gravidade intermedia: cala-te besugo

30-06-2011
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Já passaram uns dias, dois ou três, mas a entrevista de Miguel Sousa Tavares a Ana Jorge, que não vi na íntegra, levantou poeira que importa assentar bem. Não há nenhum SNS que funcione ao gosto de Miguel Sousa Tavares (nem ao gosto de quem quer que seja) quando está a ser passado a patacos. Quando resiste cada vez pior, contra ventos e marés gerados por linguajares desonestos, ao seu desmantelamento. Que algumas pessoas critiquem (abaixando-o) o SNS, quase três décadas depois de terem assistido, praticamente sempre naquela postura impávida que costumamos atribuir às galinhas, aos preliminares do seu fim, chega a ser tenebroso.Miguel Sousa Tavares, que atravessa - aparentemente - uma fase da sua vida em que os simbolismos se lhe impõem, de forma decisiva, à razão (e isto não significa que eu menospreze os simbolismos, quem me conhece, aliás, sabe que os acolho relativamente bem), propôs que um dos problemas do SNS é o facto (que Ana Jorge, na sua cada vez menos pediátrica sensibilidade, confirmou de "caras") de "os médicos pedirem demasiados exames" e, cumulando tudo, a realidade (pelo menos para ambos, e condenável) de "haver médicos que não fazem um diagnóstico sem uma TAC".Meus amigos, esta merda chateia-me, eu nem sequer devia falar aqui sobre assuntos destes, mas lamento muito: há coisas que se impõem mesmo à nossa maior vontade de não derramar excrescências de ostras sobre a suinicultura.- Andam a destroçar o SNS, a misturá-lo e quase a conspurcá-lo de alto a baixo com o SPP (Sistema Privadex Privadíssimo), desde que Gonelha abriu as portas a Beleza. É desde aí que a coisa vem, acontece apenas que foi prosseguindo, com maior ou menor hipocrisia.- Andam a discutir o SNS como se ele se pudesse defender das sucessivas implosõezinhas com que o têm detonado.- E querem ainda mais poupança.Ora bem.Isto mete-me uma espécie de nojo essencial. Mal ou bem, para mim bem, o SNS é a minha dama desde que me formei, desde que me iniciei no Hospital de São João nas artes de ser médico, desde que passei pelo Hospital de Ponta Delgada e aprendi que a pedra de toque do acto de aprender é a angústia de não saber e ter, ainda assim, de saber rapidamente decidir, desde que me especializei no C.H. Gaia - onde sobrevivi a uma formação feita de exigências sem rede por baixo -, desde que vim para aqui, para estes montes, há 15 anos.Nunca trabalhei sem ser para o SNS. Em dedicação exclusiva. Pode haver quem me diga, perante isto, que sou um jerico. Que, das duas uma, ou ninguém me quis no SPP, por ser inepto, ou que escolhi apenas muito mal as velas da minha piroga (sonhei sempre com uma piroga que tivesse velas e sinto-me, aliás, navegante duma). Escutar de Sousa Tavares ( com a cumplicidade emetizante de Ana Jorge) que "os médicos parece que já não fazem um diagnóstico sem pedir TACs", é irritante.Uma gripe, uma pneumonia não complicada, um torcicolo, uma flatulència, uma gota aguda, um enfarte do miocárdio, um "mero caralho inflamado" - não carecem de TACs.Mas - e só deixo aqui escassos exemplos, para não entediar quem me lê muito mais do que eu próprio já estou - um AVC ( e são tantos, Miguelito e Ana, tantos AVCs que há), um cancro (e são tantinhos, ó amiguinhos Miguel e Aninhas) e toda uma plêiade de traumas e de disfunções agudas, subagudas e crónicas, valha-me Deus, tudo isto exige TACs, endoscopias, ecografias e dedos no cu (que é um exame barato para qualquer filho da puta que não tenha de o sentir ou que, sentindo-o, faça gosto nisso).É claro que eu entendo o que está por detrás disto. É a sugestão velada de que os médicos tendem a fazer uma medicina defensiva, salvaguardando-se com TACs e outras artes de complementaridade examinadora dos utentíssimos queixumes, de processos. Isto será sempre falso. Todos os médicos sabem, desde cedo, que serão alvo de processos algures entre a primeira e a milionésima morte que assistam, assistam a ela ou não: um mau desfecho significa, sempre, uma suspeição a mais. Aproveito para agredecer o bom serviço que Ana Jorge me prestou (Sousa Tavares aborda todos os assuntos como se estivesse a discutir pontos de mira para andar aos coelhos, nem conta para isto) ao corroborar que "os médicos pedem, de facto, exames a mais". Sabe o que lhe digo, Senhora Doutora Pediatra Ana Jorge? Que o seu ministério, as suas admininistrações, os seus directores clínicos, todos em conjunto e assinando todos por baixo - isto é importante, porque a questão é poupar e a poupança deve ser promovida e credibilizada de cima, ou seja, assine a senhora também isto que lhe vou dizer - elaborem "guidelines", procedimentos obrigatórios, resmas de normas de bons procedimentos sob os Vossos Excelsos Pontos de Vista. Faça isso. Promova isso. Que é para quando eu e os restantes (poucos) animais estúpidos que nos deixamos ficar no SNS, sentindo as mãos limpinhas das promiscuidades que todos os dias nos assediam, sentirmos na pele as acusações de quem desconfia da nossa (que é vossa) "economia", podermos responder que "olhe, dirija-se a quem definiu estas normas poupadoras, não a mim - que apenas as cumpri".Puta que pariu, contudo: eu ainda acho que não as cumpriria, de qualquer maneira.


