OS DIAS EM QUE O DN CONTOU: A longa e intensa campanha para as presidenciais de 1986 – a primeira volta foi a 26 de janeiro e a segunda a 16 de fevereiro – preencheu centenas de páginas no Diário de Notícias. Durante meses, não apenas no “período eleitoral”, o frenesim político que dividiu a esquerda, com quatro candidatos, e uniu a direita teve destaques sucessivos na primeira página. Os “ovos não foram colocados no mesmo cesto.” E Mário Soares desafiaria Cavaco durante uma década
Em França, Laurent Fabius, Michel Rocard e Lionel Jospin eram as principais “figuras socialistas” que iam disputar o “eleitorado” com Raymond Barre, Jacques Chirac e Valéry Giscard d’Estaing; Samora Machel acusava Lisboa de ser a “capital do banditismo armado” que não seguia os “bons exemplos dos EUA, da Grã-Bretanha, da Itália e da França que apoiavam Moçambique” na luta contra a Renamo; Cavaco Silva, primeiro-ministro, entrevistado na RTP, por Margarida Marante, anunciava o fim da “recessão” e o início de uma “fase de crescimento económico (…) o que quer dizer que vão aumentar os postos de trabalho”; os Dire Straits tinham um “videoclip executado por um computador”; em Monsanto decorriam as sessões do julgamento do processo das FP-25 – estava acesa a polémica sobre a conferência de imprensa “dos autoproclamados dirigentes” encapuzados que “a RTP transmitira no telejornal” – ; Fernando Nogueira, ministro adjunto, tinha anunciado que o Governo haveria de extinguir o “monopólio do Estado na TV” e Cavaco prometia o que Sá Carneiro já tinha prometido – “a Igreja poderá ter um canal de televisão”; a CEE estava prestes a fazer parte da vida dos portugueses, e com ela o IVA – “os Pirenéus deixam de ser fronteira”, escrevia o DN -; os aeroportos de Roma e Viena tinham sido alvo de dois atentados que provocaram 17 mortes e 115 feridos – a OLP e o grupo extremista Abu Nidal eram acusados de atacar os balcões da companhia aérea israelita El Al ; no campeonato registava-se a “maior assistência de sempre num estádio português”, cerca de 120 mil pessoas – “a moldura adequada para um bonito espectáculo” – assistiram ao empate do Benfica Porto que pôs o Sporting na liderança; o “piratinha do ar”, Rui Rodrigues, que “em 1981 tinha desviado um avião da TAP”, ouvia a sentença com alívio: “dois anos de prisão com pena suspensa”; nas eleições autárquicas, Krus Abecassis era eleito em Lisboa, Fernando Cabral no Porto, António Moreira em Coimbra – “as capitais tradicionais do País” – e o cenário nacional abria as hostilidades para as presidenciais: “PSD sobe, PRD decepciona, PS, CDS e APU estabilizam”. Uma certeza: “PSD e CDS ultrapassam número de mandatos da AD em 82.”
No Diário de Notícias, João Fragoso Mendes, João Fonseca, Fernando Diogo, Maria Guiomar Lima e Carlos Albino em breve iriam acompanhar aquela que seria a mais longa, e provavelmente a mais intensa e polémica, de todas as campanhas eleitorais portuguesas. O diretor, Mário Mesquita, que haveria de entrar em “regime de licença sem vencimento”, a seu pedido, por ser membro da Comissão Política e da Comissão Permanente da candidatura de Salgado Zenha” – à semelhança do que havia feito em 1980 na “campanha que levou à reeleição de Ramalho Eanes” -, acreditava que “qualquer tentativa de paralelismo”, entre autárquicas e presidenciais, “seria absurda, mas [que] o movimento tendencial do eleitorado e os indícios da sua fixação” eram “são elementos a não desprezar”. Freitas, escreveu Mesquita, estava garantido na segunda volta. Faltava saber quem seria o “antagonista com quem se confrontará à esquerda”. A premonição estava certa.
Freitas do Amaral venceria, a 26 de janeiro de 1986, as “primárias”, como o DN titulou, com quase 47% dos votos, tantos quantos os de Mário Soares (que “ultrapassa votação do PS”) e de Salgado Zenha (“aquém da votação PRD/APU”) juntos. Maria de Lurdes Pintassilgo ficaria “muito abaixo das previsões”. O PCP, que tinha abdicado do seu candidato Ângelo Veloso, em favor de Zenha, diria nesse dia, em comunicado, que foi “um desperdício votar em Lurdes Pintassilgo”. E o objetivo era, agora, travar os “perigos inerentes à eleição de um candidato de direita”.
