Maravilha de corpo, caraças! Macio, sensual, silencioso, esquivo. Olho-te, mas não sabes que te olho, não suspeitas. Cochilas à minha frente, sem fazeres ideia de que te contemplo ou me inspiras. Uma caneta, um poema, depressa! Lembras-te quando dormiste comigo, a última vez? Estava a chover e aninhaste-te.Foi quando abri a luz e te vi dormir que me apercebi de que estava presa. Não sei se por te ver despojado e feto outra vez, se por te ver morto e completamente sozinho no teu enterro. Mas percebi que fui a única pessoa a quem o teu sono egoísta fez chorar de ternura. Ressonas. Sabes que ressonas, meu querido? Nessa noite dormias tão docemente que cheguei a perguntar-me se eras mesmo tu o macho com que partilho os meus dias. Tens razão, já amei mais do que isto. Seis homens me disseram que eu era a mulher mais formidável que conheceram na vida. Estão todos casados e, quando me encontram, perguntam-me por ti. Às vezes sofro com isso, outras não. Noutras até gosto, acreditas? É a minha presença que te faz feliz, mas não sabes. Gosto disso, gosto tanto. Gosto de ser tudo para ti e de só o descobrires quando, enfim, resolver mandar-te embora. Ou quando fugires daqui, assustado. Quando te esparralhas no sofá - já reparaste? - entornas sempre o cinzeiro. Sempre, não falha uma vez. Nunca te disse nada. Apanho as beatas e suspiro, calculo, como as heroínas de Camilo. Nunca li Camilo. Um amigo garante-me que só há dois génios em Portugal: o Pessoa e o Camilo. Não acho o Camilo um génio. Mas ensinou-me por que razão todos os homens do mundo deixam as mulheres. Ninguém aguenta. Ninguém aguenta viver com um grilo falante sempre a ter razão, sempre a ter razão, sempre a ter razão. As mulheres são assim, cheias de razão. Odiosas, insuportáveis. A correr atrás de vocês de espelho na mão: "Vê-te bem, anormal! És mais feio do que pensas!" Quem é que aguenta? Eu própria não aguentava, confesso. Olha o Anthony Quinn, que vergonha. Viste o programa ao meu lado, lembras-te? Apareceu na televisão para nos provar que também sabia pintar. Disse, com os olhos molhados de fervor, que ninguém melhor do que ele sabia amar as mulheres. Cinco minutos depois, quando acabou de nos mostrar uma dúzia de auto-retratos inquietantes, esboçou aquele sorriso de violador mexicano para confessar que a coisa que mais o empolgava na vida era ele próprio. Mas a gente tem que respeitar, não é verdade? De contrário vocês deixam-nos. Ou enganam-nos. Ou batem-nos. Tu nunca me bateste, por acaso, e, sobretudo, nunca me enganaste. Mas arranhas-me sempre que dormes comigo. Porquê? Não costumam ser as mulheres a arranhar? O Camilo diz que não. Mas tu, ao contrário dele, não te vais matar. Não precisas. Os adultérios são hoje bem vistos, não precisas de trabalhar para viver, não és nobre como ele era e a tua Ana Plácido sou eu. Nem Ana, nem plácida, mas disfarço bem. Olha para ti, enxerga-te! Que outra mulher te aturava? Estirado, resfastelado, esbodegado como um buda. Obsceno como um bêbedo. Ocioso como uma cortesã. Não, não gosto. Dessa tua exigência muda. O jantar, por exemplo. Se te sirvo, jantas. Se não te sirvo não jantas e nem sequer me acusas - mostras que não sirvo, só isso. Nem sei já porque gosto de ti. Se por gostar de ti, se por ter deixado de gostar de mim. Já lá vai o tempo. "Se a memória não me falha", como diz a Belicha. Nem sabes que idade tenho, nem de que cor são os meus olhos. Mas tu queres lá saber. Viver sem ninguém a chatear-te é tudo quanto exiges. Um tudo-nada modesto, hás-de concordar. Mas deixa-te estar, estás em tua casa. Não quero que me deixes. Deixa. Estou cansada, mas vou-te buscar o jantar. Não me posso queixar: odeio ver-vos na cozinha, nisso sou parecida com o Camilo ou com o Fialho. Mas juro-te: eu era capaz de morrer de amor. Saltar do precipício. Emborcar comprimidos. Enfiar a cabeça dentro do forno. Mas como essas coisas já não se usam vivo contigo, Tareco. Anda. Toma lá a tua sopinha de leite e por favor não me sujes o tapete. Rita FerroIn Diário de Notícias, Edição de Domingo 30 de abril de 2000
