Açores 2010

01-07-2011
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Casa tradicional japonesaA penumbra e a fronteira do olhar.“O Elogio da Sombra” é um livro do escritor japonês Jun’ichiro Tanizaki. Originalmente publicado em 1933 e traduzido para português há já alguns anos este é um livro que permanece actual na explicação de algumas diferenças entre a cultura oriental e a cultura ocidental.Uma das diferenças mais vincadas e interessantes prende-se com a forma como a luz é encarada na relação com o espaço, seja com a arquitectura, seja com os objectos.Enquanto que no Ocidente falamos em “aclarar” uma coisa, “trazendo-a à luz” de forma a evidenciar a sua beleza ou a torná-la “resplandecente”, no Oriente é a quantidade e o tipo de sombra, a sua espessura e a sua densidade, que a torna bela e única.Nos objectos evitam-se os brilhos e exaltam-se os reflexos. Não o espelhar cru e directo da luz (brilho) mas sim o reflexo profundo que absorvendo essa mesma luz, a devolve transformada pela persistência do uso e do tempo. O escuro lustro do repetido passar da mão numa madeira, o reflexo intrínseco e denso de uma laca na penumbra de uma sala, ou as simples folhas de papel que tradicionalmente recusam a acutilância das arestas direitas e do branco imaculado da superfície e se exaltam pela delicadeza da matéria (o papel tosco e quase húmido) e pela forma como esta absorve a luz e a tinta.Na arquitectura, o autor fala-nos da casa tradicional japonesa com os seus longos e baixos alpendres. Por virtude do clima e da natureza dos materiais de construção, evitando a chuva lateral e a destruição dos painéis de parede, os telhados avançam e cobrem as plataformas que fazem a transição com o exterior. A pouca luz que entra é então reflectida pela madeira dessas plataformas e é ainda filtrada por uns delicados painéis de tabique (shôji) que se forram de um papel esbranquiçado e configuram as divisões da casa.Como os painéis deslizam, a compartimentação do interior não é fixa e a sua posição adapta-se às necessidades do uso, mas também à forma de controlar a luz, coando-a por zonas ou camadas. Essa luz difusa define então aquilo a que se pode chamar uma cultura da penumbra. Não uma oposição tácita entre clareza e obscuridade, mas sim um diálogo subtil entre inúmeras sombras, mais e menos densas, mais e menos profundas, mais e menos demoradas.Na parte mais escura do centro da casa existe uma cavidade (tokonoma) que alberga a sombra maior. Aí, no coração do edifício, é geralmente disposto um arranjo floral, um objecto, ou uma pintura que com mais do que um propósito decorativo tenta dar maior profundidade à sombra envolvente.A arquitectura é sempre fruto da cultura e do tempo onde nasce. Nas igrejas ocidentais há sempre uma luz, vertical, que rasga a sombra e se faz impor (veja-se as grandes catedrais da Idade Média). Na arquitectura tradicional japonesa é a sombra que se sobrepõe à luz e num frágil equilíbrio, delicadamente, horizontaliza o espaço.No Japão feudal havia tecnologia e sentido em construir com madeira, papel e sombra, porém isso não é necessariamente válido para outras culturas e outros tempos. No entanto, o que é talvez mais curioso perceber, é o facto da sombra ser uma riquíssima matéria de trabalho, passível das mais subtis transformações.No século XX, Corbusier dizia “a arquitectura é um jogo de volumes sob a luz”. Na verdade o movimento moderno defendeu uma cultura tendencialmente ligada à luz e ao sol, uma cultura ligada ao mito higienista do pós-guerra, radicalmente novo, limpo e branco. Mas outros, porém, falaram de uma cultura do intermédio. Louis Khan dizia que a luz só era realmente percebida quando nela existia um pouco de sombra e que a verdadeira escuridão só era mensurável quando nela existia um pouco de luz.Mais do que mostrar, a penumbra esconde. Mais do que dizer, promete. Mais do que afastar, envolve. Na realidade o que a penumbra potencia é uma relação que transcende o olhar.A visão, que é o sentido que controla e investiga, é também quem separa, aparta e mede as distâncias. Ao esbater o olhar alertam-se os outros sentidos e na penumbra, o habitante deixa apenas de ser observador, para passar a interagir equilibradamente com todo o seu corpo.A penumbra induz à intimidade do tacto e à aproximação às coisas.Na arquitectura contemporânea, que vive num fascínio pelo aspecto, há uma hegemonia do olhar. Privilegia-se a visão sobre os outros sentidos, tanto na forma como a arquitectura é pensada, na perda do lado tectónico ou na perda de uma lógica do material, como na forma como é apreendida, assimilada apenas como imagem.Talvez a nossa percepção seja mais estimulante, subtil e acertiva se os nossos sentidos, em vez de uma reacção isolada, possam funcionar em conjunto e em harmonia.S.F.R.Publicado_Açoriano Oriental_08.07.2007


