A televisão, a política e os comentadores

15-07-2011
marcar artigo

Um debate televisivo entre candidatos à liderança do maior partido da oposição é positivo para o espaço público. Deveriam ser mais? Francisco Assis desejava-os, António José Seguro não. Compreende-se ambos: Assis é melhor na expressão verbal (embora com alguma verborreia, porventura resultado do seu socratismo em excesso durante os últimos anos) e Seguro tem a língua emperrada (talvez por silêncio em excesso nos anos do socratismo).

O debate terá sido interessante para os militantes do PS, mas para os outros dez milhões de portugueses deveras aborrecido. Seguro falou em exclusivo para os militantes, a quem disse amar, amar, amar perdidamente, amar só por amar, aqui, além. Assis, menos próximo das famosas "bases", apela ao mundo exterior à rede das famosas "concelhias", prometendo à opinião pública amá-la, amá-la, amá-la perdidamente, etc. Seguro mexe-se bem no aparelho partidário, Assis no aparelho mediático, não sendo um acaso o apoio que recebe das estrelas televisivas do seu partido.

A linguagem jornalística a respeito do debate fez dele um acontecimento "único". Esta singularidade é espantosa, pois desde há anos que Seguro e Assis são presença assídua na TV - em debates televisivos. Quem acompanhe a TV informativa pode mesmo ter a impressão de que Assis e Seguro estão a debater em televisão, sem parar, há décadas.

Como na TV informativa de todo o mundo, as cabeças falantes são um elemento fundamental na SICN, TVI24 e RTPN. O que parece distinguir os canais portugueses é a enorme presença de deputados e dirigentes políticos nos painéis de debate ou como comentadores residentes. Há dirigentes, ex-dirigentes, "reservas" partidárias ou apenas "celebridades" políticas do PS, do PSD, do CDS, do PCP e do BE nos vários canais, sentando-se nos estúdios como representantes dos partidos ou, num eufemismo, da "área política". A RTP criou mesmo programas com "quotas" de deputados dos cinco partidos, reproduzindo o Parlamento em pequenino, e que são um aborrecimento estratosférico. Esses programas, como o Corredor do Poder, serviram à RTP para agradar aos partidos e assim conseguir a sua conivência no alimentar do monstro com "indemnizações compensatórias", aumentos de capital e da taxa.

Há uma característica comum às três empresas principais de TV: a sua relação próxima com o sistema político. O sistema político português tem uma poderosa orientação televisiva. A televisão está no centro da vida política. Há dezenas de dirigentes políticos comentando nela. Diversos dirigentes dos partidos foram criações ou criaturas do ecrã, como Santana Lopes e José Sócrates, que se defrontaram em eleições depois de se encontrarem nos estúdios.

A relação incestuosa entre a televisão e o sistema político tem o seu apogeu na contratação para comentadores por canais de TV de não menos de quatro antigos presidentes do PSD: Santana Lopes, Marques Mendes, Rebelo de Sousa e Luís Filipe Menezes. Não analiso hoje o interesse ou as qualidades comunicativas destes e doutros comentadores partidários, apenas constato o carácter estrutural da comunicação partidária na TV. Aos espectadores é dada uma visão de Portugal estruturada partidariamente.

O país é como o vêem, em conjunto, os cinco partidos parlamentares, em especial PS e PSD. Sendo os partidos essenciais no sistema político português, teriam de estar presentes nos canais informativos de TV. Mas o que temos é a redução da vida política à expressão televisiva partidária. Num ciclo vicioso, a televisão está refém do comentário partidarizado e os políticos e partidos estão reféns da televisão para existirem politicamente. A valorização da TV tem como contraponto a desvalorização (não apenas pelos partidos) da acção política parlamentar e em contacto directo com a sociedade, em instituições públicas, associações não-governamentais, empresas, etc.

A política tende a reduzir-se à expressão televisiva. Os seis anos de Sócrates foram o apogeu desta forma de fazer política, muito negativa para um país, qualquer que seja a orientação do Governo, pois não visa melhorar a vida colectiva mas alimentar-se a si mesma.

O Parlamento revela o predomínio da política como acção televisiva. No hemiciclo, muitos governantes e deputados comportam-se como se estivessem a falar apenas uns para os outros, não para o país que constitucionalmente representam. No final das sessões parlamentares, governantes e políticos apressam-se a falar para as câmaras nos corredores como se não tivessem estado a falar no hemiciclo para os portugueses. À saída das sessões, Sócrates falava sempre como se de passagem. Passos Coelho optou por institucionalizar esses momentos: no final das suas intervenções no Parlamento, há um microfone de pé à sua espera. Tem a vantagem de evitar atropelos de jornalistas eufóricos. Também os deputados dos diversos partidos institucionalizaram as declarações nos Passos Perdidos em exclusivo para os media.

