Casmurro: «Visto cá de cima, o mundo da cultura...» ou Pacheco Pereira e a ética do trabalho

30-06-2011
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1. Nos seus mais intensos momentos de crítico dos média e do universo da cultura, Pacheco Pereira lembra-me Manuel Alegre. E isto, lamento desiludir um milhão de portugueses, não é um elogio.A verdade é que estamos todos muito cansados de ver Pacheco Pereira a fazer a sociologia do conhecimento dos outros – ao mesmo tempo que esquece a sua. Pacheco Pereira soma em todos os tabuleiros possíveis e imaginários - vide a tão anunciada edição para breve de um livro com todas as suas intervenções multimediáticas sobre as presidenciais: ou seja, um livro que visa capitalizar por suposta deslocação de medium mas que de facto se anuncia como uma imensa, e ecologicamente escandalosa, redundância. Mas o mesmo Pacheco Pereira não perde uma ocasião para vir denunciar quem, na sua óptica, pratica uma idêntica (perdão: aproximada, pois idêntica é impossível) acumulação mediática. E porquê? Porque a sua, ao contrário da dos outros, é virtuosa. E por que é que é virtuosa? Porque – deixem-me desenrolar morosamente a palavra - é crítica.Resumindo, Pacheco Pereira é a virtude por denúncia dos pecados do mundo (surpreende a forma como no autor se pratica, sobretudo quando o alvo seja a Kultura, a confusão entre crítica e denúncia; voltaremos a isso adiante). É, a esse título, mais uma (dispensável) consequência do excessivo prestígio da Kulturkritik queirosiana, a qual, como cansadamente sabemos, consiste em denunciar a choldra ao mesmo tempo que se arregaça as calças para que a enxurrada passe. Porque, como também se sabe há muito, o que permite a denúncia dos desvarios do mundo com um sorriso superior nos lábios são aqueles 2,5 milímetros que nos elevam acima do solo e evitam assim o nosso atrito com esse mesmo mundo (noutro quadrante, não é senão disto que se faz a épica negativa de Joaquim Manuel Magalhães, trate-se da praia da Consolação, do «mundo literário» ou da universidade nefanda, na qual ocupa aliás uma cátedra). De facto, e para assombro dos mortais comuns, há sempre quem consiga falar a partir de lugar nenhum.Por fim, e decisivamente, Pacheco Pereira capitaliza na política por ser intelectual (que afirma com intransigência não ser) e capitaliza no mundo intelectual por ser político, assim dominando o realismo cívico-cínico dos Ways of the world. Significa isto que é e não é um académico. Não porque não trabalhe o bastante para isso (o autor acaba de nos declarar que «trabalha muito» - e eu, como leitor e admirador da sua biografia de Cunhal, acredito) mas porque não lhe convém esse estatuto. Em Portugal, aliás, e como em tempos Gustavo Rubim explicou às massas anti-intelectuais, o estatuto de «académico» não convém a ninguém, com a evidente excepção de Cavaco Silva. E não lhe convém esse estatuto porque ganha bem mais com o estatuto ambivalente que é o seu, eternamente a cavalo entre vários mundos.E é nisto, nesta permanente deslocação de instância de legitimação – uma deslocação que acaba por redundar em sobreposição e acumulação: veja-se, a título demonstrativo, o papel corroborador dos leitores do Abrupto – que Pacheco Pereira mais me lembra Alegre, o poeta que, enquanto poeta, é um bom político e o político que, enquanto político, é um bom poeta; ou o partidocrata que, à 25ª hora, se descobre contra os partidos; e etc. Esclareço porém, e por isso me ser uma exigência ética, que tenho Pacheco Pereira em muito melhor conta do que Alegre e não apenas por isso, em boa verdade, não ser difícil. Mas a analogia é iniludível.2. Como todos os debates sobre a crítica, o debate que corre na blogosfera poderia ter sido útil, não fora em excesso sintomático. Mas poderia ter sido útil não pelas razões que levaram Pacheco Pereira a nele pressurosamente intervir e que, como acima disse, se resumem à aplicação aos outros das regras básicas de uma sociologia do conhecimento a que ele no mesmo passo se exime. Pacheco Pereira, aliás, e o vezo é nele antigo, tem uma curiosa concepção do mundo da arte e da cultura, concepção na qual um angelismo estratégico se combina com a panaceia liberal. Trocando por miúdos, fica assim: o mundo da cultura, e isto