Já passaram uns dias, dois ou três, mas a entrevista de Miguel Sousa Tavares a Ana Jorge, que não vi na íntegra, levantou poeira que importa assentar bem. Não há nenhum SNS que funcione ao gosto de Miguel Sousa Tavares (nem ao gosto de quem quer que seja) quando está a ser passado a patacos. Quando resiste cada vez pior, contra ventos e marés gerados por linguajares desonestos, ao seu desmantelamento. Que algumas pessoas critiquem (abaixando-o) o SNS, quase três décadas depois de terem assistido, praticamente sempre naquela postura impávida que costumamos atribuir às galinhas, aos preliminares do seu fim, chega a ser tenebroso.Miguel Sousa Tavares, que atravessa - aparentemente - uma fase da sua vida em que os simbolismos se lhe impõem, de forma decisiva, à razão (e isto não significa que eu menospreze os simbolismos, quem me conhece, aliás, sabe que os acolho relativamente bem), propôs que um dos problemas do SNS é o facto (que Ana Jorge, na sua cada vez menos pediátrica sensibilidade, confirmou de "caras") de "os médicos pedirem demasiados exames" e, cumulando tudo, a realidade (pelo menos para ambos, e condenável) de "haver médicos que não fazem um diagnóstico sem uma TAC".Meus amigos, esta merda chateia-me, eu nem sequer devia falar aqui sobre assuntos destes, mas lamento muito: há coisas que se impõem mesmo à nossa maior vontade de não derramar excrescências de ostras sobre a suinicultura.- Andam a destroçar o SNS, a misturá-lo e quase a conspurcá-lo de alto a baixo com o SPP (Sistema Privadex Privadíssimo), desde que Gonelha abriu as portas a Beleza. É desde aí que a coisa vem, acontece apenas que foi prosseguindo, com maior ou menor hipocrisia.- Andam a discutir o SNS como se ele se pudesse defender das sucessivas implosõezinhas com que o têm detonado.- E querem ainda mais poupança.Ora bem.Isto mete-me uma espécie de nojo essencial. Mal ou bem, para mim bem, o SNS é a minha dama desde que me formei, desde que me iniciei no Hospital de São João nas artes de ser médico, desde que passei pelo Hospital de Ponta Delgada e aprendi que a pedra de toque do acto de aprender é a angústia de não saber e ter, ainda assim, de saber rapidamente decidir, desde que me especializei no C.H. Gaia - onde sobrevivi a uma formação feita de exigências sem rede por baixo -, desde que vim para aqui, para estes montes, há 15 anos.Nunca trabalhei sem ser para o SNS. Em dedicação exclusiva. Pode haver quem me diga, perante isto, que sou um jerico. Que, das duas uma, ou ninguém me quis no SPP, por ser inepto, ou que escolhi apenas muito mal as velas da minha piroga (sonhei sempre com uma piroga que tivesse velas e sinto-me, aliás, navegante duma). Escutar de Sousa Tavares ( com a cumplicidade emetizante de Ana Jorge) que "os médicos parece que já não fazem um diagnóstico sem pedir TACs", é irritante.Uma gripe, uma pneumonia não complicada, um torcicolo, uma flatulència, uma gota aguda, um enfarte do miocárdio, um "mero caralho inflamado" - não carecem de TACs.Mas - e só deixo aqui escassos exemplos, para não entediar quem me lê muito mais do que eu próprio já estou - um AVC ( e são tantos, Miguelito e Ana, tantos AVCs que há), um cancro (e são tantinhos, ó amiguinhos Miguel e Aninhas) e toda uma plêiade de traumas e de disfunções agudas, subagudas e crónicas, valha-me Deus, tudo isto exige TACs, endoscopias, ecografias e dedos no cu (que é um exame barato para qualquer filho da puta que não tenha de o sentir ou que, sentindo-o, faça gosto nisso).É claro que eu entendo o que está por detrás disto. É a sugestão velada de que os médicos tendem a fazer uma medicina defensiva, salvaguardando-se com TACs e outras artes de complementaridade examinadora dos utentíssimos queixumes, de processos. Isto será sempre falso. Todos os médicos sabem, desde cedo, que serão alvo de processos algures entre a primeira e a milionésima morte que assistam, assistam a ela ou não: um mau desfecho significa, sempre, uma suspeição a mais. Aproveito para agredecer o bom serviço que Ana Jorge me prestou (Sousa Tavares aborda todos os assuntos como se estivesse a discutir pontos de mira para andar aos coelhos, nem conta para isto) ao corroborar que "os médicos pedem, de facto, exames a mais". Sabe o que lhe digo, Senhora Doutora Pediatra Ana Jorge? Que o seu ministério, as suas admininistrações, os seus directores clínicos, todos em conjunto e assinando todos por baixo - isto é importante, porque a questão é poupar e a poupança deve ser promovida e credibilizada de cima, ou seja, assine a senhora também isto que lhe vou dizer - elaborem "guidelines", procedimentos obrigatórios, resmas de normas de bons procedimentos sob os Vossos Excelsos Pontos de Vista. Faça isso. Promova isso. Que é para quando eu e os restantes (poucos) animais estúpidos que nos deixamos ficar no SNS, sentindo as mãos limpinhas das promiscuidades que todos os dias nos assediam, sentirmos na pele as acusações de quem desconfia da nossa (que é vossa) "economia", podermos responder que "olhe, dirija-se a quem definiu estas normas poupadoras, não a mim - que apenas as cumpri".Puta que pariu, contudo: eu ainda acho que não as cumpriria, de qualquer maneira.

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