Algibeira: Cabine telefónica

03-10-2009
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Se me lembro imediatamente das noites de maio e junho é por um capricho da memória. Na verdade, nós passávamos todas as noites, todas as estações, todos os meses, de janeiro a dezembro, à volta da cabine telefónica. No inverno, quando chovia, a poucos metros da cabine, encostávamo-nos à parede da cooperativa e ficávamos abrigados pela varanda. No verão, chegavam os emigrantes. Passavam horas à volta da cabine a contarem histórias para nos impressionarem, e a impressionavam-nos mesmo. Se me lembro logo das noites de maio e de junho é porque a minha memória as seleccionou entre todas as outras, utilizando a lógica incompreensível da própria memória, aproximando-se daquilo que é mais confortável, fugindo daquilo que custa mais, vagueando entre aragens.À noite, no terreiro, a cabine telefónica era o ponto mais iluminado. As suas luzes eram de um branco que não existia em mais nenhum lugar da vila. Nas ruas, as lâmpadas dos postes eram amarelas, tocavam a escuridão. A luz da cabine telefónica era muito diferente. Depois de jantar, quando nos aproximávamos, a cabine telefónica parecia qualquer coisa que poderíamos ter visto na televisão. As letras onde estava escrito “Telefone” não tinham imperfeições, não tinham linhas a saírem dos contornos, eram absolutamente rectas nas partes rectas das letras e redondas nas partes redondas. Mesmo muitos meses depois de ter sido instalada, a cabine telefónica não tinha qualquer risco ou sujidade. Aquele era um lugar que todas as pessoas da nossa terra estimavam, como poderiam estimar um relógio antigo ou qualquer objecto precioso. Muitas vezes, de manhã, ao passar pelo terreiro, vi a mulher que morava em frente à cabine telefónica a lavá-la. Utilizava água, que despejava e que escorria, suja, ao longo das regadeiras. Utilizava líquido dos vidros, que esfregava com folhas de jornal. Essa tarefa era-lhe atribuída por inerência do lugar onde vivia. Não creio, no entanto, que fosse um sacrifício. Mais depressa seria um orgulho, uma questão de brio. As pessoas que passavam comentavam o asseio da cabine telefónica. Esse era o pagamento do esforço de lavá-la. Nas outras ruas da vila, era exactamente assim que acontecia também com os caixotes do lixo. As pessoas que moravam perto dividiam entre si os dias em que os lavavam com vassouras, com baldes cheios de água. Depois, viravam-nos ao contrário para secarem.Todas as pessoas da nossa terra faziam gosto na forma e na existência da cabine telefónica. Se, por qualquer motivo, chegasse uma pessoa de fora, a nossa tentação era falar-lhe da cabine telefónica. Aos nossos olhos, era a maior atracção da vila. Durante o tempo em que a instalaram, houve sempre homens e crianças a assistir a cada avanço dos trabalhos. Os mais entendidos faziam comentários. Eu também lá estive nesses dias de picaretas, de buracos na terra por baixo dos paralelos. Muitos homens a oferecerem-se para descarregar a cabine telefónica da traseira de uma camioneta. Hoje, tenho dificuldade em lembrar-me de como eram os dias anteriores a esses. Tenho imagens baças do meu corpo pequeno, com a camisa fora das calças, a correr em tardes de domingo no jardim, entre as laranjeiras, à volta do coreto vazio, a brincar com outros rapazes, mas essas são imagens mal definidas, baças. Aquilo que consigo recordar com toda a nitidez são as noites, maio, junho, em que saía de casa depois de jantar. A minha mãe perguntava-me onde ia e eu respondia que ia ao terreiro. Eram noites onde havia uma tranquilidade que nunca mais voltei a encontrar. Respirava profundamente. O ar era fresco porque os campos descansavam. Sem me cruzar com ninguém, caminhava pelas ruas, paralelos de granito. Reparava em pequenos pormenores. Pensava nos assuntos que me preenchiam a vida. Atravessava sombras. Quando chegava ao terreiro, o mais normal seria que já lá estivessem outros rapazes da minha idade. Nas raras vezes em que não estava ninguém, sentava-me no pequeno muro da cooperativa e esperava. As noites eram longas. Dez ou quinze minutos eram muito maiores do que dez ou quinze minutos, mas eu tinha tempo e esperava. Chegava sempre alguém. Passávamos as noites a conversar. Agora, penso naquilo que tínhamos para discutir e penso que éramos um grupo de rapazes numa vila que tinha apenas uma cabine telefónica a brilhar à noite. Nessa altura, acreditava nas nossos olhares. Aquelas palavras eram o mundo. Agora, ainda acredito nos olhares que tínhamos, mas utilizo outras palavras para continuá-los.José Luís PeixotoCrónica no Jornal de Letras, Artes e Ideias - nº 959


