PSD: ter poder ou ter razão?*

14-08-2015
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PSD: ter poder ou ter razão?*

Não interessa se Passos Coelho fala bem ou mal. Se mostra a mulher ou se a esconde. Se convida Nobre para as listas. Tal como em 2009 também não interessava se Manuela Ferreira Leite se explicava adequadamente, se interrompia a campanha para ir ver o neto ou se apanhava boleia de Alberto João Jardim.

Nada disso interessa. Acredito que os líderes do PSD se preparem para as campanhas e até que acreditem que depende deles ganhá-las ou perdê-las. Mas não só não é assim, como cada vez é menos assim. Neste caso os sociais-democratas escusam de culpar Sócrates, porque a culpa não é dele. Ele apenas beneficiou e potenciou um dos adquiridos da política portuguesa – a de que o PS é o partido natural de poder em Portugal – e sobretudo tornou evidente aos olhos de todos que o PSD sobrevive agarrado a flashes desconexos de memória – Sá Carneiro e Cavaco Silva – e a um panteão de razões não entendidas no seu tempo, mas que a posteridade confirma como fundamentadas. Manuela Ferreira Leite é sem dúvida a mais eloquente protagonista deste aparente paradoxo que transforma a posteriori os ex-líderes do PSD num poço de razões e de discernimento, características que escassos meses antes, quando eram líderes, todos asseveram faltar-lhes.

Já o PS vive de História e de ideologia. Colou a I República ao 25 de Abril de 1974, conseguiu fintar o PCP no que ao património de Abril respeita, reserva para si o lugar maior na nossa integração europeia e sobretudo criou uma versão simplificada da História de Portugal em que o PS é, numa versão humilde, pelo menos o motor da nossa História. Para esta concepção não é de modo algum irrelevante a figura majestática de Mário Soares, tutelando o regime há 37 anos.

É quase ocioso explicar que não existe nada de equivalente do lado do PSD.

Dirão que não é por causa disto que o PSD perde as eleições. Pois não. Perde-as sobretudo por falta de ideologia. Mas em abono da História e da verdade há que dizer que a falta de uma narrativa do partido e de um discurso que o legitime no poder contribui, em muito, para aquele ar de agremiação de egos desmedidos e regra geral desavindos que o PSD não só transmite, como faz absoluta questão de transmitir e que leva qualquer alma sensata a interrogar-se sobre a sua capacidade para exercer o poder.

Mas uma coisa é uma idiossincrasia – e esta acompanha os sociais-democratas desde a fundação e de alguma forma o país já nem espera que mudem. Outro assunto bem diverso é a falta de ideologia. Ninguém sabe o que defende o PSD ou porque o defende. Isso nem sempre foi um problema: no passado já era assim e Cavaco por pouco não teve três milhões de votos em 1991. Aliás, repetir Cavaco e o seu perfil de mais competência e menos ideologia foi uma obsessão durante anos para o PSD: havia de vir aquele que repetiria o milagre Cavaco e nessa ilusão foram queimando líderes. Mas o PSD esqueceu que Cavaco ganhou num país de gente que vivia mal, mas que achava que podia mudar a sua vida. De gente que via as eleições como um factor de mudança, quanto mais não fosse de governantes. De gente que à direita e à esquerda não tinha medo do futuro.

Esse país não existe mais. Hoje temos mais de 6 milhões de pessoas dependentes de subsídios ou de ordenados da função pública. Seis milhões de pessoas que cativam perto de 87% de todas as receitas do Estado. Chegámos a estes 6 milhões de pessoas com anos e anos de PS e PSD competindo entre si para ver qual deles fazia crescer mais este número de dependentes do Estado e a terem como principal discurso distintivo os benefícios que dariam, caso fossem governo, a estas pessoas e às outras, já poucas que ainda não faziam parte do grupo.