aprende-se em qualquer aprendiz de Bourdieu, é uma vasta corporação de interesses mais ou menos disfarçados de «juízos de gosto» supostamente angélicos (ao mesmo tempo, e como se percebe pela lógica da sua argumentação, quando se refere ao mundo da cultura Pacheco Pereira não se contentaria com menos do que um angelismo real: e é aqui que a imputação de angelismo se torna realmente estratégica). Mais e pior ainda, a cultura é em grande número de casos um pretexto para viver à sombra do orçamento: é preciso é ser admitido à corporação. Para que o mundo da cultura seja aquilo que deve ser, e não aquilo que lamentavelmente é, há que quebrar esta lógica da corporação dos interesses e dos compadrios (segue-se a denúncia, fria ou exaltada, das amizades encapotadas debaixo da hipocrisia «crítica»: Pacheco Pereira tem aqui, como sabemos, muito quem o siga). E como? Da única forma legítima: por uma política liberal que, para começar, acabe com o absurdo de um Ministério da Cultura, e, para terminar, entregue ao mercado a regulação dos fluxos que atravessam o campo cultural. Parodiando Bourdieu, diríamos que do que se trata é de quebrar hábitos corporativos para que o campo possa segregar o seu habitus sem mediações espúrias (leia-se: interessadas). Porque o mercado, como sabemos, opera como a justiça: desinteressada e cegamente. O mercado, por assim dizer, é a creolina que mata a bicharada das artes & kultura: safa-se quem tem unhas para tocar guitarra (e ai de quem a não tocar eléctrica…). Ou seja: o mercado dói mas cura. Ainda que por vezes, e não poucas, o paciente morra da cura.Num momento a que deveríamos chamar o momento da verdade, diz-nos Pacheco Pereira que para quem «trabalhe muito» i.e., para quem opte pela ética protestante e não pelo amiguismo, «as encomendas não faltam no mercado». Ora, nem mais! Imaginemos então que o meu colega casmurro Abel Barros Baptista, que trabalha também muitíssimo e acaba de ver um seu terceiro livro publicado no Brasil (estejam descansados que, embora me custe, não escreverei aqui sobre ele…), deseja publicar um livro sobre a questão da organicidade da obra de arte em Aristóteles. Só tem que se dirigir a Zita Seabra (que aqui é e não é um tropo do mercado, desinteressado e cego) e ela dir-lhe-á logo do seu enorme empenho em publicar a obra, na esteira do mega-êxito da autobiografia de Maria Filomena Mónica. O mais provável é mesmo encomendar-lhe na hora uma outra obra, desta vez sobre o conceito de Hamartia na Poética aristotélica.Ou imaginemos que outro casmurro, desta vez o Luís Quintais, deseja publicar um pequeno livro sobre o debate, fascinante e já longo, entre Marshall Sahlins e Gananath Obeyesekere em torno do Capitão Cook, um dos debates centrais na antropologia contemporânea. Aí temos de novo um casmurro a bater à porta da Alethêa (bela imagem alegórica, hão-de convir) e a ser recebido prazenteiramente pela sua proprietária: «Assim que o entregar, vai logo para a paginação. O nosso mercado do livro anseia desesperadamente por essa obra!»Nesta altura, se não erro, Pacheco Pereira sentirá a necessidade de intervir para dizer que misturo alhos com bugalhos, livros «generalistas» com produção «académica» (significaria isso, já agora, que a sua biografia de Cunhal não deseja submeter-se ao teste dos critérios académicos?). Estranha ressalva seria, esta, vinda de quem defende a fria racionalidade iluminista do mercado por sobre a lógica dos particularismos «étnicos» subsidiados. Ou será que teremos de concluir que afinal não basta «trabalhar muito» e esperar pelas encomendas? A não ser que nos dediquemos todos ao género biográfico – e, ainda assim, de figuras muito públicas – ou à reunião em livro de textos de opinião dispersos pelo universo dos média.A questão não é lateral, pois nela se joga o essencial dos argumentos de Pacheco Pereira. O autor, recordemos, denuncia no campo cultural aquilo que é da ordem do tácito e não-questionado. Ao campo cultural faltaria escrutínio crítico e, logo, a verdade que o escrutínio público impõe ao campo político. Leiam-se algumas palavras reveladoras:«E depois, gente que acha (e bem) que na política há compadrio e favores, passa róseo, pelo mundo literato que tem face à política muito menos escrutínio