O Cachimbo de Magritte: Ainda o casamento gay: resposta ao Adolfo Mesquita Nunes

20-01-2012
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Na sequência do meu post sobre o casamento entre homossexuais, inicialmente publicado como artigo na Atlântico, o Adolfo Mesquita Nunes deixou na Arte da Fuga o artigo em que me respondeu na mesma revista. Enquanto não arranjo tempo para continuar a polémica com o Tiago Moreira Ramalho e a Raquel Lacerda, na caixa de comentários, e com algumas leituras históricas curiosas no Expresso da Meia Noite e na blogosfera, aqui fica a tréplica que se seguiu (também na Atlântico).UMA QUESTÃO DE LIBERDADE? Adolfo Mesquita Nunes (AMN) respondeu na última Atlântico às minhas dúvidas sobre o casamento entre homossexuais, aqui expressas em Julho. Que o tenha feito com uma elegância proporcionalmente inversa à demagogia corrente na matéria é uma originalidade que lhe agradeço. Apesar disso, não posso deixar de apontar dois erros de perspectiva ao seu artigo, significativamente intitulado “Uma questão de liberdade”.A Ilusão MoralistaO primeiro erro consiste em ver qualquer crítica ao casamento homossexual como uma condenação moral da homossexualidade. Para AMN, “a proibição do casamento apenas porque se trata de pessoas do mesmo sexo assenta numa concepção moral ou social que desqualifica a relação homossexual. Apesar de legítimas, essas convicções não podem, numa concepção liberal, assumir força de lei.” Eis um moralismo ao contrário, que se converte no que quer denunciar. Pretendendo afastar do espaço público a influência de certas convicções privadas, favorece as convicções opostas. Porque, se a exigência de neutralidade só vale para um dos lados, vence a moral particular do outro: neste caso, a moral de quem julga o casamento gay suficientemente bom para ser imposto, com “força de lei”, à maioria que o recusa.O que está em causa, porém, não é uma condenação da homossexualidade, mas uma definição do casamento. Dentro da tal “concepção liberal”, todos concordaremos que o Estado não deve regular as relações sexuais entre adultos livres (sublinho adultos e livres), excepto se afectarem terceiros. Ora, é justamente por afectar terceiros que o casamento, sendo o mais privado dos contratos, deve ter uma forma reconhecida pela lei e protegida pelo Estado.Ao contrário do que diz AMN, essa forma não depende só da vontade dos contraentes: não “cabe aos noivos compor os exactos termos do contrato”, mas à legislação respectiva. Não faz sentido queixar-se de que semelhante opção “privilegia o institucional e esquece o afectivo, privilegia o conceito e esquece o indivíduo”, porque o casamento é justamente uma instituição e um conceito, não um mero “acordo de vontades”. Se o fosse, não estaríamos a discuti-lo. Se o fosse, não teria uma estrutura jurídica que a história mostra ser quase universal. Mesmo nas culturas em que a homossexualidade não sofreu qualquer censura, como na Grécia antiga, o casamento heterossexual foi sempre o único “modelo familiar” reconhecido pela lei. Isso deve-se apenas a razões morais ou religiosas? É óbvio que não. As razões prendem-se com a própria sobrevivência da sociedade, no sentido mais literal.Em primeiro lugar, o casamento heterossexual é o melhor enquadramento para se ter e criar filhos, elementar facto que interessa tanto ao Estado como a cada um de nós. Qualquer outra hipótese (monoparentalidade, adopção, poligamia, etc.) tem mais custos pessoais e sociais. Um Estado que reconhece exclusivamente o “modelo familiar” com menos custos para todos está apenas a respeitar-se a si próprio e a respeitar os contribuintes que o sustentam. O que não significa, evidentemente, que o casamento só tenha valor público enquanto suporte da geração. Há muitos casais que não podem ou não querem ter filhos, e não estão menos casados por isso. Mas ignorar o fortíssimo laço entre casamento e geração é fechar os olhos à realidade, um mau princípio para qualquer legislador. Aliás, se assim não fosse, porque insistiriam os pares gays e os casais estéreis no direito à adopção e à procriação artificial? O que serve de bandeira para o movimento homossexual já não serve de defesa para o casamento heterossexual?Em segundo lugar, a heterossexualidade esgota historicamente a morfologia do matrimónio porque, na maior parte dos ordenamentos jurídicos, este define o estatuto legal da mulher. Especificando os direitos e os deveres dos cônjuges, o contrato matrimonial atribui à esposa personalidade jurídica, mesmo