Casa tradicional japonesaA penumbra e a fronteira do olhar.“O Elogio da Sombra” é um livro do escritor japonês Jun’ichiro Tanizaki. Originalmente publicado em 1933 e traduzido para português há já alguns anos este é um livro que permanece actual na explicação de algumas diferenças entre a cultura oriental e a cultura ocidental.Uma das diferenças mais vincadas e interessantes prende-se com a forma como a luz é encarada na relação com o espaço, seja com a arquitectura, seja com os objectos.Enquanto que no Ocidente falamos em “aclarar” uma coisa, “trazendo-a à luz” de forma a evidenciar a sua beleza ou a torná-la “resplandecente”, no Oriente é a quantidade e o tipo de sombra, a sua espessura e a sua densidade, que a torna bela e única.Nos objectos evitam-se os brilhos e exaltam-se os reflexos. Não o espelhar cru e directo da luz (brilho) mas sim o reflexo profundo que absorvendo essa mesma luz, a devolve transformada pela persistência do uso e do tempo. O escuro lustro do repetido passar da mão numa madeira, o reflexo intrínseco e denso de uma laca na penumbra de uma sala, ou as simples folhas de papel que tradicionalmente recusam a acutilância das arestas direitas e do branco imaculado da superfície e se exaltam pela delicadeza da matéria (o papel tosco e quase húmido) e pela forma como esta absorve a luz e a tinta.Na arquitectura, o autor fala-nos da casa tradicional japonesa com os seus longos e baixos alpendres. Por virtude do clima e da natureza dos materiais de construção, evitando a chuva lateral e a destruição dos painéis de parede, os telhados avançam e cobrem as plataformas que fazem a transição com o exterior. A pouca luz que entra é então reflectida pela madeira dessas plataformas e é ainda filtrada por uns delicados painéis de tabique (shôji) que se forram de um papel esbranquiçado e configuram as divisões da casa.Como os painéis deslizam, a compartimentação do interior não é fixa e a sua posição adapta-se às necessidades do uso, mas também à forma de controlar a luz, coando-a por zonas ou camadas. Essa luz difusa define então aquilo a que se pode chamar uma cultura da penumbra. Não uma oposição tácita entre clareza e obscuridade, mas sim um diálogo subtil entre inúmeras sombras, mais e menos densas, mais e menos profundas, mais e menos demoradas.Na parte mais escura do centro da casa existe uma cavidade (tokonoma) que alberga a sombra maior. Aí, no coração do edifício, é geralmente disposto um arranjo floral, um objecto, ou uma pintura que com mais do que um propósito decorativo tenta dar maior profundidade à sombra envolvente.A arquitectura é sempre fruto da cultura e do tempo onde nasce. Nas igrejas ocidentais há sempre uma luz, vertical, que rasga a sombra e se faz impor (veja-se as grandes catedrais da Idade Média). Na arquitectura tradicional japonesa é a sombra que se sobrepõe à luz e num frágil equilíbrio, delicadamente, horizontaliza o espaço.No Japão feudal havia tecnologia e sentido em construir com madeira, papel e sombra, porém isso não é necessariamente válido para outras culturas e outros tempos. No entanto, o que é talvez mais curioso perceber, é o facto da sombra ser uma riquíssima matéria de trabalho, passível das mais subtis transformações.No século XX, Corbusier dizia “a arquitectura é um jogo de volumes sob a luz”. Na verdade o movimento moderno defendeu uma cultura tendencialmente ligada à luz e ao sol, uma cultura ligada ao mito higienista do pós-guerra, radicalmente novo, limpo e branco. Mas outros, porém, falaram de uma cultura do intermédio. Louis Khan dizia que a luz só era realmente percebida quando nela existia um pouco de sombra e que a verdadeira escuridão só era mensurável quando nela existia um pouco de luz.Mais do que mostrar, a penumbra esconde. Mais do que dizer, promete. Mais do que afastar, envolve. Na realidade o que a penumbra potencia é uma relação que transcende o olhar.A visão, que é o sentido que controla e investiga, é também quem separa, aparta e mede as distâncias. Ao esbater o olhar alertam-se os outros sentidos e na penumbra, o habitante deixa apenas de ser observador, para passar a interagir equilibradamente com todo o seu corpo.A penumbra induz à intimidade do tacto e à aproximação às coisas.Na arquitectura contemporânea, que vive num fascínio pelo aspecto, há uma hegemonia do olhar. Privilegia-se a visão sobre os outros sentidos, tanto na forma como a arquitectura é pensada, na perda do lado tectónico ou na perda de uma lógica do material, como na forma como é apreendida, assimilada apenas como imagem.Talvez a nossa percepção seja mais estimulante, subtil e acertiva se os nossos sentidos, em vez de uma reacção isolada, possam funcionar em conjunto e em harmonia.S.F.R.Publicado_Açoriano Oriental_08.07.2007

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