crítico, muito menos conhecimento dos meandros que se movem. E não é só na literatura, mas no mundo “cultural” no sentido lato, agora muito colado ao entretenimento, onde também há dadores de emprego, grupos de interesses, jogos de editoras, produtoras, programas de televisão, encomendas e serviços? Onde é que eu posso ler sobre isso? Em sítio nenhum. Só vejo exercícios de elogios mútuos, protecções de grupo, reputações que se sustentam em amigos e não em livros, trabalho, obra.»Notemos, en passant, e de novo, a facilidade com que Pacheco Pereira confunde crítica com denúncia e o agon que dedica a um mundo literato que «passa róseo» (os bisnetos de Eça, manifestamente, não cessam de proliferar nos média). E notemos a facilidade com que o autor coloca no mesmo plano a esfera pública do político e a do cultural, como se tal jogada fosse sustentável. Ora a verdade é que a cultura (pelo menos a que interessa a Pacheco Pereira: suponho que não falamos de Madonna, que a mim aliás me interessa bastante) ocupa no espaço público um lugar residual, pelo que não surpreende que o seu escrutínio seja menos visível. Aliás, se acaso nos reduzíssemos à cultura cuja sobrevivência Pacheco Pereira autoriza que seja institucionalmente apoiada – a dos «clássicos» -, tudo se passaria então no silêncio das escolas e das universidades, sem que a questão da «publicidade», crítica ou não, sequer se colocasse. Mas essa escassa visibilidade não significa que tal escrutínio crítico não exista, pois o universo da cultura, ao contrário do que gosta de sugerir Pacheco Pereira, é tão pouco consensual quanto o da política. Se esse permanente dissenso não ganha a visibilidade pública do dissenso político, isso deve-se antes de mais à debilidade dos mecanismos de mediação e mediatização da cultura entre nós, entregues a uma permanente crise – e, em grande medida, a crise da crítica é justamente uma crise dos mecanismos de media(tiza)ção, crise que, como todos sabemos, não afecta Pacheco Pereira, mas que é bem patente na mediocridade do nosso jornalismo cultural (bem me lembro de Eduardo Lourenço, numa conversa breve durante a Coimbra Capital da Cultura, a propósito da javardice assinada por um jornalista do JN sobre a passagem de Derrida por Coimbra, me ter dito melancolicamente: «Continuamos sem ter jornalismo cultural…»). Por isso mesmo, o JL, que é o que é, resiste e dura, dentro daquele princípio de chantagem segundo o qual «não é grande coisa mas antes isto que nada»; e isso explica em certa medida a aparente cristalização de consensos e que, insisto, é antes a dificuldade em inventar canais alternativos num mercado em que a crítica é um bem literalmente deslocalizado. O mesmo argumento chantagista regressou a propósito do Acontece, nos abaixo-assinados que circularam aquando da sua extinção (e que pessoalmente me recusei a subscrever). Lamenta-se agora o destino da Ler, que ainda assim não era exactamente um TLS ou sequer uma Revista de Libros, como há anos se lamenta o destino dos livros no Actual, do Expresso, ou a decadência do Mil Folhas. E lamenta-se sobretudo que esses suplementos existam apenas porque pareceria mal, apesar de tudo, para jornais de referência, acabar com eles. Desse ponto de vista, a diferença entre José António Saraiva e José Manuel Fernandes é nenhuma: ambos se empenharam meticulosamente em desbaratar o capital que as secções culturais dos seus jornais tinham acumulado, com especial ênfase no descaso concedido aos livros. Que ambos sejam assumidos neo-liberais, eis o que é seguramente apenas uma coincidência.O que é chocante é ver alguém que cavalga a onda mediática em regime de verdadeira afluência vir «denunciar», nos termos mais erróneos, a crítica que existe (e, com particular injustiça, a protagonizada por Pedro Mexia), quando a sua sobrevivência, nas condições depauperadas da mediatização da nossa vida cultural, é um milagre de todos os dias. E não estou com isto a sugerir que, por essa razão, nos devamos abster da sua crítica, muito pelo contrário. Quero simplesmente dizer que Pacheco Pereira está muito mal habituado. Tão mal habituado, neste ponto, como aquela gente que no meio cultural ocupa por inerência cargos de comissário e programador, e que ele tanto gosta, e com razão (a