submetendo-a ao marido. Mais: em certos aspectos da vida familiar, esse contrato foi, ao longo dos tempos, o único limite ao arbítrio do mais forte. Pense-se, por exemplo, na exigência do consentimento de ambos os noivos para a validade da união conjugal. Não estou a idealizar a história da condição feminina, mas podemos perguntar-nos o que aconteceria a uma mulher repudiada ou divorciada se, no passado, não existisse o dote ou, hoje, a pensão de alimentos.Assim, o casamento homossexual, não incluindo mulher e filhos, é inútil do ponto de vista jurídico e, não respondendo a nenhuma necessidade social, é uma questiúncula política. AMN, porém, vê no facto de envolver duas pessoas do mesmo sexo “a única diferença” em relação ao casamento heterossexual. Dir-lhe-ei, com o senhor de La Palisse, que essa é exactamente a única diferença que muda tudo. Uma diferença que depende, não da moral, mas da natureza.A Ilusão LiberalContudo, insiste AMN, ainda que o casamento homossexual seja inútil ou que o Estado tenha a legitimidade de o proibir, “de que modo poderia pôr em causa a essência do casamento heterossexual”? Esta justíssima pergunta enferma de um erro a que chamarei a ilusão liberal. Para AMN e para a maioria dos liberais modernos, todas as relações sociais podem resumir-se a uma equação simples: de um lado o Estado, do outro o indivíduo. O casamento, regido pela lei, seria portanto um problema a resolver entre o indivíduo e o Estado – subtraindo-o ao Estado, claro.No entanto, a nossa relação com a lei é também mediada pela sociedade civil, entendendo por esta palavra mágica o conjunto de comunidades não estatais a que pertencemos e a(s) cultura(s) em que vivemos. É aí, como bem sabiam Burke, Tocqueville e outros liberais clássicos, que se enfrentam o Estado e o indivíduo, a igualdade e a liberdade, o bem comum e o interesse pessoal. Veja-se o exemplo do casamento: sendo uma instituição milenar, é também um contrato e uma escolha afectiva. A cultura rege a primeira, a lei a segunda e o amor a terceira. Os individualistas querem só o amor e os estatistas querem só a lei, mas estão de acordo em esquecer o que fica pelo meio. Não surpreende, por isso, que a família dita tradicional esteja desde há três séculos sob o fogo cruzado de uns e de outros: os individualistas querem livrar-se dela e os estatistas querem apropriar-se dela. E às vezes são os mesmos. “Um dia, fazer amor será tão livre como beber um copo de água”, escreveu Lenine, pai de um Estado onde a água e a liberdade eram igualmente racionadas. AMN protesta que “o Estado não tem o direito de se intrometer na forma como os indivíduos decidem organizar a sua vida afectiva, sexual e familiar”, mas o Estado não tem feito outra coisa desde a Revolução Francesa. O casamento gay não passa de uma batalha na guerra das vanguardas revolucionárias à sociedade civil.Antes de mais, essa batalha tem o objectivo de esvaziar o conceito e a instituição do matrimónio, atribuindo o mesmo nome e o correspondente reconhecimento legal a uma união que não inclui a diferenciação sexual e, portanto, a procriação que o matrimónio sempre protegeu. Ora, a frágil ecologia do casamento, mistura complexa de sentimentos e tradições, sexo e fraldas, aniversários e impostos, depende poderosamente da cultura dominante. Seria uma ingenuidade, em que nenhum estatista cai, supor que a lei não tem influência sobre as mentalidades. Daí que a generalização da etiqueta jurídica de casamento a qualquer união sexual entre adultos livres tenha reflexos no casamento heterossexual, passando a mensagem de que é indiferente ao Estado a situação da mulher ou a situação familiar em que nascem e crescem as crianças. Se o Estado pensa assim, e muitas vezes age assim na fiscalidade e na legislação laboral, está a retirar às pessoas um importante estímulo para constituir família. Das consequências sociais que isso pode trazer, lembro só uma que está à vista de todos: a falência da segurança social.Por outro lado, o matrimónio homossexual degrada o casamento porque representa apenas a vitória de uma minoria que o usa para fins políticos, como prova o baixíssimo número de uniões gays legalizadas até agora. Na Holanda, segundo dados oficiais, celebraram-se 8127 entre 2001 e o fim de 2005, numa população de 16 milhões de habitantes. A Bélgica, com 10 milhões e casamentos entre pessoas do mesmo sexo desde 2003, registou 2204 durante esse ano e no ano seguinte. O Massachusetts, com 6 milhões de habitantes, assistiu a 5994 casamentos gays