Defesa do Interesse Público: [Entrevista] Couto dos Santos ao PÚBLICO: "A construção da Casa da Música deveria ter sido assumida só pelo Estado"

30-06-2005
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Jornal PÚBLICO . Destaque . 14/4/2005"A construção da Casa da Música deveria ter sido assumida só pelo Estado"No dia da abertura da Casa da Música, Couto dos Santos faz o balanço do processo e considera que foi um erro a partilha de responsabilidades entre a administração central e a Câmarado Porto. Quanto ao futuro, espera um entendimento em torno dos financiamentos e da relação de poderes entre o Estado e os privados, advertindo que uma eventual ruptura seria "muito mau".Por Manuel Carvalho e Sérgio C. AndradePresidente desde há sete meses da CdM, António Couto dos Santos teve como primeira incumbência libertar o projecto das polémicas que o marcaram desde a origem e dar por terminada a construção. Ex-ministro de Cavaco Silva e "cedido" pela AEP, onde é vice-presidente, à gestão da CdM, Couto dos Santos critica a excessiva politização do projecto e considera que o criticismo que o envolveu se justifica pela deficiente informação da opinião pública sobre a evolução do processo.PÚBLICO - A Casa da Música abre mesmo hoje?ANTÓNIO COUTO DOS SANTOS - Vai mesmo abrir. Temos tudo preparado, quer do ponto de vista da programação, quer da produção; as obras estão terminadas e as vistorias e fiscalizações feitas. Tudo pronto.Não teria sido desejável adiar mais um mês a abertura?Se déssemos mais um mês, nunca seria só um mês. Seria sempre mais um e mais um, e acabaria num ano. O mais importante para a CdM é a credibilidade. Tínhamos que fazer um esforço para que esta data fosse cumprida. Com tantos percalços por que já passou o projecto, nem que fosse só mais um dia, seria o descrédito total, e seria muito mau perante a opinião pública.O que pesou mais nos sucessivos adiamentos da abertura e no deslize orçamental da CdM: razões mais técnicas ou políticas?Foram essencialmente turbulências de relacionamento quer político quer de outra ordem. Primeiro, porque houve seis ministros da Cultura. Muda o ministro, e há sempre tendência para olhar para atrás e encontrar motivo de crítica. Segundo, porque também houve mudanças sistemáticas na administração, que perturbaram não só o funcionamento, mas também, às vezes, o próprio projecto pela forma como se comenta a gestão anterior. Mas, essencialmente, esta turbulência não permitiu que houvesse uma clareza de informação da opinião pública sobre o processo. Deveria ter sido logo assumido que - já havia quem previsse isto, como o arquitecto Siza Vieira - a CdM levaria cinco ou seis anos a construir. Em segundo lugar, quando se fala do deslizamento financeiro, deveria ser dito com clareza que se começou com um projecto de nove mil e poucos metros e se chegou quase aos 23 mil metros quadrados. Isso implica mais do que a duplicação dos custos.Os cem milhões de euros mantêm-se como custo final?É o custo total deste edifício.É um custo justificado?Em comparações feitas a nível internacional, vimos que este é o preço médio de equipamentos semelhantes. Isso foi-nos dito por técnicos do Banco Europeu de Investimento - que fez o maior empréstimo para a CdM -, que referenciaram que nós estávamos na média europeia, e até ligeiramente abaixo em relação a alguns equipamento. The Sage [sala de concertos em Newcastle, Reino Unido], que tem um auditório com 1700 lugares, custou 75 milhões de libras, o que vai dar os cento e tal milhões de euros.Quem acompanhou o processo ficou com a sensação de que, dos dois accionistas da CdM, a intervenção política da câmara do Porto, que é minoritária, foi dominante, pelos menos no consulado de Rui Rio. Na sua experiência, como viveu esta relação com os accionistas?Penso, hoje, que o maior problema está em que a construção da casa deveria ter sido assumida só pelo Estado. Não acredito em grandes investimentos feitos em parceria entre o Estado e as autarquias - veja-se o que tem acontecido com o metro do Porto. Isto deveria ter sido assumido pelo poder central tal como o