Escritos do Douro: A Pousa

30-06-2011
marcar artigo


Quando, no lagar, as uvas chegavam ao ponto em que a prática de muitos anos o considerava cheio, antecipando cálculos de altura depois da pisa, os homens, ceados, arregaçavam as calças ou despiam-nas, substituindo-as por calções feitos de propósito, alguns ficavam mesmo em cuecas, e entravam naquele aos berros de calafrios. Em fila unida, enlaçados pelos ombros ou pela cintura, levantavam e baixavam as pernas sob o comando de uma voz «Esquerda! Direita! Um! Dois!» que, quase sempre, pertencia ao de uma das extremidades. Os esgares estampavam o esforço, mas os olhos tinham o ar triunfal de quem vence uma contrariedade. Aquelas pernas, raiadas de vermelho, que até pareciam de veias laceradas quando se erguiam (se as uvas eram brancas assemelhavam-se a troncos de pinheiros engordurados de resina), esmagavam o resultado de muitas canseiras, noites mal dormidas a espreitar o alto, farejando prenúncios, inventando aritméticas para chegarem para o sulfato, as folhas do pessoal e as bocas familiares. O dinheiro era contado, porém, farta a alegria. As horas escorriam sem pressas porque a vida se confinava à dimensão delas. As pousas espelhavam esses anos, pacientes e pormenorizados, com as fainas a fazerem-se no respeito sagrado pela terra e o seu fruto a invocar cerimoniais idólatras. Para cá e para lá, como se os pés mastigassem a lama de um brejo, os homens escreviam uma saga que a história narraria. Na época sobre a qual se escreve, não havia roladores eléctricos, nem a parafernália industrial que sintetiza funções mas não as deixa conhecer. Os bagos espalmavam-se devagar e os pedúnculos dos cachos, mesmo amolecidos, entorpeciam os pés.
Nos quinteiros, enquanto os homens espremiam as uvas, as mulheres dançavam umas com as outras e poucas cediam aos galanteios dos visitantes sem trabalho nocturno. Quando alguma se atrevia numa espreitadela ao lagar, logo uma voz rude lhe cortava a curiosidade. A pousa era macha e recatada de olhares fêmeos; tinha fins tardios que elas bem queriam aguardar. Quando os bagulhos subiam à tona, os homens despegavam-se e exigiam a concertina e os ferrinhos para se esquecerem do poço. Os mais aflitos, virando-se para a parede, aliviavam-se na lata estrategicamente colocada num canto; dividiam-se fatias de presunto com pão e canecas; um maço de Três Vintes dava para todos; cantavam-se, à desgarrada, piadas acintosas com gargalhadas de escárnio, os mais calados numa ânsia de acabar. Uma pousa durava três horas que, para uns, era uma eternidade e, para outros, um sacrifício que a necessidade pedia. Pagas à parte e a preço melhorado, os pés ganhavam o que os braços e os ombros de alguns muitas vezes não podiam ou não queriam.
Quando a rotina preguiçava os corpos e o sono era um apelo irredutível, o jogo da cabra-cega excitava os minutos finais. Lançava-se a sorte para o primeiro a ser vendado, atava-se-lhe um lenço à volta da cabeça, de nagalho bem apertado na nuca, obtinha-se a certeza de que ele nada via e, então, punha-se à roda a levar palmadas no rabo até agarrar o acertante, enquanto um, considerado excluído do jogo, se postava junto da prensa para evitar que o toutiço do supliciado não se esquinasse nela. Alguns, por desfastio, confinavam-se a leves raspões, mas outros - a maioria -, repentinamente atiçados por um sadismo encoberto, esticavam as manápulas e batiam sem dó nem piedade. Era uma algazarra que ultrapassava as portas, estilhaçando-se na quietude da noite e incitando bisbilhotices de quem passava no caminho. O homem, cego pela venda, voltava-se como um felino, agitando as mãos na procura dos agressores, descurando assim o traseiro onde saraivavam palmadas histéricas. Quando, porém, pilhava um, entregando-lhe o lenço, esfregava as mãos com quanto cuspe tinha e exercia a vingança numa ira de alienado. Por vezes, a sanha era tal que a película do vinho fazia ondas com os saltos e as fugas dos homens, possessos pelo acinte da desforra; quando algum, no meio de uma troça delirante, caía no mosto, a pousa concluía-se por entre juras de pagas na noite seguinte.
O lagar sossegava lentamente, esboçando a manta; os homens lavavam-se na torneira do tanque ou no vasilhame que estivesse livre; o fartum evolava-se e a lua, de mármore polido, brilhava de honestidade.- Texto de M. Nogueira Borges* extraído da publicação "Lagar da Memória".*Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. Pode ler também os textos deste autor no blog ForEver PEMBA
Outros textos de Manuel Coutinho Nogueira Borges neste blogue!