Estes 6 milhões de pessoas que Medina Carreira define como “partido do Estado” não são apenas um problema económico. Elas tornaram-se um problema político, pois para boa parte destes 6 milhões de pessoas as eleições passaram a ser sinónimo de insegurança, daí a sua enorme disponibilidade para apoiarem ou tolerarem quem transmita uma imagem de poder, sobretudo se este poder for exercido com tiques de autoritarismo, coisa que não resolve nada, mas facilita muito a construção de uma imagem de líder.

É fácil e tentador dizer que esta rede de dependentes funciona como o escudo humano de quem está no poder, seja esse poder o do governo central, das autarquias ou o dos governos regionais. Mas essa é apenas uma parte do problema, a que nos diz respeito a todos nós. A outra parte do problema diz respeito ao PSD: o PSD foi tendo um discurso, cada vez menos eficaz, é certo, para estas pessoas, enquanto o argumentário eleitoral se centrou no dar. Agora que se entrou na fase da gestão do medo da perda, o PSD não tem discurso, enquanto o PS, antes pelo contrário, encontrou o que anos de desgaste e escândalos lhe tinham retirado: algo para prometer.

Todos os dias uma notícia, ou duas, ou três, dão conta de que o PSD quer tirar, cortar, destruir… enfim se propõe alterar no sentido da perda aquilo com que contam para a vida. Já o PS diz-lhes que mudará o menos possível e que vai defender o Estado social, uma entidade que se foi tornando tão mais omnipresente nas nossas vidas quanto mais o Estado gastava.

O termo “social” justificou ao Estado o nepotismo, a incompetência, o meter-se onde não é chamado, o despesismo e a corrupção. Sob o chapéu-de-chuva do Estado social, o Estado adopta procedimentos que lhe garantem dinheiro em caixa para o seu expediente, mas que colocam ainda mais em risco o futuro dos portugueses: esta semana soube-se que o Governo pretende que as sociedades gestoras de planos poupança reforma (PPR) invistam mais em títulos da dívida da República Portuguesa, opção que no princípio deste mês já se tinha colocado para o próprio Fundo de Capitalização da Segurança Social. Mas a cada vez que o PS diz que vai defender o Estado social, seja lá isso o que for, os portugueses precisam de acreditar que será menos mau pela mesma razão que em 2009 quiseram acreditar que o discurso do “governo que dá” ainda não chegara ao fim. Os portugueses vivem no medo da perda e quem tem medo refugia-se na manutenção do que ainda existe.

Quer isto dizer que Passos Coelho está condenado a perder as eleições? Depende. Apetecia-me dizer que se mentisse as ganhava, mas francamente para isso já vai tarde e Sócrates fá-lo melhor. Falar verdade também não é suficiente – veja-se o caso de Manuela Ferreira Leite. Pode optar por gerir o medo da perda, como vai fazer o PS, ou antes, pelo contrário, tentar convencer os portugueses de que é possível viver sem medo. A outra alternativa é esforçar-se por perder as eleições (confesso que há dias que acredito que já fez esta escolha!). Enquanto faz farófias – o que sempre é um avanço gastronómico em relação a tantos outros candidatos a primeiro-ministro e presidentes desta República que antes de si pousaram ao lado das mulheres, dizendo que não sabiam estrelar um ovo, mas que as respectivas mulheres, essas, confeccionavam excelentes pratos de bacalhau – pode divertir-se imaginando os técnicos do FMI reunindo-se com Sócrates e sobretudo explica ao seu partido que o FMI vai impor a Portugal aquelas medidas que perante os microfones desligados os dirigentes do PSD e muitos do PS dizem ser necessárias, mas que mal os microfones se ligam passam a classificar como não compatíveis com a Constituição, com o Estado social, com o estado do programa do partido ou com a falta dele. Não é uma perspectiva muito grandiosa, mas é aqui que se chega quando se abdicou do essencial num partido: ter um discurso ideologicamente coerente e distinto.