em 2004 e a 1347 em 2005. A comparação entre o total de casamentos homossexuais e heterossexuais, quando disponível, revela-se ainda mais elucidativa. Na Noruega, entre 1993 e 2001, houve 1293 dos primeiros e 196 000 dos segundos. Na Suécia, entre 1995 e 2002, contaram-se respectivamente 1526 e 280 000. Stanley Kurtz, na National Review Online (5/6/06), estima que estas proporções não andarão muito longe do que se passa nos outros países. Em Espanha, por exemplo, entre Julho de 2005 e 31 de Maio de 2006, ocorreram 1275 consórcios homossexuais, enquanto, no ano de 2005, o cômputo de matrimónios heterossexuais foi de 209 125.Seria interessante saber qual a percentagem da população gay que realmente opta pelo casamento gay, mas torna-se quase impossível reunir esses números. Se fizermos as contas a partir da célebre e inverosímil quantia de que os homossexuais constituem 10% da população total, a conclusão é claríssima: só uma uma minoria dentro de uma minoria casa com alguém do mesmo sexo. Na verdade, não existe um único país do mundo em que a legalização do casamento gay tenha sido aprovada em referendo. Em todos os casos, sem excepção, foi fruto da iniciativa dos governos, dos parlamentos ou dos tribunais, às vezes com a oposição expressa da maioria dos cidadãos. Ou seja, estamos perante a tirania de um lobby que usa os poderes públicos para impor a sua própria agenda ideológica. AMN diz que “o Estado não deve servir para formatar socialmente a realidade, num ímpeto colectivista e ao serviço de ideologias e sentimentos eventualmente maioritários”. Estou de acordo, mas estaria ainda mais de acordo se substituísse a palavra “maioritários” por “minoritários”. Porque, nesse caso, a frase aplicar-se-ia como uma luva ao casamento homossexual.Em nome do liberalismo, AMN quer dar ao Estado o poder de ignorar o consenso histórico sobre a natureza do casamento, quando a sua submissão ao arbítrio do Estado – e outra coisa não é o matrimónio gay – deveria, pelo contrário, preocupar qualquer liberal. Hoje, os herdeiros do jacobinismo estão entre os principais defensores de tal causa. Nada mais lógico. Mas não deixa de ser um triste sinal dos tempos que os liberais estejam ao seu lado. Um sinal de que, na guerra da cultura, Robespierre venceu Burke – e Burke nem deu por isso.


Na sequência do meu post sobre o casamento entre homossexuais, inicialmente publicado como artigo na Atlântico, o Adolfo Mesquita Nunes deixou na Arte da Fuga o artigo em que me respondeu na mesma revista. Enquanto não arranjo tempo para continuar a polémica com o Tiago Moreira Ramalho e a Raquel Lacerda, na caixa de comentários, e com algumas leituras históricas curiosas no Expresso da Meia Noite e na blogosfera, aqui fica a tréplica que se seguiu (também na Atlântico).UMA QUESTÃO DE LIBERDADE? Adolfo Mesquita Nunes (AMN) respondeu na última Atlântico às minhas dúvidas sobre o casamento entre homossexuais, aqui expressas em Julho. Que o tenha feito com uma elegância proporcionalmente inversa à demagogia corrente na matéria é uma originalidade que lhe agradeço. Apesar disso, não posso deixar de apontar dois erros de perspectiva ao seu artigo, significativamente intitulado “Uma questão de liberdade”.A Ilusão MoralistaO primeiro erro consiste em ver qualquer crítica ao casamento homossexual como uma condenação moral da homossexualidade. Para AMN, “a proibição do casamento apenas porque se trata de pessoas do mesmo sexo assenta numa concepção moral ou social que desqualifica a relação homossexual. Apesar de legítimas, essas convicções não podem, numa concepção liberal, assumir força de lei.” Eis um moralismo ao contrário, que se converte no que quer denunciar. Pretendendo afastar do espaço público a influência de certas convicções privadas, favorece as convicções opostas. Porque, se a exigência de neutralidade só vale para um dos lados, vence a moral particular do outro: neste caso, a moral de quem julga o casamento gay suficientemente bom para ser imposto, com “força de lei”, à maioria que o recusa.O que está em causa, porém, não é uma condenação da homossexualidade, mas uma definição do casamento. Dentro da tal “concepção liberal”, todos concordaremos que o Estado não deve regular as relações sexuais entre adultos livres (sublinho adultos e livres), excepto se afectarem terceiros. Ora, é justamente por afectar terceiros que o casamento, sendo o mais privado dos contratos, deve ter uma forma reconhecida pela lei e protegida pelo Estado.Ao contrário do que diz AMN, essa forma