O calor humano da mortalidade

03-10-2009
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Fotografia de Larry SchwartzJorge Luis Borges escreveu em O Imortal (Obras Completas, 2o Vol., Teorema): "Tudo, entre os mortais, tem o calor do irrecuperável e do fortuito. Entre os Imortais, ao contrário, cada acto (e cada pensamento) é o eco de outros que no passado o antecederam [...]. Nada pode ocorrer uma só vez, nada é preciosamente precário."Este conto do mestre argentino sintetiza, como nenhuma outra ficção ou ensaio, o desejo e, ao mesmo tempo, o absoluto pavor que nos causa a ideia de viver para sempre. Não sabemos o que seja isso a que chamamos imortalidade, apenas nos ocupamos a sentir por ela alguma coisa, às vezes acreditamos mesmo que é por ela que lutamos.A imortalidade da alma, já o sabemos, é um assunto da fé, uma matéria a conversar com Deus. Mas por muito que se acredite na vida eterna, imaginamos que nos vai custar deixar este mundo. Pomos até a hipótese de vir a ter saudades dos que cá ficam. De termos pena de não estar cá para o casamento dos bisnetos, para ver mais umas quantas inovações tecnológicas ou para apreciar, ao menos mais uma vez, aquela altura do ano em que os corpos arrepiados do Inverno começam a descontrair à luz dos primeiros calores de Março. Há quem chegue a lamentar não estar cá na altura em que o Sol der o seu último e gigantesco suspiro de astro-rei.Tudo isto se passa porque o nosso corpo é, com todos os seus defeitos desconfortáveis, o único que conhecemos. É a nossa casa. Possivelmente esses defeitos e tudo o que diminui a fruição da nossa passagem por aqui (doenças ou apenas limitações físicas que nos impedem de escalar o Everest, de atravessar o Atlântico a nado ou de voar com as nossas próprias asas) acentuam o medo que temos do fim. Se não tivéssemos nada a perder não seríamos tão egoístas nem tão nervosos. Não haveria assassinos nem prisões. Nem a mágoa de perdermos os nossos pais ou algum amigo porque seríamos, eternamente, uma família feliz.Ternura dos quarenta. "Who wants to live forever?", perguntava Freddy Mercury numa das mais dramáticas entoações dos Queen. O que parece importar, assim, é viver bem o tempo de que dispomos. E tentar, caso nos interesse a duração máxima, ir evitando comportamentos que nos expõem mais a fins prematuros. Quem não gostaria de ter um fim como o do pintor Marc Chagal que, aos 97 anos, ao fim de uma (longa) vida intensa e com muitos momentos felizes, apesar das perdas de gente querida e dos sacrifícios durante as duas guerras mundiais, passou mais um dia a trabalhar, apagando-se depois durante o sono?Talvez seja com esta esperança, mesmo assim um pouco melancólica na sua natureza (há-de haver um dia em que teremos de deixar de ver os nossos filhos), que vamos aprendendo a lidar com as vantagens da idade.Se até por volta dos trinta vivemos um estranho paradoxo - cremos que o futuro é infinito mas ao mesmo tempo queremos realizar com a maior urgência todos os planos e projectos -, quando alcançamos os quarenta temos já informação para adoptar uma atitude diferente.No entanto, a expressão crise da meia-idade parece servir para justificar uma série de maus comportamentos, como ter ataques de mau humor repentinos ou começar a enganar a pessoa com quem se partilha a vida até então. A verdade é que as rugas, os quilinhos a mais ou a drástica redução na fertilidade no caso das mulheres e a calvície ou a maior dificuldade em perder a barriga, nos homens, pode deixar as pessoas sob tensão, e esses maus comportamentos são uma espécie de escape mal conduzido.Em contrapartida, o único caminho saudável é, como se sabe, aceitar as evidências de que não somos imortais e tirar partido delas, ou das coisas que lhes estão associadas. Podemos aprender a assumir que cada dia conta, e por isso convém que seja vivido com consciência, e com os sentidos todos ligados. E, por falar em sentidos, se já vemos mal ao perto o melhor é comprarmos uns óculos e tê-los sempre à mão. Para trabalhar, ler rótulos no supermercado ou apreciar as fotografias do neto recém-nascido do nosso colega de escritório. Apesar de sentirmos que não podemos adiar à exaustão as tais