Gay: casa e cala-te. E força lá 1 sorriso na cara, pá!

15-08-2015
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“(…) Anda cá para fora, que te quero ver bem…

– Ná, que minha mãe disse que me acautelasse da senhora raposa…

– Ora, ora, ora! Que mal faço eu! Tua mãe é muito desconfiada. Apostou um dia comigo que as galinhas fugiam de mim. Apostou e perdeu. Fomos à eira onde as galinhas andavam a rapar… Falei com a pedrês, ri-me com a barbuda, dei um abraço ao galo, de quem sou amiga do colégio, e não houve uma só asa que batesse para largar. Desde esse dia, tomou-me tal embirração que não me pode ver. Que te acautelasses de mim…! Ora, ora, ora!”

Romance da Raposa, Aquilino Ribeiro

Perdoar-me-ão a referência às manhas e engenhos da salta-pocinhas, mestre de todos os ardis, farsas e manipulações, e que sempre foi minha personagem de delícia, mas foi mesmo essa a vontade louca de releitura que me assaltou ao ler este texto da Fernanda Câncio: my own private idaho

Acontece que, ao contrário da raposinha, que sempre me foi simpática e me ensinou coisas da vida, é bastante desagradável o conjunto de manipulações operadas neste texto, que enganou, bem enganados, amigos e amigas minhas que nele viram apenas uma memória e que, de alguma forma, utiliza a memória do Gonçalo Diniz contra posições políticas de que tenho sido porta-voz, e me coloca inocuamente ao lado das referências elogiosas ao Gonçalo, como se não fossem as posições políticas que tenho defendido o alvo da invectiva que na verdade é o mote do texto. Das posições políticas referidas, mas caricaturizadas pela Fernanda, eu meto a carapuça, mas não a dessa ficção do que seriam as posições de uma parte dos movimentos que lutam pelos direitos sexuais, e pela emancipação lgbt em particular. Quanto ao Gonçalo, de quem eu e a Fernanda somos amigos – eu esboçaria um sorriso se o texto da Fernanda fosse sobre ele. Mas não é: reivindica o Gonçalo para falar do hoje.

E resolvi aceitar o desafio da desmontagem, do esclarecimento e da atribuição de nomes, sobretudo por justiça ao Gonçalo, que tem voz própria, que não devia ser para aqui chamado a não ser por mote próprio e, já agora, a mim mesmo, que ainda consigo ficar surpreendido com a marcação cerrada e a aparente ordem de quarentena que parece ter sido emitida no último ano à actividade política de toda a parte do activismo LGBT, onde me incluo, que não alinhou em perder o critério de movimento social para fazer vénias ao PS ou manifestações de louvor à porta do Cavaco, que sabe que o Sócrates não nos deu nada que não tenhamos construído e tomado de assalto por nós mesmos nos últimos 15 anos (eu), 20 e mais anos (outros e outras), nem pensa que para defender um direito legal e político seja necessário fazer apologias nem retomar um discurso moralizador da conjugalidade e da família, numa espécie de “quantos mais hetero formos, mais aceites seremos” que é um tiro no pé, mas sempre acusando de obstaculizar quem desconfia da instituição casamento ou desconfiou da sua centralização forçada, de fazermos “um julgamento das escolhas de vida, pessoais” de quem acredite mesmo no casamento e só queira ter uma vida “normal” e mais protegida da homofobia, como se duvidar fosse fazer parte do coro homofóbico, querer viver outros modelos fosse querer impedir de viver os outros, e propor alternativas de pensamento e acção fosse necessariamente opormo-nos a direitos como os do casamento e outras propostas para a “igualdade” que melhorem as vidas de tod@s, ou “auto-excluir-nos da festa”. Quando, na verdade, é quem vê no casamento “a chave do armário” que diz aos restantes – a um movimento social – que agora (que é tempo de crise) é tempo de festa e devemos ficar caladinhos, tal como durante os últimos 6 anos foram exigindo silêncio a tudo e todos para que passasse o casamento.

Penso que a principal desonestidade do texto da Fernanda é não esclarecer com quem se bate, como se, não conseguindo contornar determinadas vozes indesejáveis, nomeá-las com clareza fosse reconhecer-lhes a importância que não conseguiu ainda, mesmo findo o processo do casamento, deixar de lhes atribuir. Mas ocorre-me que nem a Fernanda sabe bem com quem se bate.

O principal de uma sucessão de enganos: “se era bom há dez anos, agora ainda tem de vos saber bem”. É a comparação cega entre o final dos anos 90 – e o processo de aprovação da Lei de Uniões de Facto – que não se conta tão simplesmente como a Fernanda o faz, porque o PS começou por aprovar uma lei discriminatória e só três anos depois, sob intensa pressão, incluindo da ILGA e do GTH, é que alargou o âmbito da lei – e o recente processo do casamento.

A Fernanda argumenta (por exemplo com o código penal de 82) que a lei de uniões de facto não foi a primeira legislação explicitamente discriminatória em função da orientação sexual criada em democracia, mas está enganada. Sim, foi a primeira legislação original no explicitar de uma discriminação não herdada do texto dos códigos fascistas. As outras, como o código de 82, limitaram-se grosso modo a não alterar o que já era norma durante o Estado Novo. E, pela lógica da Fernanda, se, na altura das Uniões de Facto, o movimento LGBT achou bem que se negociasse uma União de Facto sem adopção – não havia outra maneira e tínhamos poucas vitórias para mostrar – 10 anos depois teríamos de continuar a achar que cláusulas discriminatórias explícitas são uma boa forma de fazer aprovar direitos.

É uma lógica menorizadora da inteligência, e do crescimento do movimento LGBT. Há 15 anos, eu considerava aceitável, nas escolas que percorria a falar de homossexualidade, sustentar que “os homossexuais não eram promíscuos”. Então, não existia movimento, não existiam associações, a internet dava os primeiros passos, e encontrávamo-nos numa travessia do deserto e numa situação de discurso defensivo, quase auto-justificativo. Hoje, quando me falam da “promiscuidade dos homossexuais”, eu pergunto o que se chama aos 40 por cento de heterossexuais que usam os serviços de prostitutas e, já agora, com que direito se faz moral sobre as vidas sexuais dos outros, e que “promiscuidade” é um termo com uma carga moral inaceitável, e que antes promíscuo assumido do que hipócrita de uma pretensa monogamia quase sempre falsa. Sobretudo, que as vivências sexuais – e morais – homo são tão diversas como as hetero (embora mais divertidas, do meu ponto de vista parcial). Por exemplo.