razão que assiste também a Augusto M. Seabra, quando incide sobre as promiscuidades institucionais no mundo das artes plásticas), de criticar.3. Um último ponto, no que respeita a Pacheco Pereira. Num momento muito sintomático do excerto que transcrevi, o autor evoca os «meandros» obscuros do mundo da cultura. E diz, relembro, isto:«E não é só na literatura, mas no mundo “cultural” no sentido lato, agora muito colado ao entretenimento, onde também há dadores de emprego, grupos de interesses, jogos de editoras, produtoras, programas de televisão, encomendas e serviços?».De que é que esta citação é sintomática? De uma deslocação discursiva de todo surpreendente. Porque, se lermos com atenção, Pacheco Pereira está de facto a falar do funcionamento da indústria cultural: entretenimento, emprego, editoras, produtoras, televisão, encomendas e serviços. Mas, curiosamente, esse parece ser o recalcado de um discurso que, prima facie, nos dá um exemplo supostamente esmagador das bondades da hermenêutica da suspeita quando aplicada ao mundo da cultura: «Vejam como por baixo do suposto angelismo da arte está o compadrio!». Ou seja, e seria a nossa vez de esfregar, incrédulos, os olhos, no momento crítico o liberal em Pacheco Pereira acaba por recalcar o mercantil em favor do moral. Porque, com franqueza, nada há aqui que devesse escandalizar um bom liberal, já que tudo está assaz escancarado: «Eis o mercado, na sua verdade e bondade congénitas!», esperaríamos nós que o autor tivesse antes dito, em sonora conclusão. Mas em vez disso, imagine-se!, calha-nos um sermão. Porque Pacheco, que se bate por que o mundo da cultura se reja por esta lógica crua e nua, acaba por nos denunciar… o trabalho de uma mãozinha oculta. Lembram-se dessa senhora? Pois desenganem-se, que não é dessa que ele fala. Essa opera de facto às escâncaras no texto de Pacheco Pereira, mas sem que ele, como é manifesto, a reconheça. A mãozinha oculta que ele nos recorda, de dedo em riste, é antes a dos «meandros» do mundo da cultura… Nós à espera do realismo do mercado, e Pacheco Pereira a atirar-nos com resquícios de moral católica. Ora bolas, Adão Silva!Se articularmos isto com a última frase de Pacheco Pereira - «Onde é que eu posso ler sobre isso? Em sítio nenhum. Só vejo exercícios de elogios mútuos, protecções de grupo, reputações que se sustentam em amigos e não em livros, trabalho, obra.» -, aonde é que ficamos? A meu ver, no sítio de onde, na lógica do autor, nunca deveríamos ter saído (mas onde ele mesmo, como vimos antes, não se consegue manter sem resvalar para o sermão): no mercado. Porque na verdade o que Pacheco Pereira faz é uma pergunta platónica pura: «Aonde posso eu ler a denúncia de um mundo que é só sombra e ilusão? Um mundo em que a ilusão substitui a verdade do trabalho e da obra? Um mundo, por isso, ontologicamente falso?». Se Pacheco Pereira não pode ler essa denúncia em lugar nenhum, então isso só pode significar (i) que a crítica não existe. Mais importante, porém, é perceber que (ii) justamente porque a crítica não existe – aquilo a que entre nós se chama crítica é, afinal, apenas ilusionismo – o único critério de verdade para trabalhos e obras é, só pode ser, o mercado, essa versão profana da «coisa em si». Percebemos enfim que as perguntas de Pacheco Pereira pela crítica, como a sua indignação ante o compadrio, são apenas e só retórica agonística: a retórica de um liberal que pessoalmente se dá muito bem com o mercado (e que se reinventa mediaticamente todos os dias); mas que estranhamente, como vimos, quando lhe convém atacar o campo da cultura, recalca a mecânica do mercado em benefício de uma moralidade avulsa.Até porque, se a creolina do mundo da cultura é o mercado, o qual nos reconduziria à verdade desmistificada daquela, então a crítica, enquanto mediação, é de todo dispensável. O mercado, na medida em que é uma redução fenomenológica das brumas da cultura, é uma entidade dotada de suficiente auto-consciência. É um quase-transcendental que «faz encomendas» e assim faz mundo (um mundo, que Pacheco Pereira tende a confundir com o mundo). O nome último e feliz dessa auto-consciência, no momento em que «vem publicamente a si», é marketing. Mas isso, não preciso eu de explicar a Pacheco Pereira.