Quando, no lagar, as uvas chegavam ao ponto em que a prática de muitos anos o considerava cheio, antecipando cálculos de altura depois da pisa, os homens, ceados, arregaçavam as calças ou despiam-nas, substituindo-as por calções feitos de propósito, alguns ficavam mesmo em cuecas, e entravam naquele aos berros de calafrios. Em fila unida, enlaçados pelos ombros ou pela cintura, levantavam e baixavam as pernas sob o comando de uma voz «Esquerda! Direita! Um! Dois!» que, quase sempre, pertencia ao de uma das extremidades. Os esgares estampavam o esforço, mas os olhos tinham o ar triunfal de quem vence uma contrariedade. Aquelas pernas, raiadas de vermelho, que até pareciam de veias laceradas quando se erguiam (se as uvas eram brancas assemelhavam-se a troncos de pinheiros engordurados de resina), esmagavam o resultado de muitas canseiras, noites mal dormidas a espreitar o alto, farejando prenúncios, inventando aritméticas para chegarem para o sulfato, as folhas do pessoal e as bocas familiares. O dinheiro era contado, porém, farta a alegria. As horas escorriam sem pressas porque a vida se confinava à dimensão delas. As pousas espelhavam esses anos, pacientes e pormenorizados, com as fainas a fazerem-se no respeito sagrado pela terra e o seu fruto a invocar cerimoniais idólatras. Para cá e para lá, como se os pés mastigassem a lama de um brejo, os homens escreviam uma saga que a história narraria. Na época sobre a qual se escreve, não havia roladores eléctricos, nem a parafernália industrial que sintetiza funções mas não as deixa conhecer. Os bagos espalmavam-se devagar e os pedúnculos dos cachos, mesmo amolecidos, entorpeciam os pés.
Nos quinteiros, enquanto os homens espremiam as uvas, as mulheres dançavam umas com as outras e poucas cediam aos galanteios dos visitantes sem trabalho nocturno. Quando alguma se atrevia numa espreitadela ao lagar, logo uma voz rude lhe cortava a curiosidade. A pousa era macha e recatada de olhares fêmeos; tinha fins tardios que elas bem queriam aguardar. Quando os bagulhos subiam à tona, os homens despegavam-se e exigiam a concertina e os ferrinhos para se esquecerem do poço. Os mais aflitos, virando-se para a parede, aliviavam-se na lata estrategicamente colocada num canto; dividiam-se fatias de presunto com pão e canecas; um maço de Três Vintes dava para todos; cantavam-se, à desgarrada, piadas acintosas com gargalhadas de escárnio, os mais calados numa ânsia de acabar. Uma pousa durava três horas que, para uns, era uma eternidade e, para outros, um sacrifício que a necessidade pedia. Pagas à parte e a preço melhorado, os pés ganhavam o que os braços e os ombros de alguns muitas vezes não podiam ou não queriam.
Quando a rotina preguiçava os corpos e o sono era um apelo irredutível, o jogo da cabra-cega excitava os minutos finais. Lançava-se a sorte para o primeiro a ser vendado, atava-se-lhe um lenço à volta da cabeça, de nagalho bem apertado na nuca, obtinha-se a certeza de que ele nada via e, então, punha-se à roda a levar palmadas no rabo até agarrar o acertante, enquanto um, considerado excluído do jogo, se postava junto da prensa para evitar que o toutiço do supliciado não se esquinasse nela. Alguns, por desfastio, confinavam-se a leves raspões, mas outros - a maioria -, repentinamente atiçados por um sadismo encoberto, esticavam as manápulas e batiam sem dó nem piedade. Era uma algazarra que ultrapassava as portas, estilhaçando-se na quietude da noite e incitando bisbilhotices de quem passava no caminho. O homem, cego pela venda, voltava-se como um felino, agitando as mãos na procura dos agressores, descurando assim o traseiro onde saraivavam palmadas histéricas. Quando, porém, pilhava um, entregando-lhe o lenço, esfregava as mãos com quanto cuspe tinha e exercia a vingança numa ira de alienado. Por vezes, a sanha era tal que a película do vinho fazia ondas com os saltos e as fugas dos homens, possessos pelo acinte da desforra; quando algum, no meio de uma troça delirante, caía no mosto, a pousa concluía-se por entre juras de pagas na noite seguinte.
O lagar sossegava lentamente, esboçando a manta; os homens lavavam-se na torneira do tanque ou no vasilhame que estivesse livre; o fartum evolava-se e a lua, de mármore polido, brilhava de honestidade.- Texto de M. Nogueira Borges* extraído da publicação "Lagar da Memória".*Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. Pode ler também os textos deste autor no blog ForEver PEMBA
Outros textos de Manuel Coutinho Nogueira Borges neste blogue!

marcar artigo