Nos anos 90, como a Fernanda bem lembra, não tínhamos nada, e o movimento dava os primeiros passos. O que então poderia ser aceitável, não serve como bitola de hoje. Nem a nossa exigência é a mesma. Nem o PS é o mesmo, nem o país.

Outro bom exemplo: a recente reportagem da jornalista Céu Neves, publicada no dia 22 de Maio pelo DN, “Viagem ao Mundo dos Transexuais”. É um artigo que eu e muitos leríamos com bons olhos há dez anos atrás, talvez há menos, e o problema não estará mais no critério jornalístico de quem se ouve e quem não se ouve, do que no discurso médico ou mesmo nos discursos transexuais, alguns deles auto-discriminatórios. Quem acompanha hoje minimamente o debate actual do activismo transexual (não o adiar para depois do casamento ajudou), não pode ver com bons olhos um artigo que repete a abordagem a esse “mundo” (estranho e à parte) “dos transexuais” via discurso médico, prisma patologizante, ou discursos de auto-vitimização que não têm nada de emancipatório, nem perdem legitimidade por se olhar em volta e perceber que estamos noutra fase de exigência e que felizmente já existem outros discursos, até médicos, quanto mais transexuais.**

Acontece que há dez anos o movimento trans não falava de “despatologização”, e eu não saberia sustentar todas estas posições que defendo hoje. Mas, hoje, o risco de ignorar a parte médica da questão é que podemos demasiado facilmente ser levados a legislar sobre transexualidade sem alterar nada nesse domínio particular, o que seria o mesmo que estar quieto, na melhor das hipóteses. Aguardo com expectativa o anunciado projecto-Lei do PS, para saber quem incluirá, quem determina quem ele inclui, o que resolve a quem, por exemplo se faz depender documentos de cirurgia e se faz depender tudo – a vida das pessoas – do crivo dos médicos do “protocolo oficial”, porque para isso mais valia realmente estar quieto.

Não, o que seria aceitável há dez anos não é necessariamente aceitável hoje.

Mas voltando ao texto da Fernanda, ao contrário do que afirma o Paulo Vieira, estas não são “memórias perdidas”. São até bastante recentes, bem vivas. Como a Fernanda acabou de provar, aliás: eu, ela, o Gonçalo, ainda cá andamos. Espantosamente, lembro-me de encontrar a Fernanda e o Gonçalo no mah-jong (nessa noite, acho?), que fiquei então a saber o que era, e de estarmos bem. Eu estava de passagem, a distribuir materiais no Bairro, podiam ser postais do arraial da ILGA, onde eu era, na altura, bem-vindo. A Fernanda era já uma jornalista investida na denúncia da homofobia legal e em dar visibilidade ao activismo emergente, e eu e o Gonçalo começávamos a conhecer-nos um pouco mais nessa altura, e a confluir em acção. “Foi só há 11 anos”, como a Fernanda diz, mas eu não “vim agora” (nem levámos SÓ onze anos a chegar aqui), muito menos viemos fazer “prognósticos antes do fim do jogo”, que para nós também não termina com a parentalidade ou sequer nas leis. Eu começava nessa altura a descobrir na pele a diferença entre um jornalismo activista e o activismo propriamente dito, foi mais ou menos na altura em que o meu activismo, a par de considerações de incompatibilidade ética sobre a realidade da profissão, me custou o jornalismo, e me deu as primeiras indicações do que teria de sacrificar para fazer o que faço.

Sou amigo do Gonçalo Diniz, que sim, foi o primeiro presidente da ILGA e seu co-fundador, e reconheço-lhe várias qualidades que não existem no actual perfil sectário da ILGA. Penso que temos, eu e ele, um respeito particular daqueles que só mesmo a chocar/inevitavelmente confluir – encontrar alguém que nos entende numa travessia do deserto – nos caminhos iniciais de luta pública por uma causa. Sobre o Gonçalo, é meu amigo e basta, não o invoco, porque seria abuso. Porque o Gonçalo não está aqui agora a intervir ou para ser disputado (?), somos nós que estamos aqui, Fernanda. O Gonçalo vive em Inglaterra, está bem e isso basta, e nem sei, nem presumo, o que ele pensa – se é que pensa muito sobre isto – ou pensaria se aqui estivesse, admito até que provavelmente estaria em desacordo comigo.

O problema não é, como dizes, apenas o casamento ter passado com uma discriminação explícita sobre adopção, isso é o quotidiano do nosso parlamento (a tragédia real, para mim, é mais que uma parte do movimento tenha defendido essa estratégia de silenciamento a ferros do tema da homoparentalidade e outros, querendo impor a agenda do casamento durante anos como agenda única do conjunto do activismo); sobre as questões da parentalidade continuaremos a batalhar, ninguém esperava que passassem agora e a questão não era essa. Se a urgência de transformação dos movimentos sociais fosse a dos partidos políticos, estávamos bem tramados. A crer na Fernanda, há uns activistas estúpidos que chegaram agora, que não vêm pela causa mas para ficarem associados à “vitória”, pelos “louros”, que se auto-excluem (?) de uma vitória que é o melhor do mundo, e, claro, não fizeram nada nos últimos dez anos para que isto fosse possível, e sobretudo não têm legitimidade para duvidar ou propor outros caminhos, e muito menos para não explodirem de alegria.