A “reviravolta” que terá permitido a Soares um lugar na segunda volta, a 16 de fevereiro de 1986, aconteceu na Marinha Grande a 15 de janeiro. O tema foi manchete no DN: “Soares agredido” junto ao “portão da fábrica-escola Irmãos Stephens, por manifestantes, na sua maioria ligados à vidreira Manuel Pereira Roldão”. O candidato haveria de identificar “os agressores como apoiantes do PCP”. Os trabalhadores diriam que a culpa foi da “segurança de Soares (…) ao puxar das pistolas”.
Mas afinal o que houve de tão diferente nestas presidenciais de 1986 das outras campanhas eleitorais? “A completa incerteza do desfecho! E tão prolongada. E a confiança de Soares depois da Marinha Grande”, revela João Fonseca, jornalista que acompanhou, na altura, a campanha de Soares. “Um país bipolarizado. Dividido! E o Freitas num forcing total para tentar ganhar na primeira volta”, diz Fragoso Mendes, que, durante semanas, seguiu os passos de Freitas do Amaral.
“Qual é o título que vai dar à sua crónica amanhã?”, perguntou, várias vezes, Soares a João Fonseca. Estranho? “Absolutamente.” As eleições decorriam “numa altura em que os jornais tinha uma importância mediática que hoje não têm”. E Soares “não se intrometia na prosa. Queria apenas saber. E às vezes até ficava azedo.” Fragoso Mendes recorda o momento em que o staff de Freitas “apostou tudo” para evitar uma segunda volta. “A campanha teve, na última semana, todos os meios. Até houve um encontro a sós, no Alentejo, entre Cavaco e Freitas. Ficaram sentados num carro a conversar. É preciso não esquecer que ia ser eleito o primeiro civil para Presidente da República.”
A 17 de janeiro de 1986, o DN anuncia: “Soares Presidente.” “Venceu por um Estádio da Luz”, lembra Fragoso Mendes. Mário Mesquita escreveu, nesse dia, na primeira página: “Deus castigou duramente os vencedores de Outubro (…) parecia mesmo improvável que vencesse as presidenciais (…) veremos se saberá conter, no devido lugar, a pior construção de Soares primeiro-ministro e secretário-geral do PS – o clientelismo soarista e as suas indesejáveis sequelas institucionais.”
ARTUR CASSIANO
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OS DIAS EM QUE O DN CONTOU: A longa e intensa campanha para as presidenciais de 1986 – a primeira volta foi a 26 de janeiro e a segunda a 16 de fevereiro – preencheu centenas de páginas no Diário de Notícias. Durante meses, não apenas no “período eleitoral”, o frenesim político que dividiu a esquerda, com quatro candidatos, e uniu a direita teve destaques sucessivos na primeira página. Os “ovos não foram colocados no mesmo cesto.” E Mário Soares desafiaria Cavaco durante uma década
Em França, Laurent Fabius, Michel Rocard e Lionel Jospin eram as principais “figuras socialistas” que iam disputar o “eleitorado” com Raymond Barre, Jacques Chirac e Valéry Giscard d’Estaing; Samora Machel acusava Lisboa de ser a “capital do banditismo armado” que não seguia os “bons exemplos dos EUA, da Grã-Bretanha, da Itália e da França que apoiavam Moçambique” na luta contra a Renamo; Cavaco Silva, primeiro-ministro, entrevistado na RTP, por Margarida Marante, anunciava o fim da “recessão” e o início de uma “fase de crescimento económico (…) o que quer dizer que vão aumentar os postos de trabalho”; os Dire Straits tinham um “videoclip executado por um computador”; em Monsanto decorriam as sessões do julgamento do processo das FP-25 – estava acesa a polémica sobre a conferência de imprensa “dos autoproclamados dirigentes” encapuzados que “a RTP transmitira no telejornal” – ; Fernando Nogueira, ministro adjunto, tinha anunciado que o Governo haveria de extinguir o “monopólio do Estado na TV” e Cavaco prometia o que Sá Carneiro já tinha prometido – “a Igreja poderá ter um canal de televisão”; a CEE estava prestes a fazer parte da vida dos portugueses, e com ela o IVA – “os Pirenéus deixam de ser fronteira”, escrevia o DN -; os aeroportos de Roma e Viena tinham sido alvo de dois atentados que provocaram 17 mortes e 115 feridos – a OLP e o grupo extremista Abu Nidal eram acusados de atacar os balcões da companhia aérea israelita El Al ; no campeonato registava-se a “maior assistência de sempre num estádio português”, cerca de 120 mil pessoas – “a moldura adequada para um bonito espectáculo” – assistiram ao empate do Benfica Porto que pôs o Sporting na liderança; o “piratinha do ar”, Rui Rodrigues, que “em 1981 tinha desviado um avião da TAP”, ouvia a sentença com alívio: “dois anos de prisão com pena suspensa”; nas eleições autárquicas, Krus Abecassis era eleito em Lisboa, Fernando Cabral no Porto, António Moreira em Coimbra – “as capitais tradicionais do País” – e o cenário nacional abria as hostilidades para as presidenciais: “PSD sobe, PRD decepciona, PS, CDS e APU estabilizam”. Uma certeza: “PSD e CDS ultrapassam número de mandatos da AD em 82.”