CCB o foi. Quanto ao protagonismo do poder local, ele existiu em todos os mandatos.Acha que houve um excessode política no processo?Houve um excessivo protagonismo, ou tentativa de protagonismo, do próprio poder local. Faltou por parte do Estado algum exercício de autoridade para dizer: "Eu tenho a maior participação de capital, eu determino as regras do jogo".Está actualmente em debate a fundação. Concorda que este é o melhor modelo de gestão?Concordo. E espero que os protagonistas cheguem a um bom entendimento. Isso vai passar sobretudo por encontrar o justo equilíbrio entre o poder de quem financia as actividades e o modelo de decisão.Esse equilíbrio está mais expresso no plano proposto por Maria João Bustorff, ou pelo que foi agora apresentado por Isabel Pires de Lima?O modelo da actual ministra não é muito diferente do anterior. Ela traz um elemento de maior segurança: veio assegurar os dez milhões de euros por ano.Mas tem duas mudanças substanciais: assegura a integração da Orquestra Nacional do Porto (ONP), e diz que o presidente do conselho de administração (CA) é nomeado pelo Estado.Não sei se são assim tão substanciais. Eu não sou fundador. Têm de ser eles a discutir. Mas já no anterior modelo havia um elemento do CA designado pelo Estado, e podia ser ele o escolhido pelos fundadores. Mas o mais relevante é o seguinte: nós sempre temos dito que o modelo Serralves tem dado bons frutos, mas temos de ter também presente que Serralves, neste momento, é financiado em 50 por cento pelo Estado e 50 por cento de receitas privadas. Não tenho a menor dúvida de que se o sector privado financia a 50 por cento, devemos olhar para o Estado como mais um subsídio e então deixar aos privados pôr isto a funcionar. Quando não é assim, tem de ser encontrado um justo equilíbrio na decisão. Mas deixem-me dar uma nota sobre a ONP. E agora estou a falar enquanto cidadão. Se não se fizer a integração total da orquestra na CdM, é um crime. Deve ser um grupo residente. Quem não quiser isso, não percebe o funcionamento da CdM.Artur Santos Silva, por exemplo, defendeu já que a ONP deveria manter a sua autonomia financeira e até, eventualmente, artística.Mas, então, como é que pode ter autonomia artística se a ONP é um dos elementos fundamentais da programação? No próprio business plan está previsto que os grupos residentes contribuam com 80 a 100 concertos ano. Não faz sentido termos uma orquestra sinfónica no Porto e ela não estar na CdM. É absurdo. Vou dar um exemplo caricato: temos na CdM o Remix, e temos a ONP. E o que acontece hoje? Temos dois gestores de orquestra, dois arquivistas, duas contabilidades...Acredita em que a proposta feita pela ministra da Cultura aos privados vai ser aceite?Existem condições para que o diálogo entre o ministério e os fundadores, com acertos de um lado e do outro - mais milhão de um lado, mais prazo do outro; mais competência de um lado, mais poder de outro -, é possível chegar lá. Se não se chegar, isso seria mau.Acredita que a procura que está a verificar para o programa de abertura vai continuar no futuro?Sim. Neste aspecto, quero deixar uma nota. Sobre as receitas próprias, há alguma confusão que já começa a perpassar nas pessoas. A CdM já foi criticada por ir acolher a gala do futebol. Ora, a CdM não olhou para a gala como futebol, olhou-a como espectáculo com um dos melhores violinistas da actualidade. Não vamos só produzir aquilo que é nosso. Queremos que a CdM seja também um espaço para outros produzirem aqui espectáculos de grande qualidade. Agora, não vamos realizar aqui congressos, nem fazer almoços nem jantares. Também gostaria de falar duma coisa que preocupa os produtores privados, sobretudo no pop-rock: está determinado nas orientações estratégicas para 2006, que eu já escrevi e entreguei à direcção artística, que o pop-rock só pode ser feito na CdM desde que seja autofinanciado. A CdM não pode financiar com dinheiros do Estado pop-rock. Música alternativa, desenvolvimento de música electrónica, isso sim.Porquê?Está na função do Estado criar novos públicos e divulgar novos estilos de música.