1. Nos seus mais intensos momentos de crítico dos média e do universo da cultura, Pacheco Pereira lembra-me Manuel Alegre. E isto, lamento desiludir um milhão de portugueses, não é um elogio.A verdade é que estamos todos muito cansados de ver Pacheco Pereira a fazer a sociologia do conhecimento dos outros – ao mesmo tempo que esquece a sua. Pacheco Pereira soma em todos os tabuleiros possíveis e imaginários - vide a tão anunciada edição para breve de um livro com todas as suas intervenções multimediáticas sobre as presidenciais: ou seja, um livro que visa capitalizar por suposta deslocação de medium mas que de facto se anuncia como uma imensa, e ecologicamente escandalosa, redundância. Mas o mesmo Pacheco Pereira não perde uma ocasião para vir denunciar quem, na sua óptica, pratica uma idêntica (perdão: aproximada, pois idêntica é impossível) acumulação mediática. E porquê? Porque a sua, ao contrário da dos outros, é virtuosa. E por que é que é virtuosa? Porque – deixem-me desenrolar morosamente a palavra - é crítica.Resumindo, Pacheco Pereira é a virtude por denúncia dos pecados do mundo (surpreende a forma como no autor se pratica, sobretudo quando o alvo seja a Kultura, a confusão entre crítica e denúncia; voltaremos a isso adiante). É, a esse título, mais uma (dispensável) consequência do excessivo prestígio da Kulturkritik queirosiana, a qual, como cansadamente sabemos, consiste em denunciar a choldra ao mesmo tempo que se arregaça as calças para que a enxurrada passe. Porque, como também se sabe há muito, o que permite a denúncia dos desvarios do mundo com um sorriso superior nos lábios são aqueles 2,5 milímetros que nos elevam acima do solo e evitam assim o nosso atrito com esse mesmo mundo (noutro quadrante, não é senão disto que se faz a épica negativa de Joaquim Manuel Magalhães, trate-se da praia da Consolação, do «mundo literário» ou da universidade nefanda, na qual ocupa aliás uma cátedra). De facto, e para assombro dos mortais comuns, há sempre quem consiga falar a partir de lugar nenhum.Por fim, e decisivamente, Pacheco Pereira capitaliza na política por ser intelectual (que afirma com intransigência não ser) e capitaliza no mundo intelectual por ser político, assim dominando o realismo cívico-cínico dos Ways of the world. Significa isto que é e não é um académico. Não porque não trabalhe o bastante para isso (o autor acaba de nos declarar que «trabalha muito» - e eu, como leitor e admirador da sua biografia de Cunhal, acredito) mas porque não lhe convém esse estatuto. Em Portugal, aliás, e como em tempos Gustavo Rubim explicou às massas anti-intelectuais, o estatuto de «académico» não convém a ninguém, com a evidente excepção de Cavaco Silva. E não lhe convém esse estatuto porque ganha bem mais com o estatuto ambivalente que é o seu, eternamente a cavalo entre vários mundos.E é nisto, nesta permanente deslocação de instância de legitimação – uma deslocação que acaba por redundar em sobreposição e acumulação: veja-se, a título demonstrativo, o papel corroborador dos leitores do Abrupto – que Pacheco Pereira mais me lembra Alegre, o poeta que, enquanto poeta, é um bom político e o político que, enquanto político, é um bom poeta; ou o partidocrata que, à 25ª hora, se descobre contra os partidos; e etc. Esclareço porém, e por isso me ser uma exigência ética, que tenho Pacheco Pereira em muito melhor conta do que Alegre e não apenas por isso, em boa verdade, não ser difícil. Mas a analogia é iniludível.2. Como todos os debates sobre a crítica, o debate que corre na blogosfera poderia ter sido útil, não fora em excesso sintomático. Mas poderia ter sido útil não pelas razões que levaram Pacheco Pereira a nele pressurosamente intervir e que, como acima disse, se resumem à aplicação aos outros das regras básicas de uma sociologia do conhecimento a que ele no mesmo passo se exime. Pacheco Pereira, aliás, e o vezo é nele antigo, tem uma curiosa concepção do mundo da arte e da cultura, concepção na qual um angelismo estratégico se combina com a panaceia liberal. Trocando por miúdos, fica assim: o mundo da cultura, e isto aprende-se em qualquer aprendiz de Bourdieu, é uma vasta corporação de interesses mais ou menos disfarçados de «juízos de