Apesar de poderem ter de responder a perguntas que não lhes agradam, estas declarações extraparlamentares sobre sessões parlamentares substituem o debate parlamentar, dando a hegemonia discursiva a cada partido no final das sessões, quando já não há confronto de palavras com os adversários, essencial na vida democrática. Por este processo em que os porta-vozes partidários têm maior domínio da palavra, a comunicação televisiva sobrepõe-se à comunicação parlamentar. Paradoxalmente, a comunicação televisiva dos partidos no final dos debates parlamentares é antiparlamentar. Vários destes deputados "entrevistados" nos corredores de S. Bento aparecem depois como comentadores em canais de TV. Parecem estar mais tempo sentados nos estúdios do que no hemiciclo.

O melhor do Público no email Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Subscrever ×

A presença enorme de comentadores partidários na TV deriva, em parte, da debilidade da sociedade civil e da opinião pública. Não se criaram alternativas fortes no comentário, como noutros países. Além dos políticos encartados, os comentadores costumam vir de três áreas. Primeiro, os especialistas, como os de economia, que têm ocupado os canais desde que a crise se aproximou da catástrofe; na maioria, têm inculcado evidências que não eram vividas (o país é deficitário, etc.), mas também os pontos de vista do sistema financeiro português. Alguns defendiam a opção deficitária do anterior Governo, só tendo mudado à última hora. Apesar disso, continuam a perorar nos ecrãs como grandes sábios desse mundo para iniciados que supostamente é a economia.

Segundo, os jornalistas. Deveria haver mais jornalistas especializados no comentário, mantendo uma razoável independência, que lhes permita acrescentar perspectivas de entendimento da realidade pelos espectadores. Infelizmente, a televisão tem poucos jornalistas comentadores com credibilidade, insistindo em alguns que parecem demasiado dependentes de opiniões de partidos ou lobbies. Ora, para isso já existem os comentadores militantes e alguns dos especialistas em economia.

Terceiro, os académicos. A sua profissão é dominar instrumentos de análise para depois se debruçarem sobre a realidade, distanciando-se dela, o que os coloca numa posição de vantagem para revelar o invisível às pessoas sem essa formação. Acontece que alguns dos nossos académicos comentadores, em especial os agora chamados politólogos, têm receio de se comprometer com opiniões, o que torna as suas intervenções, em grande medida, inúteis. Os académicos, no seu trabalho académico, devem manter essa distância, mas no espaço público mediático espera-se que exprimam opiniões. Outros banalizam a sua presença, banalizando também o que dizem. Há excepções, mas raramente as televisões os destacam. Preferem os que se enquadram no sistema de opinião hegemónica acima descrito.

Um debate televisivo entre candidatos à liderança do maior partido da oposição é positivo para o espaço público. Deveriam ser mais? Francisco Assis desejava-os, António José Seguro não. Compreende-se ambos: Assis é melhor na expressão verbal (embora com alguma verborreia, porventura resultado do seu socratismo em excesso durante os últimos anos) e Seguro tem a língua emperrada (talvez por silêncio em excesso nos anos do socratismo).

O debate terá sido interessante para os militantes do PS, mas para os outros dez milhões de portugueses deveras aborrecido. Seguro falou em exclusivo para os militantes, a quem disse amar, amar, amar perdidamente, amar só por amar, aqui, além. Assis, menos próximo das famosas "bases", apela ao mundo exterior à rede das famosas "concelhias", prometendo à opinião pública amá-la, amá-la, amá-la perdidamente, etc. Seguro mexe-se bem no aparelho partidário, Assis no aparelho mediático, não sendo um acaso o apoio que recebe das estrelas televisivas do seu partido.

A linguagem jornalística a respeito do debate fez dele um acontecimento "único". Esta singularidade é espantosa, pois desde há anos que Seguro e Assis são presença assídua na TV - em debates televisivos. Quem acompanhe a TV informativa pode mesmo ter a impressão de que Assis e Seguro estão a debater em televisão, sem parar, há décadas.

Como na TV informativa de todo o mundo, as cabeças falantes são um elemento fundamental na SICN, TVI24 e RTPN. O que parece distinguir os canais portugueses é a enorme presença de deputados e dirigentes políticos nos painéis de debate ou como comentadores residentes. Há dirigentes, ex-dirigentes, "reservas" partidárias ou apenas "celebridades" políticas do PS, do PSD, do CDS, do PCP e do BE nos vários canais, sentando-se nos estúdios como representantes dos partidos ou, num eufemismo, da "área política". A RTP criou mesmo programas com "quotas" de deputados dos cinco partidos, reproduzindo o Parlamento em pequenino, e que são um aborrecimento estratosférico. Esses programas, como o Corredor do Poder, serviram à RTP para agradar aos partidos e assim conseguir a sua conivência no alimentar do monstro com "indemnizações compensatórias", aumentos de capital e da taxa.

Há uma característica comum às três empresas principais de TV: a sua relação próxima com o sistema político. O sistema político português tem uma poderosa orientação televisiva. A televisão está no centro da vida política. Há dezenas de dirigentes políticos comentando nela. Diversos dirigentes dos partidos foram criações ou criaturas do ecrã, como Santana Lopes e José Sócrates, que se defrontaram em eleições depois de se encontrarem nos estúdios.