*PÚBLICO

PSD: ter poder ou ter razão?*

Não interessa se Passos Coelho fala bem ou mal. Se mostra a mulher ou se a esconde. Se convida Nobre para as listas. Tal como em 2009 também não interessava se Manuela Ferreira Leite se explicava adequadamente, se interrompia a campanha para ir ver o neto ou se apanhava boleia de Alberto João Jardim.

Nada disso interessa. Acredito que os líderes do PSD se preparem para as campanhas e até que acreditem que depende deles ganhá-las ou perdê-las. Mas não só não é assim, como cada vez é menos assim. Neste caso os sociais-democratas escusam de culpar Sócrates, porque a culpa não é dele. Ele apenas beneficiou e potenciou um dos adquiridos da política portuguesa – a de que o PS é o partido natural de poder em Portugal – e sobretudo tornou evidente aos olhos de todos que o PSD sobrevive agarrado a flashes desconexos de memória – Sá Carneiro e Cavaco Silva – e a um panteão de razões não entendidas no seu tempo, mas que a posteridade confirma como fundamentadas. Manuela Ferreira Leite é sem dúvida a mais eloquente protagonista deste aparente paradoxo que transforma a posteriori os ex-líderes do PSD num poço de razões e de discernimento, características que escassos meses antes, quando eram líderes, todos asseveram faltar-lhes.

Já o PS vive de História e de ideologia. Colou a I República ao 25 de Abril de 1974, conseguiu fintar o PCP no que ao património de Abril respeita, reserva para si o lugar maior na nossa integração europeia e sobretudo criou uma versão simplificada da História de Portugal em que o PS é, numa versão humilde, pelo menos o motor da nossa História. Para esta concepção não é de modo algum irrelevante a figura majestática de Mário Soares, tutelando o regime há 37 anos.

É quase ocioso explicar que não existe nada de equivalente do lado do PSD.

Dirão que não é por causa disto que o PSD perde as eleições. Pois não. Perde-as sobretudo por falta de ideologia. Mas em abono da História e da verdade há que dizer que a falta de uma narrativa do partido e de um discurso que o legitime no poder contribui, em muito, para aquele ar de agremiação de egos desmedidos e regra geral desavindos que o PSD não só transmite, como faz absoluta questão de transmitir e que leva qualquer alma sensata a interrogar-se sobre a sua capacidade para exercer o poder.

Mas uma coisa é uma idiossincrasia – e esta acompanha os sociais-democratas desde a fundação e de alguma forma o país já nem espera que mudem. Outro assunto bem diverso é a falta de ideologia. Ninguém sabe o que defende o PSD ou porque o defende. Isso nem sempre foi um problema: no passado já era assim e Cavaco por pouco não teve três milhões de votos em 1991. Aliás, repetir Cavaco e o seu perfil de mais competência e menos ideologia foi uma obsessão durante anos para o PSD: havia de vir aquele que repetiria o milagre Cavaco e nessa ilusão foram queimando líderes. Mas o PSD esqueceu que Cavaco ganhou num país de gente que vivia mal, mas que achava que podia mudar a sua vida. De gente que via as eleições como um factor de mudança, quanto mais não fosse de governantes. De gente que à direita e à esquerda não tinha medo do futuro.

Esse país não existe mais. Hoje temos mais de 6 milhões de pessoas dependentes de subsídios ou de ordenados da função pública. Seis milhões de pessoas que cativam perto de 87% de todas as receitas do Estado. Chegámos a estes 6 milhões de pessoas com anos e anos de PS e PSD competindo entre si para ver qual deles fazia crescer mais este número de dependentes do Estado e a terem como principal discurso distintivo os benefícios que dariam, caso fossem governo, a estas pessoas e às outras, já poucas que ainda não faziam parte do grupo.