gosto» supostamente angélicos (ao mesmo tempo, e como se percebe pela lógica da sua argumentação, quando se refere ao mundo da cultura Pacheco Pereira não se contentaria com menos do que um angelismo real: e é aqui que a imputação de angelismo se torna realmente estratégica). Mais e pior ainda, a cultura é em grande número de casos um pretexto para viver à sombra do orçamento: é preciso é ser admitido à corporação. Para que o mundo da cultura seja aquilo que deve ser, e não aquilo que lamentavelmente é, há que quebrar esta lógica da corporação dos interesses e dos compadrios (segue-se a denúncia, fria ou exaltada, das amizades encapotadas debaixo da hipocrisia «crítica»: Pacheco Pereira tem aqui, como sabemos, muito quem o siga). E como? Da única forma legítima: por uma política liberal que, para começar, acabe com o absurdo de um Ministério da Cultura, e, para terminar, entregue ao mercado a regulação dos fluxos que atravessam o campo cultural. Parodiando Bourdieu, diríamos que do que se trata é de quebrar hábitos corporativos para que o campo possa segregar o seu habitus sem mediações espúrias (leia-se: interessadas). Porque o mercado, como sabemos, opera como a justiça: desinteressada e cegamente. O mercado, por assim dizer, é a creolina que mata a bicharada das artes & kultura: safa-se quem tem unhas para tocar guitarra (e ai de quem a não tocar eléctrica…). Ou seja: o mercado dói mas cura. Ainda que por vezes, e não poucas, o paciente morra da cura.Num momento a que deveríamos chamar o momento da verdade, diz-nos Pacheco Pereira que para quem «trabalhe muito» i.e., para quem opte pela ética protestante e não pelo amiguismo, «as encomendas não faltam no mercado». Ora, nem mais! Imaginemos então que o meu colega casmurro Abel Barros Baptista, que trabalha também muitíssimo e acaba de ver um seu terceiro livro publicado no Brasil (estejam descansados que, embora me custe, não escreverei aqui sobre ele…), deseja publicar um livro sobre a questão da organicidade da obra de arte em Aristóteles. Só tem que se dirigir a Zita Seabra (que aqui é e não é um tropo do mercado, desinteressado e cego) e ela dir-lhe-á logo do seu enorme empenho em publicar a obra, na esteira do mega-êxito da autobiografia de Maria Filomena Mónica. O mais provável é mesmo encomendar-lhe na hora uma outra obra, desta vez sobre o conceito de Hamartia na Poética aristotélica.Ou imaginemos que outro casmurro, desta vez o Luís Quintais, deseja publicar um pequeno livro sobre o debate, fascinante e já longo, entre Marshall Sahlins e Gananath Obeyesekere em torno do Capitão Cook, um dos debates centrais na antropologia contemporânea. Aí temos de novo um casmurro a bater à porta da Alethêa (bela imagem alegórica, hão-de convir) e a ser recebido prazenteiramente pela sua proprietária: «Assim que o entregar, vai logo para a paginação. O nosso mercado do livro anseia desesperadamente por essa obra!»Nesta altura, se não erro, Pacheco Pereira sentirá a necessidade de intervir para dizer que misturo alhos com bugalhos, livros «generalistas» com produção «académica» (significaria isso, já agora, que a sua biografia de Cunhal não deseja submeter-se ao teste dos critérios académicos?). Estranha ressalva seria, esta, vinda de quem defende a fria racionalidade iluminista do mercado por sobre a lógica dos particularismos «étnicos» subsidiados. Ou será que teremos de concluir que afinal não basta «trabalhar muito» e esperar pelas encomendas? A não ser que nos dediquemos todos ao género biográfico – e, ainda assim, de figuras muito públicas – ou à reunião em livro de textos de opinião dispersos pelo universo dos média.A questão não é lateral, pois nela se joga o essencial dos argumentos de Pacheco Pereira. O autor, recordemos, denuncia no campo cultural aquilo que é da ordem do tácito e não-questionado. Ao campo cultural faltaria escrutínio crítico e, logo, a verdade que o escrutínio público impõe ao campo político. Leiam-se algumas palavras reveladoras:«E depois, gente que acha (e bem) que na política há compadrio e favores, passa róseo, pelo mundo literato que tem face à política muito menos escrutínio crítico, muito menos conhecimento dos meandros que se movem. E não é só na literatura, mas no mundo “cultural” no