Ciberjus: O enorme talento de Pacheco (VI)

20-01-2012
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Nas cadeiras do governo, Pacheco rarissimamente surdia do seu silêncio repleto e fecundo. Às vezes, porém, quando a oposição se tornava clamorosa, Pacheco descerrava o braço, tomava com lentidão uma nota a lápis: e esta nota, traçada com saber e maduríssimo pensar, bastava para perturbar, acuar a oposição. É que o imenso talento de Pacheco terminara por inspirar, nas câmaras, nas comissões, nos centros, um terror disciplinar! Ai desse sobre quem viesse a desabar, com cólera, aquele talento imenso! Certa lhe seria a humilhação irresgatável! Assim dolorosissimamente o experimentou o pedagogista, que um dia se arrojou a acusar o Sr. Ministro do Reino ( Pacheco dirigia então o Reino) de descurar a Instrução do País! Nenhuma incriminação podia ser mais sensível àquele imenso espírito que, na sua frase lapidária e suculenta, ensinara que «um povo sem o curso dos liceus é um povo incompleto». Espetando o dedo (jeito sempre tão seu) Pacheco esborrachou o homem temerário com esta coisa tremenda: «Ao ilustre deputado que me censura só tenho a dizer que enquanto, sobre questõesde Instrucão Pública, S. Ex.a, aí nessas bancadas, faz berreiro, eu, aqui nesta cadeira, faço luz!» Eu estava lá, nesse esplêndido momento, na galeria. E não me recordo de ter jamais ouvido, numa assembleia humana, uma tão apaixonada e fervente rajada de aclamações! Creio que foi daí a dias que Pacheco recebeu a grã-cruz da Ordem de Santiago.O imenso talento de Pacheco pouco a pouco se tornava um credo nacional. Vendo que inabalável apoio esse imenso talento dava às instituições que servia, todas o apeteceram. Pacheco começou a ser um Director universal de Companhias e de Bancos. Cobiçado pela Coroa, penetrou no Conselho de Estado. O seu partido reclamou avidamente que Pacheco fosse seu Chefe. Mas os outros partidos cada dia se socorriam, com submissa reverência, do seu imenso talento. Em Pacheco, pouco a pouco se concentrava a Nação.À maneira que ele assim envelhecia, e crescia em influência e dignidades, a adminação pelo seu imenso talento chegou a tomar no País certas formas de expressão só próprias da religião e do amor. Quando ele foi Presidente do Conselho, havia devotos que espalmavam a mão no peito com unção, reviravam o branco do olho ao Céu, para murmurar piamente: «Que talento!» E havia amorosos que, cerrando os olhos e repenicando um beijo nas pontas apinhadas dos dedos, balbuciavam com langor: «Ai!que talento!» E, para que o esconder? Outros havia, a quem aquele imenso talento amargamente irritava, como um excessivo e desproporcional privilégio. A esses ouvi eu bradar com furor, atirando patadas ao chão: «Irra, que é ter talento de mais!» Pacheco no entanto já não falava. Sorria apenas. A testa cada vez se lhe tornava mais vasta. (continua)_________________________________Eça de Queirós - A correspondência de Fradique Mendes

Nas cadeiras do governo, Pacheco rarissimamente surdia do seu silêncio repleto e fecundo. Às vezes, porém, quando a oposição se tornava clamorosa, Pacheco descerrava o braço, tomava com lentidão uma nota a lápis: e esta nota, traçada com saber e maduríssimo pensar, bastava para perturbar, acuar a oposição. É que o imenso talento de Pacheco terminara por inspirar, nas câmaras, nas comissões, nos centros, um terror disciplinar! Ai desse sobre quem viesse a desabar, com cólera, aquele talento imenso! Certa lhe seria a humilhação irresgatável! Assim dolorosissimamente o experimentou o pedagogista, que um dia se arrojou a acusar o Sr. Ministro do Reino ( Pacheco dirigia então o Reino) de descurar a Instrução do País! Nenhuma incriminação podia ser mais sensível àquele imenso espírito que, na sua frase lapidária e suculenta, ensinara que «um povo sem o curso dos liceus é um povo incompleto». Espetando o dedo (jeito sempre tão seu) Pacheco esborrachou o homem temerário com esta coisa tremenda: «Ao ilustre deputado que me censura só tenho a dizer que enquanto, sobre questõesde Instrucão Pública, S. Ex.a, aí nessas bancadas, faz berreiro, eu, aqui nesta cadeira, faço luz!» Eu estava lá, nesse esplêndido momento, na galeria. E não me recordo de ter jamais ouvido, numa assembleia humana, uma tão apaixonada e fervente rajada de aclamações! Creio que foi daí a dias que Pacheco recebeu a grã-cruz da Ordem de Santiago.O imenso talento de Pacheco pouco a pouco se tornava um credo nacional. Vendo que inabalável apoio esse imenso talento dava às instituições que servia, todas o apeteceram. Pacheco começou a ser um Director universal de Companhias e de Bancos. Cobiçado pela Coroa, penetrou no Conselho de Estado. O seu partido reclamou avidamente que Pacheco fosse seu Chefe. Mas os outros partidos cada dia se socorriam, com submissa reverência, do seu imenso talento. Em Pacheco, pouco a pouco se concentrava a Nação.À maneira que ele assim envelhecia, e crescia em influência e dignidades, a adminação pelo seu imenso talento chegou a tomar no País certas formas de expressão só próprias da religião e do amor. Quando ele foi Presidente do Conselho, havia devotos que espalmavam a mão no peito com unção, reviravam o branco do olho ao Céu, para murmurar piamente: «Que talento!» E havia amorosos que, cerrando os olhos e repenicando um beijo nas pontas apinhadas dos dedos, balbuciavam com langor: «Ai!que talento!» E, para que o esconder? Outros havia, a quem aquele imenso talento amargamente irritava, como um excessivo e desproporcional privilégio. A esses ouvi eu bradar com furor, atirando patadas ao chão: «Irra, que é ter talento de mais!» Pacheco no entanto já não falava. Sorria apenas. A testa cada vez se lhe tornava mais vasta. (continua)_________________________________Eça de Queirós - A correspondência de Fradique Mendes

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