A cegueira selectiva do Fisco

02-11-2014
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A cegueira selectiva do Fisco

Bruno Faria Lopes

29 Out 2014

É possível que o Estado que trata com gentileza quem ocultou milhões lá fora execute penhoras de casas por dívidas fiscais de dois mil euros?

É possível que o Estado que oferece uma multa de amigo às pessoas que ocultaram milhões de euros no estrangeiro, que os isenta de responsabilidades criminais e que ainda tem atenção suficiente para lhes proteger a identidade, é possível, dizia eu, que este mesmo Estado execute penhoras da única casa de quem deve dois mil euros ao Fisco e já tem o magro salário penhorado? É possível - e acontece em Portugal.

É possível que o Estado que bloqueia o direito de recurso de decisões judiciais em processos fiscais até cinco mil euros seja o mesmo Estado que, por outro lado, executa a penhora de uma casa por causa de uma dívida de cinco mil euros - ficando, de caminho, o contribuinte ainda a dever não só ao Fisco, mas também ao banco que lhe fez o crédito habitação? É possível - e acontece em Portugal.

Os dois casos de penhora acima descritos foram noticiados pelo Diário Económico pela jornalista Marta Marques Silva - um deles na edição de hoje (ver página 14).A limitação do direito de recurso dos contribuintes e o programade perdão fiscal também são reais. No seu conjunto ilustram comopor trás da bandeira política do cumprimento das obrigações fiscais se escondem enormes injustiçasna forma como a Administração Fiscal trata muitos cidadãos.

Isto acontece porque o desígnio da máquina fiscal continua a ser apenas um: arrecadar receita. Se para encher os cofres é preciso um perdão fiscal com direito a anonimato - vejam como o Fisco alemão recusou essa pretensão ao influente presidente do Bayern de Munique - faça-se. Se para cobrar mais for preciso executar penhoras cegas sobre imóveis cujos credores preferenciais são os bancos - levando o Fisco a encaixar apenas 5% do produto da venda da casa, segundo valores do Tribunal de Contas - faça-se.

Oproblema é que a caminho da "cobrança recorde" perdem-se coisas muito importantes.

Por um lado, perde-se a mais elementar justiça fiscal. Os perdões não deveriam funcionar estritamente em função do dinheiro que o Estado consegue arrecadar com eles - sobretudo quando acabam por premiar a má conduta de pessoas mais influentes e protegidas.

Por outro, perde-se o pudor. Percebo que a publicação de dados sobre penhoras sirva para dissuadir ou pressionar os devedores, mas é estranho ver políticos comunicarem com triunfalismo números recorde de penhoras. Ninguém deveria gostar de aparecer ao lado destes números. (Uma pergunta ao Governo de Passos Coelho: a Segurança Social deixou em 2012 de vender casas penhoradas para defender "a dignidade da pessoa e o seu direito à habitação" - o Fisco está dispensado de respeitar este direito?).

O combate à fraude e à evasão tem conseguido mudanças importantes de atitude - vejam como nos pedem o número de contribuinte em restaurantes e bombas de gasolina sem termos que abrir a boca. Ao impedirque só alguns contribuam para o Estado este combate é, sem si mesmo, uma questão de justiça. Mas não deve servir para violar selectivamente os direitos básicos de alguns e dar borlas selectivas a outros, corroendo valores essenciais. Sob pressão, os contribuintes começaram há algum tempo a mudar de atitude - é agora a vez do poder político, Governo e partidos com assento parlamentar, mudarem a postura da Autoridade Tributária.

A cegueira selectiva do Fisco

Bruno Faria Lopes

29 Out 2014

É possível que o Estado que trata com gentileza quem ocultou milhões lá fora execute penhoras de casas por dívidas fiscais de dois mil euros?

É possível que o Estado que oferece uma multa de amigo às pessoas que ocultaram milhões de euros no estrangeiro, que os isenta de responsabilidades criminais e que ainda tem atenção suficiente para lhes proteger a identidade, é possível, dizia eu, que este mesmo Estado execute penhoras da única casa de quem deve dois mil euros ao Fisco e já tem o magro salário penhorado? É possível - e acontece em Portugal.

É possível que o Estado que bloqueia o direito de recurso de decisões judiciais em processos fiscais até cinco mil euros seja o mesmo Estado que, por outro lado, executa a penhora de uma casa por causa de uma dívida de cinco mil euros - ficando, de caminho, o contribuinte ainda a dever não só ao Fisco, mas também ao banco que lhe fez o crédito habitação? É possível - e acontece em Portugal.

Os dois casos de penhora acima descritos foram noticiados pelo Diário Económico pela jornalista Marta Marques Silva - um deles na edição de hoje (ver página 14).A limitação do direito de recurso dos contribuintes e o programade perdão fiscal também são reais. No seu conjunto ilustram comopor trás da bandeira política do cumprimento das obrigações fiscais se escondem enormes injustiçasna forma como a Administração Fiscal trata muitos cidadãos.

Isto acontece porque o desígnio da máquina fiscal continua a ser apenas um: arrecadar receita. Se para encher os cofres é preciso um perdão fiscal com direito a anonimato - vejam como o Fisco alemão recusou essa pretensão ao influente presidente do Bayern de Munique - faça-se. Se para cobrar mais for preciso executar penhoras cegas sobre imóveis cujos credores preferenciais são os bancos - levando o Fisco a encaixar apenas 5% do produto da venda da casa, segundo valores do Tribunal de Contas - faça-se.

Oproblema é que a caminho da "cobrança recorde" perdem-se coisas muito importantes.

Por um lado, perde-se a mais elementar justiça fiscal. Os perdões não deveriam funcionar estritamente em função do dinheiro que o Estado consegue arrecadar com eles - sobretudo quando acabam por premiar a má conduta de pessoas mais influentes e protegidas.

Por outro, perde-se o pudor. Percebo que a publicação de dados sobre penhoras sirva para dissuadir ou pressionar os devedores, mas é estranho ver políticos comunicarem com triunfalismo números recorde de penhoras. Ninguém deveria gostar de aparecer ao lado destes números. (Uma pergunta ao Governo de Passos Coelho: a Segurança Social deixou em 2012 de vender casas penhoradas para defender "a dignidade da pessoa e o seu direito à habitação" - o Fisco está dispensado de respeitar este direito?).

O combate à fraude e à evasão tem conseguido mudanças importantes de atitude - vejam como nos pedem o número de contribuinte em restaurantes e bombas de gasolina sem termos que abrir a boca. Ao impedirque só alguns contribuam para o Estado este combate é, sem si mesmo, uma questão de justiça. Mas não deve servir para violar selectivamente os direitos básicos de alguns e dar borlas selectivas a outros, corroendo valores essenciais. Sob pressão, os contribuintes começaram há algum tempo a mudar de atitude - é agora a vez do poder político, Governo e partidos com assento parlamentar, mudarem a postura da Autoridade Tributária.

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