sentido lato, agora muito colado ao entretenimento, onde também há dadores de emprego, grupos de interesses, jogos de editoras, produtoras, programas de televisão, encomendas e serviços? Onde é que eu posso ler sobre isso? Em sítio nenhum. Só vejo exercícios de elogios mútuos, protecções de grupo, reputações que se sustentam em amigos e não em livros, trabalho, obra.»Notemos, en passant, e de novo, a facilidade com que Pacheco Pereira confunde crítica com denúncia e o agon que dedica a um mundo literato que «passa róseo» (os bisnetos de Eça, manifestamente, não cessam de proliferar nos média). E notemos a facilidade com que o autor coloca no mesmo plano a esfera pública do político e a do cultural, como se tal jogada fosse sustentável. Ora a verdade é que a cultura (pelo menos a que interessa a Pacheco Pereira: suponho que não falamos de Madonna, que a mim aliás me interessa bastante) ocupa no espaço público um lugar residual, pelo que não surpreende que o seu escrutínio seja menos visível. Aliás, se acaso nos reduzíssemos à cultura cuja sobrevivência Pacheco Pereira autoriza que seja institucionalmente apoiada – a dos «clássicos» -, tudo se passaria então no silêncio das escolas e das universidades, sem que a questão da «publicidade», crítica ou não, sequer se colocasse. Mas essa escassa visibilidade não significa que tal escrutínio crítico não exista, pois o universo da cultura, ao contrário do que gosta de sugerir Pacheco Pereira, é tão pouco consensual quanto o da política. Se esse permanente dissenso não ganha a visibilidade pública do dissenso político, isso deve-se antes de mais à debilidade dos mecanismos de mediação e mediatização da cultura entre nós, entregues a uma permanente crise – e, em grande medida, a crise da crítica é justamente uma crise dos mecanismos de media(tiza)ção, crise que, como todos sabemos, não afecta Pacheco Pereira, mas que é bem patente na mediocridade do nosso jornalismo cultural (bem me lembro de Eduardo Lourenço, numa conversa breve durante a Coimbra Capital da Cultura, a propósito da javardice assinada por um jornalista do JN sobre a passagem de Derrida por Coimbra, me ter dito melancolicamente: «Continuamos sem ter jornalismo cultural…»). Por isso mesmo, o JL, que é o que é, resiste e dura, dentro daquele princípio de chantagem segundo o qual «não é grande coisa mas antes isto que nada»; e isso explica em certa medida a aparente cristalização de consensos e que, insisto, é antes a dificuldade em inventar canais alternativos num mercado em que a crítica é um bem literalmente deslocalizado. O mesmo argumento chantagista regressou a propósito do Acontece, nos abaixo-assinados que circularam aquando da sua extinção (e que pessoalmente me recusei a subscrever). Lamenta-se agora o destino da Ler, que ainda assim não era exactamente um TLS ou sequer uma Revista de Libros, como há anos se lamenta o destino dos livros no Actual, do Expresso, ou a decadência do Mil Folhas. E lamenta-se sobretudo que esses suplementos existam apenas porque pareceria mal, apesar de tudo, para jornais de referência, acabar com eles. Desse ponto de vista, a diferença entre José António Saraiva e José Manuel Fernandes é nenhuma: ambos se empenharam meticulosamente em desbaratar o capital que as secções culturais dos seus jornais tinham acumulado, com especial ênfase no descaso concedido aos livros. Que ambos sejam assumidos neo-liberais, eis o que é seguramente apenas uma coincidência.O que é chocante é ver alguém que cavalga a onda mediática em regime de verdadeira afluência vir «denunciar», nos termos mais erróneos, a crítica que existe (e, com particular injustiça, a protagonizada por Pedro Mexia), quando a sua sobrevivência, nas condições depauperadas da mediatização da nossa vida cultural, é um milagre de todos os dias. E não estou com isto a sugerir que, por essa razão, nos devamos abster da sua crítica, muito pelo contrário. Quero simplesmente dizer que Pacheco Pereira está muito mal habituado. Tão mal habituado, neste ponto, como aquela gente que no meio cultural ocupa por inerência cargos de comissário e programador, e que ele tanto gosta, e com razão (a razão que assiste também a Augusto M. Seabra, quando incide sobre as promiscuidades