O problema é fundamentalmente que se duvide. Não se pode lutar pelo direito ao casório desconfiando dele, só se pode ser contra ou a favor. Não se pode, como eu fiz, lutar pelo casamento mesmo achando errado o afunilamento temático e excessiva centralização nele, e mais por entender que o ano que passou seria importante no combate à homofobia, foi com o casamento, poderia ter sido com outra coisa. O problema é, em grande medida, que se veja o casamento ou sequer as mudanças legais como O problema, todo ele, ou ele mais do que outros, e que na lógica dos “pequenos passos”, ou de “um passo de cada vez” – que é a lógica legislativa e parlamentar mas não TEM de ser e NÃO DEVE ser a de um movimento social que mereça o nome – é uma vez mais a lógica exclusora, que privilegia as reivindicações de uma minoria de gays sobre as das restantes partes do LGBT, as maiorias sobre as minorias dentro das minorias, hoje o casamento, amanhã os transexuais (melhor, deixem lá o casamento, que está resolvido e já chateia, e passemos já hoje à s pessoas transexuais), e, uma vez “os transexuais”, quem deixamos de fora desta vez? Isso não é um movimento social…

O problema é um sistema político heteronormativo e sexista. O problema é a discriminação. O problema é a crise, que a agrava, e à exploração. O problema é a forma sectária como se age nos movimentos sociais. Os problemas são muitos e muitas pessoas andam mal e têm problemas. Nem todo o movimento LGBT pensa da mesma forma, nem todo o movimento LGBT tem os os mesmos meios e fins, está rendido ao PS ou quer ser a sua expressão no tema, nem todo o movimento LGBT acha que o casamento é a melhor bandeira do mundo – mas TODO ele contribuiu para o aprovar-, nem todo o movimento LGBT tem um emprego na CIG (mas aprecio a paciência de quem esteja a começar a fazer alguma educação positiva nessas paragens, é terreno virgem), nem todo o movimento LGBT se fecha sequer na causa do umbigo dos “direitos lgbt” como isolada do resto do mundo, e nem todas as pessoas LGBT querem para si um modelo de vida heterossexualizado ou integrado numa sociedade cuja estrutura de reprodução da homofobia se mantém relativamente inalterada. Não estamos nisto por louros, estamos nisto porque somos activistas e sonhamos com um dia em que não tenhamos de entrar e voltar a sair do armário 15 vezes ao dia. Que doa a alguém a afirmação desta diversidade, que não retira legitimidade a quaisquer outras formas de actuação ou escolhas de vida, e que ela seja entendida como um ataque sectário, isso é que é espantoso, porque não é mais do que uma afirmação – várias – de riqueza e ambição de um movimento social e político cheio de gente diferente. E querer calá-las, para mais em nome de processos políticos pouco consensuais, isso sim, é sectário. As minorias caladas pelas maiorias sob acusação de, por existirem, quererem impedir o progresso das maiorias.

O trabalho institucional é legítimo, as ideias e esforços da ILGA são legítimos. A ILGA acha que é, mas não é, o meu inimigo. A ILGA é-me complementar, é parte legítima e fundadora de um movimento social. São meus parceiros na parte das causas lgbt que partilhamos. Também são, na minha opinião, particularmente conservadores, e isso era escusado, mesmo para um trabalho institucional. A ILGA tem legitimidade para se fundir com o PS? Tem. A CIG tem legitimidade para contratar activistas LGBT e estes/estas para aceitarem? Sim. É um processo útil? Será, em alguma medida. Que a CIG faça das associações que financia uma espécie de “interlocutores” oficiais – exclusivos, claro, e estas deixem –, dando a entender que está a falar com o conjunto de um movimento, não me surpreende, são processos que conhecemos noutros movimentos, e não me toca, porque eu nunca pretendi ser interlocutor da CIG nem do aparelho de Estado, que aliás abomino. Tudo isso tem legitimidade. Onde não existe legitimidade é para associações de pendor hegemónico a quererem continuamente resumir o movimento a si mesmas e impor a todos uma agenda monocolor, para um PS que acha que pode decidir quem fala e quem se cala nos movimentos sociais, para tácticas de lodo que confundem o âmbito dos partidos com o que é considerado como aceitável para um movimento social, para tácticas de pântano que resumem um “sim, mas” a um “contra”, e muito menos, para querer resumir um movimento a uma das suas expressões. Estamos todos na festa (ela é muito, muito nossa, lá está, não é mais de uns do que de outros, é de todos e todas que contribuíram para este avanço particular), como estivemos todos em luta (pelo acesso ao casamento e, alguns de nós, por muito mais), não estamos é necessariamente todos da mesma maneira ou exactamente nas mesmas lutas. Parece que incomoda.

Há aqui um movimento social que o PS – com excepções individuais, que é, aliás, o que pauta o nosso sistema partidário em geral – desprezou profundamente nos 10 anos de movimento que passaram, mesmo quando mexeu no tema, e isto sem lhe retirar (ao PS) nada da precipitação de mudanças legais que viabilizou no período recente, e que no abrir do século XXI eram… inevitáveis, a não ser que quiséssemos esperar ainda pelos países do Leste Europeu e sermos mesmo, mesmo os últimos europeus a começar a mexer nisto. Começámos nos anos 90, 30 anos depois de toda a Europa Ocidental, acordaram tarde… mais vale tarde do que nunca, não nos venham é dizer que são pioneiros. Temos das legislações mais avançadas e foi muito rápido? Claro, foi nos anos 90… lol Não nos venham dizer que o PS de hoje é o melhor do mundo, isso não se mede apenas pela temática LGBT, e o PS quer hoje falar connosco – mais de nós do que connosco – como nós queríamos que nos falasse há dez anos… Há activistas e activismos que verão passar o casamento, a homoparentalidade, verão passar uma ou várias Leis de Identidade de Género, verão passar os governos PS, os da direita, deputados gays, presidentes de câmara lésbicas e até os activistas que forem passando para activismos de sofá, e continuarão, no entanto, a dizer que os problemas que combatem não estão resolvidos, a denunciar um sistema político heteronormativo que não terá alterado a sua essência, e para quem há muitas outras lutas em jogo do que aquelas que a Fernando Câncio quer, legitimamente, travar, ou que sectores privilegiados da população LGBT não ambicionam. O que não é legítimo é querer desclassificar partes de um movimento sem o nomear, ainda por cima apenas por se atreverem a manifestar-se noutra linha ou entenderem a situação de outra forma, ou quererem ir mais longe. Não se confunda é a relativização da importância do casamento com uma violação de um sacrossanto consenso, porque ele nunca existiu, nem se ridicularizem as alternativas aos discursos “familiarizantes” e heteronormalizantes das vivências lgbt.

