vicentejorgesilva : O ciclo de regresso ao guterrismo?

29-02-2008
marcar artigo

O ciclo de regresso ao guterrismo?

Correia de Campos foi ministro da Saúde na fase crepuscular – e pré- -pantanosa – do guterrismo, quando ele próprio admitiu que o seu apetite pelas reformas difíceis mas necessárias encontrara, enfim, condições para vingar. Era o período em que já se prefigurava o termo das ilusões da política suave e consensual que o então primeiro-ministro vinha conduzindo. Haviam terminado os tempos da euforia, anunciavam-se tempos de depressão: Correia de Campos era o homem certo para o momento certo.

Campos fora o homem que Guterres insistira longamente em preterir, por causa do perfil demasiado afirmativo, arrogante e conflitual, a favor de uma personalidade mais doce e conciliadora como a sua primeira ministra da Saúde, Maria de Belém. Mas era, também, o homem que ganhara a fama de ser o ministro da Saúde de que o país precisava, sobretudo na altura em que as miragens da prosperidade e a derrapagem financeira do Estado Providência já apareciam, com toda a crueza, à luz do dia.

Sintomaticamente, o ministro da Saúde que Guterres apenas admitiu – contrariado, supõe-se – no crepúsculo do seu último mandato, seria a escolha de José Sócrates logo que obteve a primeira maioria absoluta para o PS. Acabara a época dos sorrisos, da paz podre, da prosperidade ilusória – de ‘arrastar os pés’. Viviam-se tempos difíceis, num país reduzido à realidade do seu défice orçamental e à insustentável irracionalidade de gestão dos seus serviços públicos.

Tudo isso impunha determinação, vontade de cortar a direito e fazer face às resistências corporativas. Mas para que nada prejudicasse o seu retorno ao cargo interrompido, Correia de Campos, então colunista do Público, condescendeu num acto de vassalagem que daria demasiado nas vistas: entronizou Sócrates como campeão nacional absoluto da sabedoria política e ficou à espera do prémio. Inevitavelmente, conquistou-o.

Agora, o ciclo inverteu-se e Correia de Campos tornou-se o símbolo dessa inversão que, de algum modo, pode simbolizar uma irresistível tentação de regresso ao guterrismo. Depois de desencadear guerras em todas as frentes com a certeza cega de ter sempre razão, o ministro da Saúde foi sacrificado no altar da real politik pré-eleitoral. E deu lugar – sintomática coincidência – a Ana Jorge, uma antiga colaboradora de Maria de Belém e, como ela, apoiante de Manuel Alegre na campanha das últimas presidenciais.

Pouco importa se foi Correia de Campos a antecipar a demissão quando o Presidente da República, no final do ano passado, se mostrou descontente com o autismo da política da Saúde, ou se foi o primeiro-ministro a recordar-lhe esse primeiro sinal de disponibilidade para prescindir dos seus serviços que, entretanto, se haviam tornado politicamente incomportáveis. Pouco importa também que, contrariando esse desprendimento e um missionário espírito de sacrifício a favor do Serviço Nacional de Saúde, Campos tenha afirmado, em recente entrevista a Mário Crespo, na SIC Notícias, estar de pedra e cal até ao fim da legislatura (permitindo-se esquecer que a sua permanência não dependia dele mas do primeiro-ministro).

Por muito que os fios da meada pareçam frágeis e enredados numa malha de contradições, isso terá decididamente pouca importância para o sentido da história. Correia de Campos saiu no momento em que Sócrates precisava de aliviar a pressão da rua, tal como entrou no último Governo de Guterres apenas quando o então chefe do Governo percebeu que chegara ao fim a sua lua-de-mel com o país. Ele é o traço de união que liga o princípio do fim de Guterres àquilo que Sócrates não deseja ver como o princípio do seu fim.