não depende só da vontade dos contraentes: não “cabe aos noivos compor os exactos termos do contrato”, mas à legislação respectiva. Não faz sentido queixar-se de que semelhante opção “privilegia o institucional e esquece o afectivo, privilegia o conceito e esquece o indivíduo”, porque o casamento é justamente uma instituição e um conceito, não um mero “acordo de vontades”. Se o fosse, não estaríamos a discuti-lo. Se o fosse, não teria uma estrutura jurídica que a história mostra ser quase universal. Mesmo nas culturas em que a homossexualidade não sofreu qualquer censura, como na Grécia antiga, o casamento heterossexual foi sempre o único “modelo familiar” reconhecido pela lei. Isso deve-se apenas a razões morais ou religiosas? É óbvio que não. As razões prendem-se com a própria sobrevivência da sociedade, no sentido mais literal.Em primeiro lugar, o casamento heterossexual é o melhor enquadramento para se ter e criar filhos, elementar facto que interessa tanto ao Estado como a cada um de nós. Qualquer outra hipótese (monoparentalidade, adopção, poligamia, etc.) tem mais custos pessoais e sociais. Um Estado que reconhece exclusivamente o “modelo familiar” com menos custos para todos está apenas a respeitar-se a si próprio e a respeitar os contribuintes que o sustentam. O que não significa, evidentemente, que o casamento só tenha valor público enquanto suporte da geração. Há muitos casais que não podem ou não querem ter filhos, e não estão menos casados por isso. Mas ignorar o fortíssimo laço entre casamento e geração é fechar os olhos à realidade, um mau princípio para qualquer legislador. Aliás, se assim não fosse, porque insistiriam os pares gays e os casais estéreis no direito à adopção e à procriação artificial? O que serve de bandeira para o movimento homossexual já não serve de defesa para o casamento heterossexual?Em segundo lugar, a heterossexualidade esgota historicamente a morfologia do matrimónio porque, na maior parte dos ordenamentos jurídicos, este define o estatuto legal da mulher. Especificando os direitos e os deveres dos cônjuges, o contrato matrimonial atribui à esposa personalidade jurídica, mesmo submetendo-a ao marido. Mais: em certos aspectos da vida familiar, esse contrato foi, ao longo dos tempos, o único limite ao arbítrio do mais forte. Pense-se, por exemplo, na exigência do consentimento de ambos os noivos para a validade da união conjugal. Não estou a idealizar a história da condição feminina, mas podemos perguntar-nos o que aconteceria a uma mulher repudiada ou divorciada se, no passado, não existisse o dote ou, hoje, a pensão de alimentos.Assim, o casamento homossexual, não incluindo mulher e filhos, é inútil do ponto de vista jurídico e, não respondendo a nenhuma necessidade social, é uma questiúncula política. AMN, porém, vê no facto de envolver duas pessoas do mesmo sexo “a única diferença” em relação ao casamento heterossexual. Dir-lhe-ei, com o senhor de La Palisse, que essa é exactamente a única diferença que muda tudo. Uma diferença que depende, não da moral, mas da natureza.A Ilusão LiberalContudo, insiste AMN, ainda que o casamento homossexual seja inútil ou que o Estado tenha a legitimidade de o proibir, “de que modo poderia pôr em causa a essência do casamento heterossexual”? Esta justíssima pergunta enferma de um erro a que chamarei a ilusão liberal. Para AMN e para a maioria dos liberais modernos, todas as relações sociais podem resumir-se a uma equação simples: de um lado o Estado, do outro o indivíduo. O casamento, regido pela lei, seria portanto um problema a resolver entre o indivíduo e o Estado – subtraindo-o ao Estado, claro.No entanto, a nossa relação com a lei é também mediada pela sociedade civil, entendendo por esta palavra mágica o conjunto de comunidades não estatais a que pertencemos e a(s) cultura(s) em que vivemos. É aí, como bem sabiam Burke, Tocqueville e outros liberais clássicos, que se enfrentam o Estado e o indivíduo, a igualdade e a liberdade, o bem comum e o interesse pessoal. Veja-se o exemplo do casamento: sendo uma instituição milenar, é também um contrato e uma escolha afectiva. A cultura rege a primeira, a lei a segunda e o amor a terceira. Os individualistas querem só o amor e os estatistas querem só a lei, mas estão de acordo em esquecer o que fica pelo meio. Não surpreende, por isso, que a família dita tradicional esteja desde há três séculos sob o fogo cruzado de uns e de outros: os individualistas querem livrar-se dela e os estatistas querem apropriar-se