Dizer que não queremos estar felizes à força, casar e calar, é entendido como um ataque a quem quer fazê-lo. Ficai lá com os louros do casamento, se louros buscais. O casamento foi “um grande passo que vai mudar a vida de muita gente?” Não. Foi um passo, o debate foi importante, na prática a lei em si mudará a vida de poucos, e, no simbólico, é limitado o efeito, incluindo face à imponderabilidade da crise económica que atravessamos e das suas consequências sociais e backlashes. Mudará as vidas de uns mais do que as de outras, não mudará a vida da maioria, não altera por si uma relação de forças, e aprovar normas discriminatórias junto com avanços formais é contraproducente. Mas parece que denunciá-lo é que é ser estúpido, e será excluirmo-nos de uma “Vitória” tão “limpa” que nem se admite que é contraditória.

O que a Fernanda não entende é que não está a lidar (só) com o quintal do PS no movimento associativo – está a lidar com um movimento social diverso. E não entender que ele é diverso, politizado, consciente, que inclui grupos e activistas com objectivos de transformação social muito para lá da pirâmide legal ou da “igualdade” formal; e mete tudo no mesmo saco, como se as pessoas de que fala fossem umas desmancha-prazeres que apareceram “agora” para estragar a festa, ignorando que são quem também esteve a construir o dito movimento, incluindo as que já o faziam antes da ILGA e os que de nós contribuímos para a própria ILGA e até para a sua agenda reivindicativa. Não, não chegámos agora. Não casamos e calamos. Não nos governamentalizamos nem profissionalizamos. Não lutamos todos e todas pela “integração” cega na sociedade hetero ou apenas por mudanças legais, não nos satisfazemos nem alegramos com os ritmos e hesitações (mortalmente lentos) dos partidos na temática, não comemos agendas únicas nem alheias, nem que não sejam por nós sentidas, e daqui a 10 anos, edifício legal tratadinho ou não, veremos que contradições cá continuam, e quem continua ao lado das mesmas pessoas neste mesmo combate – que não é pelo casamento, é por uma emancipação vasta e está aí para muita décadas, mais do que aquelas para as quais a solidariedade política da Fernanda com esta causa alcança ou justificaria, suponho, até porque, para ela, o movimento lgbt parece resumir-se hoje à sua vertente institucional e legalista, e isso tem um prazo.

Concluiria dizendo que há mesmo muitas diferenças entre o jornalista implicado e o activista dedicado. Invectivar um movimento social e tomar partido a partir de um pedestal é diferente de fazê-lo quando embrenhamos no movimento as nossas vidas. Da mesma forma que é valoroso, mas não é bem o mesmo, ser solidário com uma causa, do que ter todo os poros do corpo há mais de 10 anos a quererem gritar, a forçarem-nos a romper o medo e a timidez e a sermos activistas, e a violarmos todos os átomos do nosso ser reservado para nos forçarmos a fazer uma representação pública, e a recusarmos que falem por nós – heteros ou homos conservadores – porque somos parte do universo de fufas, paneleiros, trans e tantos outros cujo único problema não são os direitos legais ainda vedados, mas o sentir quotidiano de uma sociedade organizada para discriminar, e, lá está, queremos dizê-lo e combatê-lo, e não temos, não teremos, um emprego na CIG que nos proteja. O Gonçalo também não teve. Portanto, seriedade, se é para discutir política deixemos os amigos ausentes em paz, e, já agora, nome aos bois.

**A Céu Neves não incorre mais em erro do que um recente folheto da ILGA sobre transexualidade, útil, bem feito, mas que peca (gravemente) pela omissão, quando na descrição da problemática legal resume a discriminação à obrigação de passagem por um tribunal e pelo instituto de medicina legal (para mostrar o que se tem entre as perninhas) para mudança de sexo e nome nos documentos de identificação, como se não fossem nada os anos e anos de arrasto, dissuasão e formatação psiquiátrica obrigatória, com obrigação de viver um teste de vida real no género reivindicado, sem o qual não se podem aceder à cirurgia sem a qual não têm direito a alterar esse dados nos documentos, ignorando absolutamente a parte do problema que É o próprio processo médico em Portugal, onde o período mínimo de 2 anos de “teste de vida real” para se ter acesso à cirurgia corresponde ao período MÁXIMO estipulado em Espanha para a conclusão de todo um processo, com cirurgia ou não, e com documentos novos incluídos. De uma vez por todas, quanto ao “mundo” dos transexuais, que por acaso é o nosso: O “sexo” é uma assignação atribuída à nascença – médica– com exclusiva e errónea base nos órgãos genitais externos. O “Género” é igualmente uma assignação feita à nascença pelos médicos com exclusiva e errónea base nos órgãos sexuais externos. É por isto que as crianças intersexuais, decretadas anormais, são operadas à nascença, com o fim de as normalizar. Ora, não se nasce com um sexo ou com um género, nasce-se apenas com órgãos sexuais externos. Não existe nenhum “erro” da natureza – são as assignações médicas que estão erradas, presas a uma concepção binária ultrapassada, genitalista e essencialista de macho-fêmea. Hoje, outras vozes na ciência fazem pesquisas no sentido de deixar de assignar um “sexo” unicamente com base nos genitais externos, compreendendo múltiplos factores, dos cromossomas e hormonas à psique e à socialização. É de bradar aos céus o grau de essencialismo de declarações como as do médico segundo o qual “um transexual que fez as cirurgias e requereu a mudança da identidade de género, do ponto de vista social, é homem ou mulher, mas, do ponto de vista biológico e da sua identidade, é obviamente um transexual”, como se uma identidade trans tivesse ligação à biologia das pessoas, e sobretudo como se estivéssemos predestinados biologicamente a um papel/género com base na nossa anatomia (o que, em última análise justifica a discriminação, tornando-a “naturalmente evidente”). Mais pode ser dito sobre o artigo: Os números de pessoas trans em Portugal apontados pelo mesmo médico são de morrer a rir, não tomando em conta senão as pessoas que seguem o protocolo “oficial” de transexualidade nos hospitais públicos, e deitando ao caixote do lixo – que é o que faz o dito protocolo – todas as pessoas que não entram nas suas caixinhas apertadas de “transexual” ou de “macho e fêmea”. A inflexão dos últimos anos do movimento trans no sentido de questionar a classificação da “transexualidade” como doença mental não tem qualquer peso no artigo, mesmo quando se tornou já em lei na França e o mesmo se debate em Espanha.