institucionais no mundo das artes plásticas), de criticar.3. Um último ponto, no que respeita a Pacheco Pereira. Num momento muito sintomático do excerto que transcrevi, o autor evoca os «meandros» obscuros do mundo da cultura. E diz, relembro, isto:«E não é só na literatura, mas no mundo “cultural” no sentido lato, agora muito colado ao entretenimento, onde também há dadores de emprego, grupos de interesses, jogos de editoras, produtoras, programas de televisão, encomendas e serviços?».De que é que esta citação é sintomática? De uma deslocação discursiva de todo surpreendente. Porque, se lermos com atenção, Pacheco Pereira está de facto a falar do funcionamento da indústria cultural: entretenimento, emprego, editoras, produtoras, televisão, encomendas e serviços. Mas, curiosamente, esse parece ser o recalcado de um discurso que, prima facie, nos dá um exemplo supostamente esmagador das bondades da hermenêutica da suspeita quando aplicada ao mundo da cultura: «Vejam como por baixo do suposto angelismo da arte está o compadrio!». Ou seja, e seria a nossa vez de esfregar, incrédulos, os olhos, no momento crítico o liberal em Pacheco Pereira acaba por recalcar o mercantil em favor do moral. Porque, com franqueza, nada há aqui que devesse escandalizar um bom liberal, já que tudo está assaz escancarado: «Eis o mercado, na sua verdade e bondade congénitas!», esperaríamos nós que o autor tivesse antes dito, em sonora conclusão. Mas em vez disso, imagine-se!, calha-nos um sermão. Porque Pacheco, que se bate por que o mundo da cultura se reja por esta lógica crua e nua, acaba por nos denunciar… o trabalho de uma mãozinha oculta. Lembram-se dessa senhora? Pois desenganem-se, que não é dessa que ele fala. Essa opera de facto às escâncaras no texto de Pacheco Pereira, mas sem que ele, como é manifesto, a reconheça. A mãozinha oculta que ele nos recorda, de dedo em riste, é antes a dos «meandros» do mundo da cultura… Nós à espera do realismo do mercado, e Pacheco Pereira a atirar-nos com resquícios de moral católica. Ora bolas, Adão Silva!Se articularmos isto com a última frase de Pacheco Pereira - «Onde é que eu posso ler sobre isso? Em sítio nenhum. Só vejo exercícios de elogios mútuos, protecções de grupo, reputações que se sustentam em amigos e não em livros, trabalho, obra.» -, aonde é que ficamos? A meu ver, no sítio de onde, na lógica do autor, nunca deveríamos ter saído (mas onde ele mesmo, como vimos antes, não se consegue manter sem resvalar para o sermão): no mercado. Porque na verdade o que Pacheco Pereira faz é uma pergunta platónica pura: «Aonde posso eu ler a denúncia de um mundo que é só sombra e ilusão? Um mundo em que a ilusão substitui a verdade do trabalho e da obra? Um mundo, por isso, ontologicamente falso?». Se Pacheco Pereira não pode ler essa denúncia em lugar nenhum, então isso só pode significar (i) que a crítica não existe. Mais importante, porém, é perceber que (ii) justamente porque a crítica não existe – aquilo a que entre nós se chama crítica é, afinal, apenas ilusionismo – o único critério de verdade para trabalhos e obras é, só pode ser, o mercado, essa versão profana da «coisa em si». Percebemos enfim que as perguntas de Pacheco Pereira pela crítica, como a sua indignação ante o compadrio, são apenas e só retórica agonística: a retórica de um liberal que pessoalmente se dá muito bem com o mercado (e que se reinventa mediaticamente todos os dias); mas que estranhamente, como vimos, quando lhe convém atacar o campo da cultura, recalca a mecânica do mercado em benefício de uma moralidade avulsa.Até porque, se a creolina do mundo da cultura é o mercado, o qual nos reconduziria à verdade desmistificada daquela, então a crítica, enquanto mediação, é de todo dispensável. O mercado, na medida em que é uma redução fenomenológica das brumas da cultura, é uma entidade dotada de suficiente auto-consciência. É um quase-transcendental que «faz encomendas» e assim faz mundo (um mundo, que Pacheco Pereira tende a confundir com o mundo). O nome último e feliz dessa auto-consciência, no momento em que «vem publicamente a si», é marketing. Mas isso, não preciso eu de explicar a Pacheco Pereira.

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