A relação incestuosa entre a televisão e o sistema político tem o seu apogeu na contratação para comentadores por canais de TV de não menos de quatro antigos presidentes do PSD: Santana Lopes, Marques Mendes, Rebelo de Sousa e Luís Filipe Menezes. Não analiso hoje o interesse ou as qualidades comunicativas destes e doutros comentadores partidários, apenas constato o carácter estrutural da comunicação partidária na TV. Aos espectadores é dada uma visão de Portugal estruturada partidariamente.

O país é como o vêem, em conjunto, os cinco partidos parlamentares, em especial PS e PSD. Sendo os partidos essenciais no sistema político português, teriam de estar presentes nos canais informativos de TV. Mas o que temos é a redução da vida política à expressão televisiva partidária. Num ciclo vicioso, a televisão está refém do comentário partidarizado e os políticos e partidos estão reféns da televisão para existirem politicamente. A valorização da TV tem como contraponto a desvalorização (não apenas pelos partidos) da acção política parlamentar e em contacto directo com a sociedade, em instituições públicas, associações não-governamentais, empresas, etc.

A política tende a reduzir-se à expressão televisiva. Os seis anos de Sócrates foram o apogeu desta forma de fazer política, muito negativa para um país, qualquer que seja a orientação do Governo, pois não visa melhorar a vida colectiva mas alimentar-se a si mesma.

O Parlamento revela o predomínio da política como acção televisiva. No hemiciclo, muitos governantes e deputados comportam-se como se estivessem a falar apenas uns para os outros, não para o país que constitucionalmente representam. No final das sessões parlamentares, governantes e políticos apressam-se a falar para as câmaras nos corredores como se não tivessem estado a falar no hemiciclo para os portugueses. À saída das sessões, Sócrates falava sempre como se de passagem. Passos Coelho optou por institucionalizar esses momentos: no final das suas intervenções no Parlamento, há um microfone de pé à sua espera. Tem a vantagem de evitar atropelos de jornalistas eufóricos. Também os deputados dos diversos partidos institucionalizaram as declarações nos Passos Perdidos em exclusivo para os media.

Apesar de poderem ter de responder a perguntas que não lhes agradam, estas declarações extraparlamentares sobre sessões parlamentares substituem o debate parlamentar, dando a hegemonia discursiva a cada partido no final das sessões, quando já não há confronto de palavras com os adversários, essencial na vida democrática. Por este processo em que os porta-vozes partidários têm maior domínio da palavra, a comunicação televisiva sobrepõe-se à comunicação parlamentar. Paradoxalmente, a comunicação televisiva dos partidos no final dos debates parlamentares é antiparlamentar. Vários destes deputados "entrevistados" nos corredores de S. Bento aparecem depois como comentadores em canais de TV. Parecem estar mais tempo sentados nos estúdios do que no hemiciclo.

O melhor do Público no email Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Subscrever ×

A presença enorme de comentadores partidários na TV deriva, em parte, da debilidade da sociedade civil e da opinião pública. Não se criaram alternativas fortes no comentário, como noutros países. Além dos políticos encartados, os comentadores costumam vir de três áreas. Primeiro, os especialistas, como os de economia, que têm ocupado os canais desde que a crise se aproximou da catástrofe; na maioria, têm inculcado evidências que não eram vividas (o país é deficitário, etc.), mas também os pontos de vista do sistema financeiro português. Alguns defendiam a opção deficitária do anterior Governo, só tendo mudado à última hora. Apesar disso, continuam a perorar nos ecrãs como grandes sábios desse mundo para iniciados que supostamente é a economia.

Segundo, os jornalistas. Deveria haver mais jornalistas especializados no comentário, mantendo uma razoável independência, que lhes permita acrescentar perspectivas de entendimento da realidade pelos espectadores. Infelizmente, a televisão tem poucos jornalistas comentadores com credibilidade, insistindo em alguns que parecem demasiado dependentes de opiniões de partidos ou lobbies. Ora, para isso já existem os comentadores militantes e alguns dos especialistas em economia.

Terceiro, os académicos. A sua profissão é dominar instrumentos de análise para depois se debruçarem sobre a realidade, distanciando-se dela, o que os coloca numa posição de vantagem para revelar o invisível às pessoas sem essa formação. Acontece que alguns dos nossos académicos comentadores, em especial os agora chamados politólogos, têm receio de se comprometer com opiniões, o que torna as suas intervenções, em grande medida, inúteis. Os académicos, no seu trabalho académico, devem manter essa distância, mas no espaço público mediático espera-se que exprimam opiniões. Outros banalizam a sua presença, banalizando também o que dizem. Há excepções, mas raramente as televisões os destacam. Preferem os que se enquadram no sistema de opinião hegemónica acima descrito.

marcar artigo