Se me lembro imediatamente das noites de maio e junho é por um capricho da memória. Na verdade, nós passávamos todas as noites, todas as estações, todos os meses, de janeiro a dezembro, à volta da cabine telefónica. No inverno, quando chovia, a poucos metros da cabine, encostávamo-nos à parede da cooperativa e ficávamos abrigados pela varanda. No verão, chegavam os emigrantes. Passavam horas à volta da cabine a contarem histórias para nos impressionarem, e a impressionavam-nos mesmo. Se me lembro logo das noites de maio e de junho é porque a minha memória as seleccionou entre todas as outras, utilizando a lógica incompreensível da própria memória, aproximando-se daquilo que é mais confortável, fugindo daquilo que custa mais, vagueando entre aragens.À noite, no terreiro, a cabine telefónica era o ponto mais iluminado. As suas luzes eram de um branco que não existia em mais nenhum lugar da vila. Nas ruas, as lâmpadas dos postes eram amarelas, tocavam a escuridão. A luz da cabine telefónica era muito diferente. Depois de jantar, quando nos aproximávamos, a cabine telefónica parecia qualquer coisa que poderíamos ter visto na televisão. As letras onde estava escrito “Telefone” não tinham imperfeições, não tinham linhas a saírem dos contornos, eram absolutamente rectas nas partes rectas das letras e redondas nas partes redondas. Mesmo muitos meses depois de ter sido instalada, a cabine telefónica não tinha qualquer risco ou sujidade. Aquele era um lugar que todas as pessoas da nossa terra estimavam, como poderiam estimar um relógio antigo ou qualquer objecto precioso. Muitas vezes, de manhã, ao passar pelo terreiro, vi a mulher que morava em frente à cabine telefónica a lavá-la. Utilizava água, que despejava e que escorria, suja, ao longo das regadeiras. Utilizava líquido dos vidros, que esfregava com folhas de jornal. Essa tarefa era-lhe atribuída por inerência do lugar onde vivia. Não creio, no entanto, que fosse um sacrifício. Mais depressa seria um orgulho, uma questão de brio. As pessoas que passavam comentavam o asseio da cabine telefónica. Esse era o pagamento do esforço de lavá-la. Nas outras ruas da vila, era exactamente assim que acontecia também com os caixotes do lixo. As pessoas que moravam perto dividiam entre si os dias em que os lavavam com vassouras, com baldes cheios de água. Depois, viravam-nos ao contrário para secarem.Todas as pessoas da nossa terra faziam gosto na forma e na existência da cabine telefónica. Se, por qualquer motivo, chegasse uma pessoa de fora, a nossa tentação era falar-lhe da cabine telefónica. Aos nossos olhos, era a maior atracção da vila. Durante o tempo em que a instalaram, houve sempre homens e crianças a assistir a cada avanço dos trabalhos. Os mais entendidos faziam comentários. Eu também lá estive nesses dias de picaretas, de buracos na terra por baixo dos paralelos. Muitos homens a oferecerem-se para descarregar a cabine telefónica da traseira de uma camioneta. Hoje, tenho dificuldade em lembrar-me de como eram os dias anteriores a esses. Tenho imagens baças do meu corpo pequeno, com a camisa fora das calças, a correr em tardes de domingo no jardim, entre as laranjeiras, à volta do coreto vazio, a brincar com outros rapazes, mas essas são imagens mal definidas, baças. Aquilo que consigo recordar com toda a nitidez são as noites, maio, junho, em que saía de casa depois de jantar. A minha mãe perguntava-me onde ia e eu respondia que ia ao terreiro. Eram noites onde havia uma tranquilidade que nunca mais voltei a encontrar. Respirava profundamente. O ar era fresco porque os campos descansavam. Sem me cruzar com ninguém, caminhava pelas ruas, paralelos de granito. Reparava em pequenos pormenores. Pensava nos assuntos que me preenchiam a vida. Atravessava sombras. Quando chegava ao terreiro, o mais normal seria que já lá estivessem outros rapazes da minha idade. Nas raras vezes em que não estava ninguém, sentava-me no pequeno muro da cooperativa e esperava. As noites eram longas. Dez ou quinze minutos eram muito maiores do que dez ou quinze minutos, mas eu tinha tempo e esperava. Chegava sempre alguém. Passávamos as noites a conversar. Agora, penso naquilo que tínhamos para discutir e penso que éramos um grupo de rapazes numa vila que tinha apenas uma cabine telefónica a brilhar à noite. Nessa altura, acreditava nas nossos olhares. Aquelas palavras eram o mundo. Agora, ainda acredito nos olhares que tínhamos, mas utilizo outras palavras para continuá-los.José Luís PeixotoCrónica no Jornal de Letras, Artes e Ideias - nº 959

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