“(…) Anda cá para fora, que te quero ver bem…

– Ná, que minha mãe disse que me acautelasse da senhora raposa…

– Ora, ora, ora! Que mal faço eu! Tua mãe é muito desconfiada. Apostou um dia comigo que as galinhas fugiam de mim. Apostou e perdeu. Fomos à eira onde as galinhas andavam a rapar… Falei com a pedrês, ri-me com a barbuda, dei um abraço ao galo, de quem sou amiga do colégio, e não houve uma só asa que batesse para largar. Desde esse dia, tomou-me tal embirração que não me pode ver. Que te acautelasses de mim…! Ora, ora, ora!”

Romance da Raposa, Aquilino Ribeiro

Perdoar-me-ão a referência às manhas e engenhos da salta-pocinhas, mestre de todos os ardis, farsas e manipulações, e que sempre foi minha personagem de delícia, mas foi mesmo essa a vontade louca de releitura que me assaltou ao ler este texto da Fernanda Câncio: my own private idaho

Acontece que, ao contrário da raposinha, que sempre me foi simpática e me ensinou coisas da vida, é bastante desagradável o conjunto de manipulações operadas neste texto, que enganou, bem enganados, amigos e amigas minhas que nele viram apenas uma memória e que, de alguma forma, utiliza a memória do Gonçalo Diniz contra posições políticas de que tenho sido porta-voz, e me coloca inocuamente ao lado das referências elogiosas ao Gonçalo, como se não fossem as posições políticas que tenho defendido o alvo da invectiva que na verdade é o mote do texto. Das posições políticas referidas, mas caricaturizadas pela Fernanda, eu meto a carapuça, mas não a dessa ficção do que seriam as posições de uma parte dos movimentos que lutam pelos direitos sexuais, e pela emancipação lgbt em particular. Quanto ao Gonçalo, de quem eu e a Fernanda somos amigos – eu esboçaria um sorriso se o texto da Fernanda fosse sobre ele. Mas não é: reivindica o Gonçalo para falar do hoje.

E resolvi aceitar o desafio da desmontagem, do esclarecimento e da atribuição de nomes, sobretudo por justiça ao Gonçalo, que tem voz própria, que não devia ser para aqui chamado a não ser por mote próprio e, já agora, a mim mesmo, que ainda consigo ficar surpreendido com a marcação cerrada e a aparente ordem de quarentena que parece ter sido emitida no último ano à actividade política de toda a parte do activismo LGBT, onde me incluo, que não alinhou em perder o critério de movimento social para fazer vénias ao PS ou manifestações de louvor à porta do Cavaco, que sabe que o Sócrates não nos deu nada que não tenhamos construído e tomado de assalto por nós mesmos nos últimos 15 anos (eu), 20 e mais anos (outros e outras), nem pensa que para defender um direito legal e político seja necessário fazer apologias nem retomar um discurso moralizador da conjugalidade e da família, numa espécie de “quantos mais hetero formos, mais aceites seremos” que é um tiro no pé, mas sempre acusando de obstaculizar quem desconfia da instituição casamento ou desconfiou da sua centralização forçada, de fazermos “um julgamento das escolhas de vida, pessoais” de quem acredite mesmo no casamento e só queira ter uma vida “normal” e mais protegida da homofobia, como se duvidar fosse fazer parte do coro homofóbico, querer viver outros modelos fosse querer impedir de viver os outros, e propor alternativas de pensamento e acção fosse necessariamente opormo-nos a direitos como os do casamento e outras propostas para a “igualdade” que melhorem as vidas de tod@s, ou “auto-excluir-nos da festa”. Quando, na verdade, é quem vê no casamento “a chave do armário” que diz aos restantes – a um movimento social – que agora (que é tempo de crise) é tempo de festa e devemos ficar caladinhos, tal como durante os últimos 6 anos foram exigindo silêncio a tudo e todos para que passasse o casamento.

Penso que a principal desonestidade do texto da Fernanda é não esclarecer com quem se bate, como se, não conseguindo contornar determinadas vozes indesejáveis, nomeá-las com clareza fosse reconhecer-lhes a importância que não conseguiu ainda, mesmo findo o processo do casamento, deixar de lhes atribuir. Mas ocorre-me que nem a Fernanda sabe bem com quem se bate.

O principal de uma sucessão de enganos: “se era bom há dez anos, agora ainda tem de vos saber bem”. É a comparação cega entre o final dos anos 90 – e o processo de aprovação da Lei de Uniões de Facto – que não se conta tão simplesmente como a Fernanda o faz, porque o PS começou por aprovar uma lei discriminatória e só três anos depois, sob intensa pressão, incluindo da ILGA e do GTH, é que alargou o âmbito da lei – e o recente processo do casamento.

A Fernanda argumenta (por exemplo com o código penal de 82) que a lei de uniões de facto não foi a primeira legislação explicitamente discriminatória em função da orientação sexual criada em democracia, mas está enganada. Sim, foi a primeira legislação original no explicitar de uma discriminação não herdada do texto dos códigos fascistas. As outras, como o código de 82, limitaram-se grosso modo a não alterar o que já era norma durante o Estado Novo. E, pela lógica da Fernanda, se, na altura das Uniões de Facto, o movimento LGBT achou bem que se negociasse uma União de Facto sem adopção – não havia outra maneira e tínhamos poucas vitórias para mostrar – 10 anos depois teríamos de continuar a achar que cláusulas discriminatórias explícitas são uma boa forma de fazer aprovar direitos.

É uma lógica menorizadora da inteligência, e do crescimento do movimento LGBT. Há 15 anos, eu considerava aceitável, nas escolas que percorria a falar de homossexualidade, sustentar que “os homossexuais não eram promíscuos”. Então, não existia movimento, não existiam associações, a internet dava os primeiros passos, e encontrávamo-nos numa travessia do deserto e numa situação de discurso defensivo, quase auto-justificativo. Hoje, quando me falam da “promiscuidade dos homossexuais”, eu pergunto o que se chama aos 40 por cento de heterossexuais que usam os serviços de prostitutas e, já agora, com que direito se faz moral sobre as vidas sexuais dos outros, e que “promiscuidade” é um termo com uma carga moral inaceitável, e que antes promíscuo assumido do que hipócrita de uma pretensa monogamia quase sempre falsa. Sobretudo, que as vivências sexuais – e morais – homo são tão diversas como as hetero (embora mais divertidas, do meu ponto de vista parcial). Por exemplo.