férias de sonho na América do Sul ou no Extremo Oriente, saberemos com certeza planear essa espécie de "urgência" com muita calma e ponderação, sem o frenesi da impaciência juvenil.Courtney Cox Arquette, a Monica da série norte-americana Friends, disse em entrevista no Verão passado, a propósito dos seus 42 anos: "Acho que agora sou menos cruel comigo. Sei apreciar melhor as coisas que faço bem, sei reconhecer "estou numa boa fase". Dantes passava por "boas fases" e só me dava conta delas depois de elas terem terminado, de tal modo andava sempre obcecada em me autocensurar e em dar demasiada importância aos pequenos pormenores que corriam menos bem."E da beleza que podemos chamar interior faz parte (pelo menos em língua portuguesa) a melancolia. Que não nos chega pelos sentidos, aliás não chega de lado nenhum, é de fabrico caseiro. É um pouco como aqueles minutos na cama depois do despertador. Tão agradável que apetece dizer aos outros, que se inquietam (ficar na cama mais do que o tempo devido pode ser sinal de doença): "não se preocupem, isto passa, fico só mais um bocadinho".Beleza eterna. Também sabemos a partir de personagens míticas do mundo do cinema que morrer cedo é a única verdadeira forma de preservar um rosto com o viço da juventude. James Dean, River Phoenix, Jim Morrison ou mesmo Marilyn, tiveram a sua imagem de beleza juvenil cristalizada, fazendo valer o princípio "Die young and stay beautiful".Que bom seria poder abraçar as duas coisas: uma vida longa e cheia de factos interessantes e, ao mesmo tempo, a sensação de que o corpo é imortal. Por causa desta ambição, muitas pessoas submetem-se a arriscadas operações de cosmética e a comportamentos menos indicados para os seus corações já um pouco cansados. Um dos efeitos nocivos desta febre da eterna juventude pode bem ser continuar a passar pelas "boas fases" sem se dar conta delas, sempre na ânsia de passar à seguinte, na pressa de conquistar mais um troféu que prove que ainda se está no mercado.E aqui uma questão se coloca. Quando tomamos consciência da nossa mortalidade, afinal o que é que de facto nos deixa tão baralhados? O medo de partir de vez? O medo da resposta à pergunta obsessiva "Então a vida é só isto?" Ou o medo do sofrimento, mais ou menos longo e intenso, que muitas vezes antecede essa partida?Se o caso for este último, uma busca incessante dirigida ao elixir da eterna juventude só faria sentido se na juventude não houvesse dor. Borges desmonta essas ilusões. Prolongar a vida até ao infinito não significa acabar com a dor. Esta, para ser erradicada, exigia que fôssemos como pedras ou a água que corre. Mas não é esse o desejo que nos move. Do que gostaríamos era de continuar a comer e beber, a dançar e a amar para sempre. No entanto, na terra dos Imortais há um homem que padeceu de sede durante sessenta anos, porque ninguém sentiu qualquer urgência em dar-lhe de beber. Outros vagueiam errantes, fantasmas de si mesmos.Também a ideia da juventude como o paraíso só existe para quem lá não está. Pergunte-se a um adolescente em luta por boas notas no secundário, ou a um jovem que se sente discriminado no seu primeiro emprego (já devia ser feliz por ter um primeiro emprego, dizem-lhe constantemente), se eles vivem num mar de rosas.Bem vistas as coisas, o que dá à juventude o valor que lhe conhecemos - tal como o que dá valor aos amores, às viagens e aos projectos de trabalho - é a certeza de que vão ter um fim.Entre os imortais nada tem fim, nada é único, tudo se pode repetir, como num castigo infernal, "não há coisa que não esteja como que perdida entre infatigáveis espelhos." É como se o mundo fosse um imenso quintal, cujos muros não estarão nunca à vista, envenenado por uma falsa noção de liberdade. Sem os recantos de sombra que amamos nos dias quentes, sem as idas e vindas do cheiro das uvas e da terra molhada. Pior de tudo, sem a certeza de que cada vez que sentimos isso é menos uma que vamos sentir no futuro, foi uma ficha que gastámos, por isso queremos tanto que seja apreciada. Porque sabemos que um dia virá uma Primavera sem nós, e será Primavera na mesma.Quanto à eternidade, é apenas uma palavra bonita. Para os poetas, portanto.Rosa do Valein X