Mas não será por acaso que a saída de Correia de Campos é acompanhada por outros sinais reveladores: a substituição, na Cultura, de Isabel Pires de Lima por José António Pinto Ribeiro ou a passagem de testemunho na Secretaria de Estado dos Assuntos Fiscais entre Amaral Tomaz e Baptista Lobo. Apesar da aparente frugalidade da sua declaração de intenções (a de que pretende fazer mais e melhor com menos meios) ou da sua suposta condição de diletante no mundo da Cultura, Pinto Ribeiro surge claramente como um sucedâneo político de Manuel Maria Carrilho. E se pensarmos que Baptista Lobo foi adjunto de Sousa Franco, o ministro das Finanças do ‘milagre’ guterrista, está composto o quadro simbólico do regresso do filho pródigo à casa paterna – que ele, de resto, nunca abjurou.

Nesta remodelação, José Sócrates não aproveitou para dispensar ministros ‘excedentários’ ou simplesmente ineptos como Mário Lino, Manuel Pinho ou Nunes Correia, deixando trair, com isso, uma típica inspiração guterrista. Não apostou num efectivo segundo fôlego do Governo; limitou-se a uma pequena cirurgia que permitisse pacificar as contestações mais inflamadas. E no mesmo dia em que os novos ministros da Saúde e da Cultura se sentavam pela primeira vez na bancada do Governo no Parlamento, anunciou mais um pacote de bodo aos pobres cuja contabilidade ainda estava por fazer. Eis o guterrismo no seu melhor.

Num famoso Congresso do PS, Manuel Alegre deixou-se comover por um discurso à esquerda de António Guterres para prescindir de uma das suas cíclicas veleidades de rebelião. Agora que Sócrates lhe ofereceu, numa bandeja, a cabeça de Correia de Campos e ‘ministerializou’ uma sua apoiante, o bardo socialista terá cobrado o preço básico para continuar sossegado no seu canto parlamentar e abdicar de próximas e desgastantes aventuras. Eis outro sinal de um provável regresso ao guterrismo. Mas não é também certo que, apesar da sua necessidade edipiana de afirmação própria, José Sócrates continua fiel à velha admiração e enlevo filial em relação a Guterres?

O ciclo de regresso ao guterrismo?

Correia de Campos foi ministro da Saúde na fase crepuscular – e pré- -pantanosa – do guterrismo, quando ele próprio admitiu que o seu apetite pelas reformas difíceis mas necessárias encontrara, enfim, condições para vingar. Era o período em que já se prefigurava o termo das ilusões da política suave e consensual que o então primeiro-ministro vinha conduzindo. Haviam terminado os tempos da euforia, anunciavam-se tempos de depressão: Correia de Campos era o homem certo para o momento certo.

Campos fora o homem que Guterres insistira longamente em preterir, por causa do perfil demasiado afirmativo, arrogante e conflitual, a favor de uma personalidade mais doce e conciliadora como a sua primeira ministra da Saúde, Maria de Belém. Mas era, também, o homem que ganhara a fama de ser o ministro da Saúde de que o país precisava, sobretudo na altura em que as miragens da prosperidade e a derrapagem financeira do Estado Providência já apareciam, com toda a crueza, à luz do dia.

Sintomaticamente, o ministro da Saúde que Guterres apenas admitiu – contrariado, supõe-se – no crepúsculo do seu último mandato, seria a escolha de José Sócrates logo que obteve a primeira maioria absoluta para o PS. Acabara a época dos sorrisos, da paz podre, da prosperidade ilusória – de ‘arrastar os pés’. Viviam-se tempos difíceis, num país reduzido à realidade do seu défice orçamental e à insustentável irracionalidade de gestão dos seus serviços públicos.

Tudo isso impunha determinação, vontade de cortar a direito e fazer face às resistências corporativas. Mas para que nada prejudicasse o seu retorno ao cargo interrompido, Correia de Campos, então colunista do Público, condescendeu num acto de vassalagem que daria demasiado nas vistas: entronizou Sócrates como campeão nacional absoluto da sabedoria política e ficou à espera do prémio. Inevitavelmente, conquistou-o.