Jornal PÚBLICO . Destaque . 14/4/2005"A construção da Casa da Música deveria ter sido assumida só pelo Estado"No dia da abertura da Casa da Música, Couto dos Santos faz o balanço do processo e considera que foi um erro a partilha de responsabilidades entre a administração central e a Câmarado Porto. Quanto ao futuro, espera um entendimento em torno dos financiamentos e da relação de poderes entre o Estado e os privados, advertindo que uma eventual ruptura seria "muito mau".Por Manuel Carvalho e Sérgio C. AndradePresidente desde há sete meses da CdM, António Couto dos Santos teve como primeira incumbência libertar o projecto das polémicas que o marcaram desde a origem e dar por terminada a construção. Ex-ministro de Cavaco Silva e "cedido" pela AEP, onde é vice-presidente, à gestão da CdM, Couto dos Santos critica a excessiva politização do projecto e considera que o criticismo que o envolveu se justifica pela deficiente informação da opinião pública sobre a evolução do processo.PÚBLICO - A Casa da Música abre mesmo hoje?ANTÓNIO COUTO DOS SANTOS - Vai mesmo abrir. Temos tudo preparado, quer do ponto de vista da programação, quer da produção; as obras estão terminadas e as vistorias e fiscalizações feitas. Tudo pronto.Não teria sido desejável adiar mais um mês a abertura?Se déssemos mais um mês, nunca seria só um mês. Seria sempre mais um e mais um, e acabaria num ano. O mais importante para a CdM é a credibilidade. Tínhamos que fazer um esforço para que esta data fosse cumprida. Com tantos percalços por que já passou o projecto, nem que fosse só mais um dia, seria o descrédito total, e seria muito mau perante a opinião pública.O que pesou mais nos sucessivos adiamentos da abertura e no deslize orçamental da CdM: razões mais técnicas ou políticas?Foram essencialmente turbulências de relacionamento quer político quer de outra ordem. Primeiro, porque houve seis ministros da Cultura. Muda o ministro, e há sempre tendência para olhar para atrás e encontrar motivo de crítica. Segundo, porque também houve mudanças sistemáticas na administração, que perturbaram não só o funcionamento, mas também, às vezes, o próprio projecto pela forma como se comenta a gestão anterior. Mas, essencialmente, esta turbulência não permitiu que houvesse uma clareza de informação da opinião pública sobre o processo. Deveria ter sido logo assumido que - já havia quem previsse isto, como o arquitecto Siza Vieira - a CdM levaria cinco ou seis anos a construir. Em segundo lugar, quando se fala do deslizamento financeiro, deveria ser dito com clareza que se começou com um projecto de nove mil e poucos metros e se chegou quase aos 23 mil metros quadrados. Isso implica mais do que a duplicação dos custos.Os cem milhões de euros mantêm-se como custo final?É o custo total deste edifício.É um custo justificado?Em comparações feitas a nível internacional, vimos que este é o preço médio de equipamentos semelhantes. Isso foi-nos dito por técnicos do Banco Europeu de Investimento - que fez o maior empréstimo para a CdM -, que referenciaram que nós estávamos na média europeia, e até ligeiramente abaixo em relação a alguns equipamento. The Sage [sala de concertos em Newcastle, Reino Unido], que tem um auditório com 1700 lugares, custou 75 milhões de libras, o que vai dar os cento e tal milhões de euros.Quem acompanhou o processo ficou com a sensação de que, dos dois accionistas da CdM, a intervenção política da câmara do Porto, que é minoritária, foi dominante, pelos menos no consulado de Rui Rio. Na sua experiência, como viveu esta relação com os accionistas?Penso, hoje, que o maior problema está em que a construção da casa deveria ter sido assumida só pelo Estado. Não acredito em grandes investimentos feitos em parceria entre o Estado e as autarquias - veja-se o que tem acontecido com o metro do Porto. Isto deveria ter sido assumido pelo poder central tal como o CCB o foi. Quanto ao protagonismo do poder local, ele existiu em todos os mandatos.Acha que houve um excessode política no processo?Houve