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Maravilha de corpo, caraças! Macio, sensual, silencioso, esquivo. Olho-te, mas não sabes que te olho, não suspeitas. Cochilas à minha frente, sem fazeres ideia de que te contemplo ou me inspiras. Uma caneta, um poema, depressa! Lembras-te quando dormiste comigo, a última vez? Estava a chover e aninhaste-te.Foi quando abri a luz e te vi dormir que me apercebi de que estava presa. Não sei se por te ver despojado e feto outra vez, se por te ver morto e completamente sozinho no teu enterro. Mas percebi que fui a única pessoa a quem o teu sono egoísta fez chorar de ternura. Ressonas. Sabes que ressonas, meu querido? Nessa noite dormias tão docemente que cheguei a perguntar-me se eras mesmo tu o macho com que partilho os meus dias. Tens razão, já amei mais do que isto. Seis homens me disseram que eu era a mulher mais formidável que conheceram na vida. Estão todos casados e, quando me encontram, perguntam-me por ti. Às vezes sofro com isso, outras não. Noutras até gosto, acreditas? É a minha presença que te faz feliz, mas não sabes. Gosto disso, gosto tanto. Gosto de ser tudo para ti e de só o descobrires quando, enfim, resolver mandar-te embora. Ou quando fugires daqui, assustado. Quando te esparralhas no sofá - já reparaste? - entornas sempre o cinzeiro. Sempre, não falha uma vez. Nunca te disse nada. Apanho as beatas e suspiro, calculo, como as heroínas de Camilo. Nunca li Camilo. Um amigo garante-me que só há dois génios em Portugal: o Pessoa e o Camilo. Não acho o Camilo um génio. Mas ensinou-me por que razão todos os homens do mundo deixam as mulheres. Ninguém aguenta. Ninguém aguenta viver com um grilo falante sempre a ter razão, sempre a ter razão, sempre a ter razão. As mulheres são assim, cheias de razão. Odiosas, insuportáveis. A correr atrás de vocês de espelho na mão: "Vê-te bem, anormal! És mais feio do que pensas!" Quem é que aguenta? Eu própria não aguentava, confesso. Olha o Anthony Quinn, que vergonha. Viste o programa ao meu lado, lembras-te? Apareceu na televisão para nos provar que também sabia pintar. Disse, com os olhos molhados de fervor, que ninguém melhor do que ele sabia amar as mulheres. Cinco minutos depois, quando acabou de nos mostrar uma dúzia de auto-retratos inquietantes, esboçou aquele sorriso de violador mexicano para confessar que a coisa que mais o empolgava na vida era ele próprio. Mas a gente tem que respeitar, não é verdade? De contrário vocês deixam-nos. Ou enganam-nos. Ou batem-nos. Tu nunca me bateste, por acaso, e, sobretudo, nunca me enganaste. Mas arranhas-me sempre que dormes comigo. Porquê? Não costumam ser as mulheres a arranhar? O Camilo diz que não. Mas tu, ao contrário dele, não te vais matar. Não precisas. Os adultérios são hoje bem vistos, não precisas de trabalhar para viver, não és nobre como ele era e a tua Ana Plácido sou eu. Nem Ana, nem plácida, mas disfarço bem. Olha para ti, enxerga-te! Que outra mulher te aturava? Estirado, resfastelado, esbodegado como um buda. Obsceno como um bêbedo. Ocioso como uma cortesã. Não, não gosto. Dessa tua exigência muda. O jantar, por exemplo. Se te sirvo, jantas. Se não te sirvo não jantas e nem sequer me acusas - mostras que não sirvo, só isso. Nem sei já porque gosto de ti. Se por gostar de ti, se por ter deixado de gostar de mim. Já lá vai o tempo. "Se a memória não me falha", como diz a Belicha. Nem sabes que idade tenho, nem de que cor são os meus olhos. Mas tu queres lá saber. Viver sem ninguém a chatear-te é tudo quanto exiges. Um tudo-nada modesto, hás-de concordar. Mas deixa-te estar, estás em tua casa. Não quero que me deixes. Deixa. Estou cansada, mas vou-te buscar o jantar. Não me posso queixar: odeio ver-vos na cozinha, nisso sou parecida com o Camilo ou com o Fialho. Mas juro-te: eu era capaz de morrer de amor. Saltar do precipício. Emborcar comprimidos. Enfiar a cabeça dentro do forno. Mas como essas coisas já não se usam vivo contigo, Tareco. Anda. Toma lá a tua sopinha de leite e por favor não me sujes o tapete. Rita FerroIn Diário de Notícias, Edição de Domingo 30 de abril de 2000