. Porque além de serem aos milhares,
então bem organizados e, ao contrário de muito boa gente, têm noção de classe. Não são um
sindicato. São uma mafia.
Porque os taxistas no
fundo são como as abelhas, com todos os defeitos destes voadores sem nenhuma
das suas qualidades: chateiam em separado, mas em conjunto podem matar.
O taxista é o
principal bastonário da lei natural do bom senso que diz que a união faz a
força e neste caso, a força bruta. Porque os ditos guerrilheiros urbanos, à
custa de passarem entre 10 a 12 horas por dia enjaulados no habitáculo (como
dizem os anúncios de automóveis), ficam em tudo semelhantes aos gorilas do Zoo
que fixam os nossos filhos com o olhar assassino dos animais destruídos pela
falta de liberdade, reduzidos a peças vivas de exposição. Tal como estes
primatas, o taxista, ser primário e espontâneo balanceia-se dentro da sua
jaula, gesticulando e grunhindo contra o mundo inteiro que, lá fora, vai
circulando em liberdade.”
Margarida Rebelo
Pinto
“OS GLORIOSOS MALUCOS
DAS MÁQUINAS MOTORAS”
In As crónicas da Margarida
“Longe vão os pacíficos
dias de Agosto em que circular em Lisboa ainda era viver. Com o regresso às
aulas e as primeiras chuvadas, a capital voltou a transformar-se num inferno
motorizado.
Basta andar uma tarde
às voltas por Lisboa para se ficar doido. Mas doido varrido, daqueles do
terceiro grau, que já não são os doidos lúcidos do primeiro, que reconhecem o
seu estado demente e pedem para os levar ao médico. Nem sequer dos malucos de
segundo grau, os quais já sem capacidade para reconhecerem a sua demência, se
deixam pacificamente conduzir por amigos e familiares ao Senhor Doutor. Não,
nada disso. Refiro- me a ficar positivamente destemperado, desparafusado,
desnorteado, chanfrado, pírulas, entrando assim animadamente em voo directo e
picado para a loucura em último grau, aquela que põe a família inteira do
doente no hospício.
O melhor exemplo de
que o trânsito transtorna irremediavelmente a saúde mental dos portugueses é
essa famigerada raça que amaldiçoamos o ano inteiro, excepto nos dias em que o
carro foi para a revisão, ou um pneu se furou estupidamente numa tampa da EPAL
mal assente. Nesses raros dias, e só nesses raros dias, os toleramos porque precisamos deles.
Deixam temporariamente de ser os maiores bandidos para se tornarem os nossos
cavaleiros do apocalipse heróis do asfalto.
O taxista é por
definição um animal urbano, enraivecido pelo peões indisciplinados, pelos
sinais sempre fechados, pelos sentidos proibidos que passam a vida a ser
mudados, pelos clientes que nunca têm trocados, pelas crianças que deixam os
estofos borrados, mas e sobretudo pelos outros automobilistas que eles
consideram uns asnos acabados. E como todos os ódios cultivados, este também
não deixa de ser recíproco.
Mas a principal razão
que nos faz odiar estes homens além do seu aspecto pouco lavado e digno: unha
do dedo mindinho comprida, cabelo oleoso, barriga proeminente e umbigo atrevido
e peludo, cotovelo de fora e bronzeado à bimbo, é, em primeiro lugar o facto
deles serem muitos. Não é só a sua maneira arrogante de conduzir,
atravessando-se nas nossas barbas como se a direita estivesse sempre do lado
deles, ocupando duas faixas ou parando ostensivamente no eixo da via (como
dizem os instrutores), quando dois metros à frente até há uma paragem de
autocarro onde podiam ter encostado para nos deixar passar, etc, etc.
Tudo isso é mau, mas
não é o pior. O pior é que eles são muitos e estão em toda a parte. E quando o
inimigo é numeroso o melhor é desistir de o provocar ostensivamente, ou o
arrependimento chega depressa e afoito. Porque além de serem aos milhares,
então bem organizados e, ao contrário de muito boa gente, têm noção de classe. Não são um
sindicato. São uma mafia.
Porque os taxistas no
fundo são como as abelhas, com todos os defeitos destes voadores sem nenhuma
das suas qualidades: chateiam em separado, mas em conjunto podem matar.
O taxista é o
principal bastonário da lei natural do bom senso que diz que a união faz a
força e neste caso, a força bruta. Porque os ditos guerrilheiros urbanos, à
custa de passarem entre 10 a 12 horas por dia enjaulados no habitáculo (como
dizem os anúncios de automóveis), ficam em tudo semelhantes aos gorilas do Zoo
que fixam os nossos filhos com o olhar assassino dos animais destruídos pela
falta de liberdade, reduzidos a peças vivas de exposição. Tal como estes
primatas, o taxista, ser primário e espontâneo balanceia-se dentro da sua
jaula, gesticulando e grunhindo contra o mundo inteiro que, lá fora, vai
circulando em liberdade.”
Margarida Rebelo
Pinto
“OS GLORIOSOS MALUCOS
DAS MÁQUINAS MOTORAS”
In As crónicas da Margarida