Estes 6 milhões de pessoas que Medina Carreira define como “partido do Estado” não são apenas um problema económico. Elas tornaram-se um problema político, pois para boa parte destes 6 milhões de pessoas as eleições passaram a ser sinónimo de insegurança, daí a sua enorme disponibilidade para apoiarem ou tolerarem quem transmita uma imagem de poder, sobretudo se este poder for exercido com tiques de autoritarismo, coisa que não resolve nada, mas facilita muito a construção de uma imagem de líder.

É fácil e tentador dizer que esta rede de dependentes funciona como o escudo humano de quem está no poder, seja esse poder o do governo central, das autarquias ou o dos governos regionais. Mas essa é apenas uma parte do problema, a que nos diz respeito a todos nós. A outra parte do problema diz respeito ao PSD: o PSD foi tendo um discurso, cada vez menos eficaz, é certo, para estas pessoas, enquanto o argumentário eleitoral se centrou no dar. Agora que se entrou na fase da gestão do medo da perda, o PSD não tem discurso, enquanto o PS, antes pelo contrário, encontrou o que anos de desgaste e escândalos lhe tinham retirado: algo para prometer.

Todos os dias uma notícia, ou duas, ou três, dão conta de que o PSD quer tirar, cortar, destruir… enfim se propõe alterar no sentido da perda aquilo com que contam para a vida. Já o PS diz-lhes que mudará o menos possível e que vai defender o Estado social, uma entidade que se foi tornando tão mais omnipresente nas nossas vidas quanto mais o Estado gastava.

O termo “social” justificou ao Estado o nepotismo, a incompetência, o meter-se onde não é chamado, o despesismo e a corrupção. Sob o chapéu-de-chuva do Estado social, o Estado adopta procedimentos que lhe garantem dinheiro em caixa para o seu expediente, mas que colocam ainda mais em risco o futuro dos portugueses: esta semana soube-se que o Governo pretende que as sociedades gestoras de planos poupança reforma (PPR) invistam mais em títulos da dívida da República Portuguesa, opção que no princípio deste mês já se tinha colocado para o próprio Fundo de Capitalização da Segurança Social. Mas a cada vez que o PS diz que vai defender o Estado social, seja lá isso o que for, os portugueses precisam de acreditar que será menos mau pela mesma razão que em 2009 quiseram acreditar que o discurso do “governo que dá” ainda não chegara ao fim. Os portugueses vivem no medo da perda e quem tem medo refugia-se na manutenção do que ainda existe.

Quer isto dizer que Passos Coelho está condenado a perder as eleições? Depende. Apetecia-me dizer que se mentisse as ganhava, mas francamente para isso já vai tarde e Sócrates fá-lo melhor. Falar verdade também não é suficiente – veja-se o caso de Manuela Ferreira Leite. Pode optar por gerir o medo da perda, como vai fazer o PS, ou antes, pelo contrário, tentar convencer os portugueses de que é possível viver sem medo. A outra alternativa é esforçar-se por perder as eleições (confesso que há dias que acredito que já fez esta escolha!). Enquanto faz farófias – o que sempre é um avanço gastronómico em relação a tantos outros candidatos a primeiro-ministro e presidentes desta República que antes de si pousaram ao lado das mulheres, dizendo que não sabiam estrelar um ovo, mas que as respectivas mulheres, essas, confeccionavam excelentes pratos de bacalhau – pode divertir-se imaginando os técnicos do FMI reunindo-se com Sócrates e sobretudo explica ao seu partido que o FMI vai impor a Portugal aquelas medidas que perante os microfones desligados os dirigentes do PSD e muitos do PS dizem ser necessárias, mas que mal os microfones se ligam passam a classificar como não compatíveis com a Constituição, com o Estado social, com o estado do programa do partido ou com a falta dele. Não é uma perspectiva muito grandiosa, mas é aqui que se chega quando se abdicou do essencial num partido: ter um discurso ideologicamente coerente e distinto.

*PÚBLICO

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