Nos anos 90, como a Fernanda bem lembra, não tínhamos nada, e o movimento dava os primeiros passos. O que então poderia ser aceitável, não serve como bitola de hoje. Nem a nossa exigência é a mesma. Nem o PS é o mesmo, nem o país.

Outro bom exemplo: a recente reportagem da jornalista Céu Neves, publicada no dia 22 de Maio pelo DN, “Viagem ao Mundo dos Transexuais”. É um artigo que eu e muitos leríamos com bons olhos há dez anos atrás, talvez há menos, e o problema não estará mais no critério jornalístico de quem se ouve e quem não se ouve, do que no discurso médico ou mesmo nos discursos transexuais, alguns deles auto-discriminatórios. Quem acompanha hoje minimamente o debate actual do activismo transexual (não o adiar para depois do casamento ajudou), não pode ver com bons olhos um artigo que repete a abordagem a esse “mundo” (estranho e à parte) “dos transexuais” via discurso médico, prisma patologizante, ou discursos de auto-vitimização que não têm nada de emancipatório, nem perdem legitimidade por se olhar em volta e perceber que estamos noutra fase de exigência e que felizmente já existem outros discursos, até médicos, quanto mais transexuais.**

Acontece que há dez anos o movimento trans não falava de “despatologização”, e eu não saberia sustentar todas estas posições que defendo hoje. Mas, hoje, o risco de ignorar a parte médica da questão é que podemos demasiado facilmente ser levados a legislar sobre transexualidade sem alterar nada nesse domínio particular, o que seria o mesmo que estar quieto, na melhor das hipóteses. Aguardo com expectativa o anunciado projecto-Lei do PS, para saber quem incluirá, quem determina quem ele inclui, o que resolve a quem, por exemplo se faz depender documentos de cirurgia e se faz depender tudo – a vida das pessoas – do crivo dos médicos do “protocolo oficial”, porque para isso mais valia realmente estar quieto.

Não, o que seria aceitável há dez anos não é necessariamente aceitável hoje.

Mas voltando ao texto da Fernanda, ao contrário do que afirma o Paulo Vieira, estas não são “memórias perdidas”. São até bastante recentes, bem vivas. Como a Fernanda acabou de provar, aliás: eu, ela, o Gonçalo, ainda cá andamos. Espantosamente, lembro-me de encontrar a Fernanda e o Gonçalo no mah-jong (nessa noite, acho?), que fiquei então a saber o que era, e de estarmos bem. Eu estava de passagem, a distribuir materiais no Bairro, podiam ser postais do arraial da ILGA, onde eu era, na altura, bem-vindo. A Fernanda era já uma jornalista investida na denúncia da homofobia legal e em dar visibilidade ao activismo emergente, e eu e o Gonçalo começávamos a conhecer-nos um pouco mais nessa altura, e a confluir em acção. “Foi só há 11 anos”, como a Fernanda diz, mas eu não “vim agora” (nem levámos SÓ onze anos a chegar aqui), muito menos viemos fazer “prognósticos antes do fim do jogo”, que para nós também não termina com a parentalidade ou sequer nas leis. Eu começava nessa altura a descobrir na pele a diferença entre um jornalismo activista e o activismo propriamente dito, foi mais ou menos na altura em que o meu activismo, a par de considerações de incompatibilidade ética sobre a realidade da profissão, me custou o jornalismo, e me deu as primeiras indicações do que teria de sacrificar para fazer o que faço.

Sou amigo do Gonçalo Diniz, que sim, foi o primeiro presidente da ILGA e seu co-fundador, e reconheço-lhe várias qualidades que não existem no actual perfil sectário da ILGA. Penso que temos, eu e ele, um respeito particular daqueles que só mesmo a chocar/inevitavelmente confluir – encontrar alguém que nos entende numa travessia do deserto – nos caminhos iniciais de luta pública por uma causa. Sobre o Gonçalo, é meu amigo e basta, não o invoco, porque seria abuso. Porque o Gonçalo não está aqui agora a intervir ou para ser disputado (?), somos nós que estamos aqui, Fernanda. O Gonçalo vive em Inglaterra, está bem e isso basta, e nem sei, nem presumo, o que ele pensa – se é que pensa muito sobre isto – ou pensaria se aqui estivesse, admito até que provavelmente estaria em desacordo comigo.

O problema não é, como dizes, apenas o casamento ter passado com uma discriminação explícita sobre adopção, isso é o quotidiano do nosso parlamento (a tragédia real, para mim, é mais que uma parte do movimento tenha defendido essa estratégia de silenciamento a ferros do tema da homoparentalidade e outros, querendo impor a agenda do casamento durante anos como agenda única do conjunto do activismo); sobre as questões da parentalidade continuaremos a batalhar, ninguém esperava que passassem agora e a questão não era essa. Se a urgência de transformação dos movimentos sociais fosse a dos partidos políticos, estávamos bem tramados. A crer na Fernanda, há uns activistas estúpidos que chegaram agora, que não vêm pela causa mas para ficarem associados à “vitória”, pelos “louros”, que se auto-excluem (?) de uma vitória que é o melhor do mundo, e, claro, não fizeram nada nos últimos dez anos para que isto fosse possível, e sobretudo não têm legitimidade para duvidar ou propor outros caminhos, e muito menos para não explodirem de alegria.