Fotografia de Larry SchwartzJorge Luis Borges escreveu em O Imortal (Obras Completas, 2o Vol., Teorema): "Tudo, entre os mortais, tem o calor do irrecuperável e do fortuito. Entre os Imortais, ao contrário, cada acto (e cada pensamento) é o eco de outros que no passado o antecederam [...]. Nada pode ocorrer uma só vez, nada é preciosamente precário."Este conto do mestre argentino sintetiza, como nenhuma outra ficção ou ensaio, o desejo e, ao mesmo tempo, o absoluto pavor que nos causa a ideia de viver para sempre. Não sabemos o que seja isso a que chamamos imortalidade, apenas nos ocupamos a sentir por ela alguma coisa, às vezes acreditamos mesmo que é por ela que lutamos.A imortalidade da alma, já o sabemos, é um assunto da fé, uma matéria a conversar com Deus. Mas por muito que se acredite na vida eterna, imaginamos que nos vai custar deixar este mundo. Pomos até a hipótese de vir a ter saudades dos que cá ficam. De termos pena de não estar cá para o casamento dos bisnetos, para ver mais umas quantas inovações tecnológicas ou para apreciar, ao menos mais uma vez, aquela altura do ano em que os corpos arrepiados do Inverno começam a descontrair à luz dos primeiros calores de Março. Há quem chegue a lamentar não estar cá na altura em que o Sol der o seu último e gigantesco suspiro de astro-rei.Tudo isto se passa porque o nosso corpo é, com todos os seus defeitos desconfortáveis, o único que conhecemos. É a nossa casa. Possivelmente esses defeitos e tudo o que diminui a fruição da nossa passagem por aqui (doenças ou apenas limitações físicas que nos impedem de escalar o Everest, de atravessar o Atlântico a nado ou de voar com as nossas próprias asas) acentuam o medo que temos do fim. Se não tivéssemos nada a perder não seríamos tão egoístas nem tão nervosos. Não haveria assassinos nem prisões. Nem a mágoa de perdermos os nossos pais ou algum amigo porque seríamos, eternamente, uma família feliz.Ternura dos quarenta. "Who wants to live forever?", perguntava Freddy Mercury numa das mais dramáticas entoações dos Queen. O que parece importar, assim, é viver bem o tempo de que dispomos. E tentar, caso nos interesse a duração máxima, ir evitando comportamentos que nos expõem mais a fins prematuros. Quem não gostaria de ter um fim como o do pintor Marc Chagal que, aos 97 anos, ao fim de uma (longa) vida intensa e com muitos momentos felizes, apesar das perdas de gente querida e dos sacrifícios durante as duas guerras mundiais, passou mais um dia a trabalhar, apagando-se depois durante o sono?Talvez seja com esta esperança, mesmo assim um pouco melancólica na sua natureza (há-de haver um dia em que teremos de deixar de ver os nossos filhos), que vamos aprendendo a lidar com as vantagens da idade.Se até por volta dos trinta vivemos um estranho paradoxo - cremos que o futuro é infinito mas ao mesmo tempo queremos realizar com a maior urgência todos os planos e projectos -, quando alcançamos os quarenta temos já informação para adoptar uma atitude diferente.No entanto, a expressão crise da meia-idade parece servir para justificar uma série de maus comportamentos, como ter ataques de mau humor repentinos ou começar a enganar a pessoa com quem se partilha a vida até então. A verdade é que as rugas, os quilinhos a mais ou a drástica redução na fertilidade no caso das mulheres e a calvície ou a maior dificuldade em perder a barriga, nos homens, pode deixar as pessoas sob tensão, e esses maus comportamentos são uma espécie de escape mal conduzido.Em contrapartida, o único caminho saudável é, como se sabe, aceitar as evidências de que não somos imortais e tirar partido delas, ou das coisas que lhes estão associadas. Podemos aprender a assumir que cada dia conta, e por isso convém que seja vivido com consciência, e com os sentidos todos ligados. E, por falar em sentidos, se já vemos mal ao perto o melhor é comprarmos uns óculos e tê-los sempre à mão. Para trabalhar, ler rótulos no supermercado ou apreciar as fotografias do neto recém-nascido do nosso colega de escritório. Apesar de sentirmos que não podemos adiar à exaustão as tais férias de sonho na América do Sul ou no Extremo Oriente, saberemos com