dela. E às vezes são os mesmos. “Um dia, fazer amor será tão livre como beber um copo de água”, escreveu Lenine, pai de um Estado onde a água e a liberdade eram igualmente racionadas. AMN protesta que “o Estado não tem o direito de se intrometer na forma como os indivíduos decidem organizar a sua vida afectiva, sexual e familiar”, mas o Estado não tem feito outra coisa desde a Revolução Francesa. O casamento gay não passa de uma batalha na guerra das vanguardas revolucionárias à sociedade civil.Antes de mais, essa batalha tem o objectivo de esvaziar o conceito e a instituição do matrimónio, atribuindo o mesmo nome e o correspondente reconhecimento legal a uma união que não inclui a diferenciação sexual e, portanto, a procriação que o matrimónio sempre protegeu. Ora, a frágil ecologia do casamento, mistura complexa de sentimentos e tradições, sexo e fraldas, aniversários e impostos, depende poderosamente da cultura dominante. Seria uma ingenuidade, em que nenhum estatista cai, supor que a lei não tem influência sobre as mentalidades. Daí que a generalização da etiqueta jurídica de casamento a qualquer união sexual entre adultos livres tenha reflexos no casamento heterossexual, passando a mensagem de que é indiferente ao Estado a situação da mulher ou a situação familiar em que nascem e crescem as crianças. Se o Estado pensa assim, e muitas vezes age assim na fiscalidade e na legislação laboral, está a retirar às pessoas um importante estímulo para constituir família. Das consequências sociais que isso pode trazer, lembro só uma que está à vista de todos: a falência da segurança social.Por outro lado, o matrimónio homossexual degrada o casamento porque representa apenas a vitória de uma minoria que o usa para fins políticos, como prova o baixíssimo número de uniões gays legalizadas até agora. Na Holanda, segundo dados oficiais, celebraram-se 8127 entre 2001 e o fim de 2005, numa população de 16 milhões de habitantes. A Bélgica, com 10 milhões e casamentos entre pessoas do mesmo sexo desde 2003, registou 2204 durante esse ano e no ano seguinte. O Massachusetts, com 6 milhões de habitantes, assistiu a 5994 casamentos gays em 2004 e a 1347 em 2005. A comparação entre o total de casamentos homossexuais e heterossexuais, quando disponível, revela-se ainda mais elucidativa. Na Noruega, entre 1993 e 2001, houve 1293 dos primeiros e 196 000 dos segundos. Na Suécia, entre 1995 e 2002, contaram-se respectivamente 1526 e 280 000. Stanley Kurtz, na National Review Online (5/6/06), estima que estas proporções não andarão muito longe do que se passa nos outros países. Em Espanha, por exemplo, entre Julho de 2005 e 31 de Maio de 2006, ocorreram 1275 consórcios homossexuais, enquanto, no ano de 2005, o cômputo de matrimónios heterossexuais foi de 209 125.Seria interessante saber qual a percentagem da população gay que realmente opta pelo casamento gay, mas torna-se quase impossível reunir esses números. Se fizermos as contas a partir da célebre e inverosímil quantia de que os homossexuais constituem 10% da população total, a conclusão é claríssima: só uma uma minoria dentro de uma minoria casa com alguém do mesmo sexo. Na verdade, não existe um único país do mundo em que a legalização do casamento gay tenha sido aprovada em referendo. Em todos os casos, sem excepção, foi fruto da iniciativa dos governos, dos parlamentos ou dos tribunais, às vezes com a oposição expressa da maioria dos cidadãos. Ou seja, estamos perante a tirania de um lobby que usa os poderes públicos para impor a sua própria agenda ideológica. AMN diz que “o Estado não deve servir para formatar socialmente a realidade, num ímpeto colectivista e ao serviço de ideologias e sentimentos eventualmente maioritários”. Estou de acordo, mas estaria ainda mais de acordo se substituísse a palavra “maioritários” por “minoritários”. Porque, nesse caso, a frase aplicar-se-ia como uma luva ao casamento homossexual.Em nome do liberalismo, AMN quer dar ao Estado o poder de ignorar o consenso histórico sobre a natureza do casamento, quando a sua submissão ao arbítrio do Estado – e outra coisa não é o matrimónio gay – deveria, pelo contrário, preocupar qualquer liberal. Hoje, os herdeiros do jacobinismo estão entre os principais defensores de tal causa. Nada mais lógico. Mas não deixa de ser um triste sinal dos tempos que os liberais estejam ao seu lado. Um sinal de que, na guerra da cultura, Robespierre venceu Burke – e Burke nem deu por isso.

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