O problema é fundamentalmente que se duvide. Não se pode lutar pelo direito ao casório desconfiando dele, só se pode ser contra ou a favor. Não se pode, como eu fiz, lutar pelo casamento mesmo achando errado o afunilamento temático e excessiva centralização nele, e mais por entender que o ano que passou seria importante no combate à homofobia, foi com o casamento, poderia ter sido com outra coisa. O problema é, em grande medida, que se veja o casamento ou sequer as mudanças legais como O problema, todo ele, ou ele mais do que outros, e que na lógica dos “pequenos passos”, ou de “um passo de cada vez” – que é a lógica legislativa e parlamentar mas não TEM de ser e NÃO DEVE ser a de um movimento social que mereça o nome – é uma vez mais a lógica exclusora, que privilegia as reivindicações de uma minoria de gays sobre as das restantes partes do LGBT, as maiorias sobre as minorias dentro das minorias, hoje o casamento, amanhã os transexuais (melhor, deixem lá o casamento, que está resolvido e já chateia, e passemos já hoje à s pessoas transexuais), e, uma vez “os transexuais”, quem deixamos de fora desta vez? Isso não é um movimento social…

O problema é um sistema político heteronormativo e sexista. O problema é a discriminação. O problema é a crise, que a agrava, e à exploração. O problema é a forma sectária como se age nos movimentos sociais. Os problemas são muitos e muitas pessoas andam mal e têm problemas. Nem todo o movimento LGBT pensa da mesma forma, nem todo o movimento LGBT tem os os mesmos meios e fins, está rendido ao PS ou quer ser a sua expressão no tema, nem todo o movimento LGBT acha que o casamento é a melhor bandeira do mundo – mas TODO ele contribuiu para o aprovar-, nem todo o movimento LGBT tem um emprego na CIG (mas aprecio a paciência de quem esteja a começar a fazer alguma educação positiva nessas paragens, é terreno virgem), nem todo o movimento LGBT se fecha sequer na causa do umbigo dos “direitos lgbt” como isolada do resto do mundo, e nem todas as pessoas LGBT querem para si um modelo de vida heterossexualizado ou integrado numa sociedade cuja estrutura de reprodução da homofobia se mantém relativamente inalterada. Não estamos nisto por louros, estamos nisto porque somos activistas e sonhamos com um dia em que não tenhamos de entrar e voltar a sair do armário 15 vezes ao dia. Que doa a alguém a afirmação desta diversidade, que não retira legitimidade a quaisquer outras formas de actuação ou escolhas de vida, e que ela seja entendida como um ataque sectário, isso é que é espantoso, porque não é mais do que uma afirmação – várias – de riqueza e ambição de um movimento social e político cheio de gente diferente. E querer calá-las, para mais em nome de processos políticos pouco consensuais, isso sim, é sectário. As minorias caladas pelas maiorias sob acusação de, por existirem, quererem impedir o progresso das maiorias.

O trabalho institucional é legítimo, as ideias e esforços da ILGA são legítimos. A ILGA acha que é, mas não é, o meu inimigo. A ILGA é-me complementar, é parte legítima e fundadora de um movimento social. São meus parceiros na parte das causas lgbt que partilhamos. Também são, na minha opinião, particularmente conservadores, e isso era escusado, mesmo para um trabalho institucional. A ILGA tem legitimidade para se fundir com o PS? Tem. A CIG tem legitimidade para contratar activistas LGBT e estes/estas para aceitarem? Sim. É um processo útil? Será, em alguma medida. Que a CIG faça das associações que financia uma espécie de “interlocutores” oficiais – exclusivos, claro, e estas deixem –, dando a entender que está a falar com o conjunto de um movimento, não me surpreende, são processos que conhecemos noutros movimentos, e não me toca, porque eu nunca pretendi ser interlocutor da CIG nem do aparelho de Estado, que aliás abomino. Tudo isso tem legitimidade. Onde não existe legitimidade é para associações de pendor hegemónico a quererem continuamente resumir o movimento a si mesmas e impor a todos uma agenda monocolor, para um PS que acha que pode decidir quem fala e quem se cala nos movimentos sociais, para tácticas de lodo que confundem o âmbito dos partidos com o que é considerado como aceitável para um movimento social, para tácticas de pântano que resumem um “sim, mas” a um “contra”, e muito menos, para querer resumir um movimento a uma das suas expressões. Estamos todos na festa (ela é muito, muito nossa, lá está, não é mais de uns do que de outros, é de todos e todas que contribuíram para este avanço particular), como estivemos todos em luta (pelo acesso ao casamento e, alguns de nós, por muito mais), não estamos é necessariamente todos da mesma maneira ou exactamente nas mesmas lutas. Parece que incomoda.

Há aqui um movimento social que o PS – com excepções individuais, que é, aliás, o que pauta o nosso sistema partidário em geral – desprezou profundamente nos 10 anos de movimento que passaram, mesmo quando mexeu no tema, e isto sem lhe retirar (ao PS) nada da precipitação de mudanças legais que viabilizou no período recente, e que no abrir do século XXI eram… inevitáveis, a não ser que quiséssemos esperar ainda pelos países do Leste Europeu e sermos mesmo, mesmo os últimos europeus a começar a mexer nisto. Começámos nos anos 90, 30 anos depois de toda a Europa Ocidental, acordaram tarde… mais vale tarde do que nunca, não nos venham é dizer que são pioneiros. Temos das legislações mais avançadas e foi muito rápido? Claro, foi nos anos 90… lol Não nos venham dizer que o PS de hoje é o melhor do mundo, isso não se mede apenas pela temática LGBT, e o PS quer hoje falar connosco – mais de nós do que connosco – como nós queríamos que nos falasse há dez anos… Há activistas e activismos que verão passar o casamento, a homoparentalidade, verão passar uma ou várias Leis de Identidade de Género, verão passar os governos PS, os da direita, deputados gays, presidentes de câmara lésbicas e até os activistas que forem passando para activismos de sofá, e continuarão, no entanto, a dizer que os problemas que combatem não estão resolvidos, a denunciar um sistema político heteronormativo que não terá alterado a sua essência, e para quem há muitas outras lutas em jogo do que aquelas que a Fernando Câncio quer, legitimamente, travar, ou que sectores privilegiados da população LGBT não ambicionam. O que não é legítimo é querer desclassificar partes de um movimento sem o nomear, ainda por cima apenas por se atreverem a manifestar-se noutra linha ou entenderem a situação de outra forma, ou quererem ir mais longe. Não se confunda é a relativização da importância do casamento com uma violação de um sacrossanto consenso, porque ele nunca existiu, nem se ridicularizem as alternativas aos discursos “familiarizantes” e heteronormalizantes das vivências lgbt.