certeza planear essa espécie de "urgência" com muita calma e ponderação, sem o frenesi da impaciência juvenil.Courtney Cox Arquette, a Monica da série norte-americana Friends, disse em entrevista no Verão passado, a propósito dos seus 42 anos: "Acho que agora sou menos cruel comigo. Sei apreciar melhor as coisas que faço bem, sei reconhecer "estou numa boa fase". Dantes passava por "boas fases" e só me dava conta delas depois de elas terem terminado, de tal modo andava sempre obcecada em me autocensurar e em dar demasiada importância aos pequenos pormenores que corriam menos bem."E da beleza que podemos chamar interior faz parte (pelo menos em língua portuguesa) a melancolia. Que não nos chega pelos sentidos, aliás não chega de lado nenhum, é de fabrico caseiro. É um pouco como aqueles minutos na cama depois do despertador. Tão agradável que apetece dizer aos outros, que se inquietam (ficar na cama mais do que o tempo devido pode ser sinal de doença): "não se preocupem, isto passa, fico só mais um bocadinho".Beleza eterna. Também sabemos a partir de personagens míticas do mundo do cinema que morrer cedo é a única verdadeira forma de preservar um rosto com o viço da juventude. James Dean, River Phoenix, Jim Morrison ou mesmo Marilyn, tiveram a sua imagem de beleza juvenil cristalizada, fazendo valer o princípio "Die young and stay beautiful".Que bom seria poder abraçar as duas coisas: uma vida longa e cheia de factos interessantes e, ao mesmo tempo, a sensação de que o corpo é imortal. Por causa desta ambição, muitas pessoas submetem-se a arriscadas operações de cosmética e a comportamentos menos indicados para os seus corações já um pouco cansados. Um dos efeitos nocivos desta febre da eterna juventude pode bem ser continuar a passar pelas "boas fases" sem se dar conta delas, sempre na ânsia de passar à seguinte, na pressa de conquistar mais um troféu que prove que ainda se está no mercado.E aqui uma questão se coloca. Quando tomamos consciência da nossa mortalidade, afinal o que é que de facto nos deixa tão baralhados? O medo de partir de vez? O medo da resposta à pergunta obsessiva "Então a vida é só isto?" Ou o medo do sofrimento, mais ou menos longo e intenso, que muitas vezes antecede essa partida?Se o caso for este último, uma busca incessante dirigida ao elixir da eterna juventude só faria sentido se na juventude não houvesse dor. Borges desmonta essas ilusões. Prolongar a vida até ao infinito não significa acabar com a dor. Esta, para ser erradicada, exigia que fôssemos como pedras ou a água que corre. Mas não é esse o desejo que nos move. Do que gostaríamos era de continuar a comer e beber, a dançar e a amar para sempre. No entanto, na terra dos Imortais há um homem que padeceu de sede durante sessenta anos, porque ninguém sentiu qualquer urgência em dar-lhe de beber. Outros vagueiam errantes, fantasmas de si mesmos.Também a ideia da juventude como o paraíso só existe para quem lá não está. Pergunte-se a um adolescente em luta por boas notas no secundário, ou a um jovem que se sente discriminado no seu primeiro emprego (já devia ser feliz por ter um primeiro emprego, dizem-lhe constantemente), se eles vivem num mar de rosas.Bem vistas as coisas, o que dá à juventude o valor que lhe conhecemos - tal como o que dá valor aos amores, às viagens e aos projectos de trabalho - é a certeza de que vão ter um fim.Entre os imortais nada tem fim, nada é único, tudo se pode repetir, como num castigo infernal, "não há coisa que não esteja como que perdida entre infatigáveis espelhos." É como se o mundo fosse um imenso quintal, cujos muros não estarão nunca à vista, envenenado por uma falsa noção de liberdade. Sem os recantos de sombra que amamos nos dias quentes, sem as idas e vindas do cheiro das uvas e da terra molhada. Pior de tudo, sem a certeza de que cada vez que sentimos isso é menos uma que vamos sentir no futuro, foi uma ficha que gastámos, por isso queremos tanto que seja apreciada. Porque sabemos que um dia virá uma Primavera sem nós, e será Primavera na mesma.Quanto à eternidade, é apenas uma palavra bonita. Para os poetas, portanto.Rosa do Valein X

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