Agora, o ciclo inverteu-se e Correia de Campos tornou-se o símbolo dessa inversão que, de algum modo, pode simbolizar uma irresistível tentação de regresso ao guterrismo. Depois de desencadear guerras em todas as frentes com a certeza cega de ter sempre razão, o ministro da Saúde foi sacrificado no altar da real politik pré-eleitoral. E deu lugar – sintomática coincidência – a Ana Jorge, uma antiga colaboradora de Maria de Belém e, como ela, apoiante de Manuel Alegre na campanha das últimas presidenciais.

Pouco importa se foi Correia de Campos a antecipar a demissão quando o Presidente da República, no final do ano passado, se mostrou descontente com o autismo da política da Saúde, ou se foi o primeiro-ministro a recordar-lhe esse primeiro sinal de disponibilidade para prescindir dos seus serviços que, entretanto, se haviam tornado politicamente incomportáveis. Pouco importa também que, contrariando esse desprendimento e um missionário espírito de sacrifício a favor do Serviço Nacional de Saúde, Campos tenha afirmado, em recente entrevista a Mário Crespo, na SIC Notícias, estar de pedra e cal até ao fim da legislatura (permitindo-se esquecer que a sua permanência não dependia dele mas do primeiro-ministro).

Por muito que os fios da meada pareçam frágeis e enredados numa malha de contradições, isso terá decididamente pouca importância para o sentido da história. Correia de Campos saiu no momento em que Sócrates precisava de aliviar a pressão da rua, tal como entrou no último Governo de Guterres apenas quando o então chefe do Governo percebeu que chegara ao fim a sua lua-de-mel com o país. Ele é o traço de união que liga o princípio do fim de Guterres àquilo que Sócrates não deseja ver como o princípio do seu fim.

Mas não será por acaso que a saída de Correia de Campos é acompanhada por outros sinais reveladores: a substituição, na Cultura, de Isabel Pires de Lima por José António Pinto Ribeiro ou a passagem de testemunho na Secretaria de Estado dos Assuntos Fiscais entre Amaral Tomaz e Baptista Lobo. Apesar da aparente frugalidade da sua declaração de intenções (a de que pretende fazer mais e melhor com menos meios) ou da sua suposta condição de diletante no mundo da Cultura, Pinto Ribeiro surge claramente como um sucedâneo político de Manuel Maria Carrilho. E se pensarmos que Baptista Lobo foi adjunto de Sousa Franco, o ministro das Finanças do ‘milagre’ guterrista, está composto o quadro simbólico do regresso do filho pródigo à casa paterna – que ele, de resto, nunca abjurou.

Nesta remodelação, José Sócrates não aproveitou para dispensar ministros ‘excedentários’ ou simplesmente ineptos como Mário Lino, Manuel Pinho ou Nunes Correia, deixando trair, com isso, uma típica inspiração guterrista. Não apostou num efectivo segundo fôlego do Governo; limitou-se a uma pequena cirurgia que permitisse pacificar as contestações mais inflamadas. E no mesmo dia em que os novos ministros da Saúde e da Cultura se sentavam pela primeira vez na bancada do Governo no Parlamento, anunciou mais um pacote de bodo aos pobres cuja contabilidade ainda estava por fazer. Eis o guterrismo no seu melhor.

Num famoso Congresso do PS, Manuel Alegre deixou-se comover por um discurso à esquerda de António Guterres para prescindir de uma das suas cíclicas veleidades de rebelião. Agora que Sócrates lhe ofereceu, numa bandeja, a cabeça de Correia de Campos e ‘ministerializou’ uma sua apoiante, o bardo socialista terá cobrado o preço básico para continuar sossegado no seu canto parlamentar e abdicar de próximas e desgastantes aventuras. Eis outro sinal de um provável regresso ao guterrismo. Mas não é também certo que, apesar da sua necessidade edipiana de afirmação própria, José Sócrates continua fiel à velha admiração e enlevo filial em relação a Guterres?

marcar artigo