Dizer que não queremos estar felizes à força, casar e calar, é entendido como um ataque a quem quer fazê-lo. Ficai lá com os louros do casamento, se louros buscais. O casamento foi “um grande passo que vai mudar a vida de muita gente?” Não. Foi um passo, o debate foi importante, na prática a lei em si mudará a vida de poucos, e, no simbólico, é limitado o efeito, incluindo face à imponderabilidade da crise económica que atravessamos e das suas consequências sociais e backlashes. Mudará as vidas de uns mais do que as de outras, não mudará a vida da maioria, não altera por si uma relação de forças, e aprovar normas discriminatórias junto com avanços formais é contraproducente. Mas parece que denunciá-lo é que é ser estúpido, e será excluirmo-nos de uma “Vitória” tão “limpa” que nem se admite que é contraditória.

O que a Fernanda não entende é que não está a lidar (só) com o quintal do PS no movimento associativo – está a lidar com um movimento social diverso. E não entender que ele é diverso, politizado, consciente, que inclui grupos e activistas com objectivos de transformação social muito para lá da pirâmide legal ou da “igualdade” formal; e mete tudo no mesmo saco, como se as pessoas de que fala fossem umas desmancha-prazeres que apareceram “agora” para estragar a festa, ignorando que são quem também esteve a construir o dito movimento, incluindo as que já o faziam antes da ILGA e os que de nós contribuímos para a própria ILGA e até para a sua agenda reivindicativa. Não, não chegámos agora. Não casamos e calamos. Não nos governamentalizamos nem profissionalizamos. Não lutamos todos e todas pela “integração” cega na sociedade hetero ou apenas por mudanças legais, não nos satisfazemos nem alegramos com os ritmos e hesitações (mortalmente lentos) dos partidos na temática, não comemos agendas únicas nem alheias, nem que não sejam por nós sentidas, e daqui a 10 anos, edifício legal tratadinho ou não, veremos que contradições cá continuam, e quem continua ao lado das mesmas pessoas neste mesmo combate – que não é pelo casamento, é por uma emancipação vasta e está aí para muita décadas, mais do que aquelas para as quais a solidariedade política da Fernanda com esta causa alcança ou justificaria, suponho, até porque, para ela, o movimento lgbt parece resumir-se hoje à sua vertente institucional e legalista, e isso tem um prazo.

Concluiria dizendo que há mesmo muitas diferenças entre o jornalista implicado e o activista dedicado. Invectivar um movimento social e tomar partido a partir de um pedestal é diferente de fazê-lo quando embrenhamos no movimento as nossas vidas. Da mesma forma que é valoroso, mas não é bem o mesmo, ser solidário com uma causa, do que ter todo os poros do corpo há mais de 10 anos a quererem gritar, a forçarem-nos a romper o medo e a timidez e a sermos activistas, e a violarmos todos os átomos do nosso ser reservado para nos forçarmos a fazer uma representação pública, e a recusarmos que falem por nós – heteros ou homos conservadores – porque somos parte do universo de fufas, paneleiros, trans e tantos outros cujo único problema não são os direitos legais ainda vedados, mas o sentir quotidiano de uma sociedade organizada para discriminar, e, lá está, queremos dizê-lo e combatê-lo, e não temos, não teremos, um emprego na CIG que nos proteja. O Gonçalo também não teve. Portanto, seriedade, se é para discutir política deixemos os amigos ausentes em paz, e, já agora, nome aos bois.

**A Céu Neves não incorre mais em erro do que um recente folheto da ILGA sobre transexualidade, útil, bem feito, mas que peca (gravemente) pela omissão, quando na descrição da problemática legal resume a discriminação à obrigação de passagem por um tribunal e pelo instituto de medicina legal (para mostrar o que se tem entre as perninhas) para mudança de sexo e nome nos documentos de identificação, como se não fossem nada os anos e anos de arrasto, dissuasão e formatação psiquiátrica obrigatória, com obrigação de viver um teste de vida real no género reivindicado, sem o qual não se podem aceder à cirurgia sem a qual não têm direito a alterar esse dados nos documentos, ignorando absolutamente a parte do problema que É o próprio processo médico em Portugal, onde o período mínimo de 2 anos de “teste de vida real” para se ter acesso à cirurgia corresponde ao período MÁXIMO estipulado em Espanha para a conclusão de todo um processo, com cirurgia ou não, e com documentos novos incluídos. De uma vez por todas, quanto ao “mundo” dos transexuais, que por acaso é o nosso: O “sexo” é uma assignação atribuída à nascença – médica– com exclusiva e errónea base nos órgãos genitais externos. O “Género” é igualmente uma assignação feita à nascença pelos médicos com exclusiva e errónea base nos órgãos sexuais externos. É por isto que as crianças intersexuais, decretadas anormais, são operadas à nascença, com o fim de as normalizar. Ora, não se nasce com um sexo ou com um género, nasce-se apenas com órgãos sexuais externos. Não existe nenhum “erro” da natureza – são as assignações médicas que estão erradas, presas a uma concepção binária ultrapassada, genitalista e essencialista de macho-fêmea. Hoje, outras vozes na ciência fazem pesquisas no sentido de deixar de assignar um “sexo” unicamente com base nos genitais externos, compreendendo múltiplos factores, dos cromossomas e hormonas à psique e à socialização. É de bradar aos céus o grau de essencialismo de declarações como as do médico segundo o qual “um transexual que fez as cirurgias e requereu a mudança da identidade de género, do ponto de vista social, é homem ou mulher, mas, do ponto de vista biológico e da sua identidade, é obviamente um transexual”, como se uma identidade trans tivesse ligação à biologia das pessoas, e sobretudo como se estivéssemos predestinados biologicamente a um papel/género com base na nossa anatomia (o que, em última análise justifica a discriminação, tornando-a “naturalmente evidente”). Mais pode ser dito sobre o artigo: Os números de pessoas trans em Portugal apontados pelo mesmo médico são de morrer a rir, não tomando em conta senão as pessoas que seguem o protocolo “oficial” de transexualidade nos hospitais públicos, e deitando ao caixote do lixo – que é o que faz o dito protocolo – todas as pessoas que não entram nas suas caixinhas apertadas de “transexual” ou de “macho e fêmea”. A inflexão dos últimos anos do movimento trans no sentido de questionar a classificação da “transexualidade” como doença mental não tem qualquer peso no artigo, mesmo quando se tornou já em lei na França e o mesmo se debate em Espanha.

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