No Diário de Notícias, João Fragoso Mendes, João Fonseca, Fernando Diogo, Maria Guiomar Lima e Carlos Albino em breve iriam acompanhar aquela que seria a mais longa, e provavelmente a mais intensa e polémica, de todas as campanhas eleitorais portuguesas. O diretor, Mário Mesquita, que haveria de entrar em “regime de licença sem vencimento”, a seu pedido, por ser membro da Comissão Política e da Comissão Permanente da candidatura de Salgado Zenha” – à semelhança do que havia feito em 1980 na “campanha que levou à reeleição de Ramalho Eanes” -, acreditava que “qualquer tentativa de paralelismo”, entre autárquicas e presidenciais, “seria absurda, mas [que] o movimento tendencial do eleitorado e os indícios da sua fixação” eram “são elementos a não desprezar”. Freitas, escreveu Mesquita, estava garantido na segunda volta. Faltava saber quem seria o “antagonista com quem se confrontará à esquerda”. A premonição estava certa.
Freitas do Amaral venceria, a 26 de janeiro de 1986, as “primárias”, como o DN titulou, com quase 47% dos votos, tantos quantos os de Mário Soares (que “ultrapassa votação do PS”) e de Salgado Zenha (“aquém da votação PRD/APU”) juntos. Maria de Lurdes Pintassilgo ficaria “muito abaixo das previsões”. O PCP, que tinha abdicado do seu candidato Ângelo Veloso, em favor de Zenha, diria nesse dia, em comunicado, que foi “um desperdício votar em Lurdes Pintassilgo”. E o objetivo era, agora, travar os “perigos inerentes à eleição de um candidato de direita”.
A “reviravolta” que terá permitido a Soares um lugar na segunda volta, a 16 de fevereiro de 1986, aconteceu na Marinha Grande a 15 de janeiro. O tema foi manchete no DN: “Soares agredido” junto ao “portão da fábrica-escola Irmãos Stephens, por manifestantes, na sua maioria ligados à vidreira Manuel Pereira Roldão”. O candidato haveria de identificar “os agressores como apoiantes do PCP”. Os trabalhadores diriam que a culpa foi da “segurança de Soares (…) ao puxar das pistolas”.
Mas afinal o que houve de tão diferente nestas presidenciais de 1986 das outras campanhas eleitorais? “A completa incerteza do desfecho! E tão prolongada. E a confiança de Soares depois da Marinha Grande”, revela João Fonseca, jornalista que acompanhou, na altura, a campanha de Soares. “Um país bipolarizado. Dividido! E o Freitas num forcing total para tentar ganhar na primeira volta”, diz Fragoso Mendes, que, durante semanas, seguiu os passos de Freitas do Amaral.
“Qual é o título que vai dar à sua crónica amanhã?”, perguntou, várias vezes, Soares a João Fonseca. Estranho? “Absolutamente.” As eleições decorriam “numa altura em que os jornais tinha uma importância mediática que hoje não têm”. E Soares “não se intrometia na prosa. Queria apenas saber. E às vezes até ficava azedo.” Fragoso Mendes recorda o momento em que o staff de Freitas “apostou tudo” para evitar uma segunda volta. “A campanha teve, na última semana, todos os meios. Até houve um encontro a sós, no Alentejo, entre Cavaco e Freitas. Ficaram sentados num carro a conversar. É preciso não esquecer que ia ser eleito o primeiro civil para Presidente da República.”
A 17 de janeiro de 1986, o DN anuncia: “Soares Presidente.” “Venceu por um Estádio da Luz”, lembra Fragoso Mendes. Mário Mesquita escreveu, nesse dia, na primeira página: “Deus castigou duramente os vencedores de Outubro (…) parecia mesmo improvável que vencesse as presidenciais (…) veremos se saberá conter, no devido lugar, a pior construção de Soares primeiro-ministro e secretário-geral do PS – o clientelismo soarista e as suas indesejáveis sequelas institucionais.”
ARTUR CASSIANO