um excessivo protagonismo, ou tentativa de protagonismo, do próprio poder local. Faltou por parte do Estado algum exercício de autoridade para dizer: "Eu tenho a maior participação de capital, eu determino as regras do jogo".Está actualmente em debate a fundação. Concorda que este é o melhor modelo de gestão?Concordo. E espero que os protagonistas cheguem a um bom entendimento. Isso vai passar sobretudo por encontrar o justo equilíbrio entre o poder de quem financia as actividades e o modelo de decisão.Esse equilíbrio está mais expresso no plano proposto por Maria João Bustorff, ou pelo que foi agora apresentado por Isabel Pires de Lima?O modelo da actual ministra não é muito diferente do anterior. Ela traz um elemento de maior segurança: veio assegurar os dez milhões de euros por ano.Mas tem duas mudanças substanciais: assegura a integração da Orquestra Nacional do Porto (ONP), e diz que o presidente do conselho de administração (CA) é nomeado pelo Estado.Não sei se são assim tão substanciais. Eu não sou fundador. Têm de ser eles a discutir. Mas já no anterior modelo havia um elemento do CA designado pelo Estado, e podia ser ele o escolhido pelos fundadores. Mas o mais relevante é o seguinte: nós sempre temos dito que o modelo Serralves tem dado bons frutos, mas temos de ter também presente que Serralves, neste momento, é financiado em 50 por cento pelo Estado e 50 por cento de receitas privadas. Não tenho a menor dúvida de que se o sector privado financia a 50 por cento, devemos olhar para o Estado como mais um subsídio e então deixar aos privados pôr isto a funcionar. Quando não é assim, tem de ser encontrado um justo equilíbrio na decisão. Mas deixem-me dar uma nota sobre a ONP. E agora estou a falar enquanto cidadão. Se não se fizer a integração total da orquestra na CdM, é um crime. Deve ser um grupo residente. Quem não quiser isso, não percebe o funcionamento da CdM.Artur Santos Silva, por exemplo, defendeu já que a ONP deveria manter a sua autonomia financeira e até, eventualmente, artística.Mas, então, como é que pode ter autonomia artística se a ONP é um dos elementos fundamentais da programação? No próprio business plan está previsto que os grupos residentes contribuam com 80 a 100 concertos ano. Não faz sentido termos uma orquestra sinfónica no Porto e ela não estar na CdM. É absurdo. Vou dar um exemplo caricato: temos na CdM o Remix, e temos a ONP. E o que acontece hoje? Temos dois gestores de orquestra, dois arquivistas, duas contabilidades...Acredita em que a proposta feita pela ministra da Cultura aos privados vai ser aceite?Existem condições para que o diálogo entre o ministério e os fundadores, com acertos de um lado e do outro - mais milhão de um lado, mais prazo do outro; mais competência de um lado, mais poder de outro -, é possível chegar lá. Se não se chegar, isso seria mau.Acredita que a procura que está a verificar para o programa de abertura vai continuar no futuro?Sim. Neste aspecto, quero deixar uma nota. Sobre as receitas próprias, há alguma confusão que já começa a perpassar nas pessoas. A CdM já foi criticada por ir acolher a gala do futebol. Ora, a CdM não olhou para a gala como futebol, olhou-a como espectáculo com um dos melhores violinistas da actualidade. Não vamos só produzir aquilo que é nosso. Queremos que a CdM seja também um espaço para outros produzirem aqui espectáculos de grande qualidade. Agora, não vamos realizar aqui congressos, nem fazer almoços nem jantares. Também gostaria de falar duma coisa que preocupa os produtores privados, sobretudo no pop-rock: está determinado nas orientações estratégicas para 2006, que eu já escrevi e entreguei à direcção artística, que o pop-rock só pode ser feito na CdM desde que seja autofinanciado. A CdM não pode financiar com dinheiros do Estado pop-rock. Música alternativa, desenvolvimento de música electrónica, isso sim.Porquê?Está na função do Estado criar novos públicos e divulgar novos estilos de música.

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