Certas coisas são evidentes por si

01-03-2008
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Certas coisas são evidentes por si

Quando se chega ao essencial das coisas, tudo se resume a uma simples e determinante divisão de águas: entre os que amam a liberdade e os que acham que há coisas mais importantes. Alterar tamanho HÁ já uns largos anos, na redacção jornalística onde eu na altura trabalhava, estava a ver em directo na Eurovisão a cobertura da chegada do «ayatollah» Khomeini ao Irão, depois dos seus anos de exílio em França. Comigo estava uma jornalista, então militante do MRPP, devota da Revolução Cultural chinesa e do «Grande Timoneiro» Mao Tsé-Tung, e hoje militante do Bloco de Esquerda. Ela seguia entusiasmada a transmissão, insistindo comigo que ali estava um «libertador» do seu povo, que vinha pôr fim à relação promíscua entre o Irão e o Ocidente. Há meses que o Irão ocupava a frente dos noticiários e, seguindo atentamente o que se passava, saltava imediatamente à memória a comparação entre a Revolução Iraniana e a mítica Revolução de Outubro de 1917, o farol onde se embriagavam de luz todos os marxistas-leninistas do planeta: lá estava o Xá, Reza Pahlevi, fazendo o papel do Czar Nicolau II, presidindo a um regime corrupto, hipotecado aos interesses estratégicos e económicos das superpotências ocidentais, uma ditadura policial que o curso da história não poderia sustentar mais; lá estava o libertador Lenine, representado pelo «ayatollah» Khomeini, também ele abrigado e protegido cautelarmente por uma das mesmas superpotências que tinham alimentado o regime deposto e que agora patrocinavam o seu regresso do exílio (a França, no caso); e lá estava também o homem que desempenhava o mesmo fracassado papel que Kerensky desempenhara, o primeiro-ministro Shapur Baktiar, cuja tentativa de uma terceira via democrática e reformista chegara tarde demais para ter alguma hipótese de êxito, entre a intransigência de uns e o radicalismo de outros. HÁ já uns largos anos, na redacção jornalística onde eu na altura trabalhava, estava a ver em directo na Eurovisão a cobertura da chegada do «ayatollah» Khomeini ao Irão, depois dos seus anos de exílio em França. Comigo estava uma jornalista, então militante do MRPP, devota da Revolução Cultural chinesa e do «Grande Timoneiro» Mao Tsé-Tung, e hoje militante do Bloco de Esquerda. Ela seguia entusiasmada a transmissão, insistindo comigo que ali estava umdo seu povo, que vinha pôr fim à relação promíscua entre o Irão e o Ocidente. Há meses que o Irão ocupava a frente dos noticiários e, seguindo atentamente o que se passava, saltava imediatamente à memória a comparação entre a Revolução Iraniana e a mítica Revolução de Outubro de 1917, o farol onde se embriagavam de luz todos os marxistas-leninistas do planeta: lá estava o Xá, Reza Pahlevi, fazendo o papel do Czar Nicolau II, presidindo a um regime corrupto, hipotecado aos interesses estratégicos e económicos das superpotências ocidentais, uma ditadura policial que o curso da história não poderia sustentar mais; lá estava o libertador Lenine, representado pelo «ayatollah» Khomeini, também ele abrigado e protegido cautelarmente por uma das mesmas superpotências que tinham alimentado o regime deposto e que agora patrocinavam o seu regresso do exílio (a França, no caso); e lá estava também o homem que desempenhava o mesmo fracassado papel que Kerensky desempenhara, o primeiro-ministro Shapur Baktiar, cuja tentativa de uma terceira via democrática e reformista chegara tarde demais para ter alguma hipótese de êxito, entre a intransigência de uns e o radicalismo de outros. Mas, olhando as imagens do regresso de Khomeini ao seu país e das multidões que o aclamavam como a um semi-Deus, também saltava imediatamente à vista que o que se iria seguir não teria nada de revolucionário e, menos ainda, de libertador. Em devido tempo, a minha mãe ensinara-me que o critério para avaliar a natureza das pessoas continuava a não dispensar uma coisa básica: «olhar-lhes a cara». E eu olhava a cara do «libertador» e o que via era um ódio silencioso e feroz, um desejo de mando e de abuso há muito reprimido e que agora iria correr livre. Dois dias antes, a Eurovisão mostrara as imagens do Xá partindo para o exílio, estendendo a mão para beijar ao chefe das Forças Armadas, à porta do avião. Agora, na mesma pista do mesmo aeroporto, Khomeini também estendia as mãos sobre a multidão de fiéis que se atropelavam para as beijar ou tocar e que ele sacudia com um gesto de desprezo, como se sacodem moscas. Hoje, só por má-fé é possível fingir não compreender no que deu o regime do «homem novo» instalado por Khomeini no Irão. Nós, que vivemos em sociedades onde a religião diz respeito apenas à esfera privada de cada um e o Estado diz respeito ao governo de todos, onde os direitos cívicos prevalecem sobre qualquer direito de autoridade, onde os nossos filhos não são obrigados a frequentar escolas em que se ensina o ódio religioso e o combate ao «infiel», onde as mulheres não têm de se tapar e esconder como se a sua condição fosse em si mesma uma vergonha, onde as nossas vidas públicas e privadas não estão à mercê de esquadrões de vigilantes da moral, nós deveríamos perceber que temos também um dever correspondente a estes direitos, que é o de os defender contra quem os ameaça. A liberdade de que gozamos é a nossa fronteira vital, além da qual, ou não há vida ou ela não interessa. Há, porém quem goste de brincar com isto, com coisas sérias. Ou porque os seus códigos primários de pensamento cristalizaram no fundamentalismo leninista ou no fundamentalismo católico e daí não conseguem evoluir ainda que tentem, ou por simples ignorância cultural, ou porque gostam de estar onde julgam que está a moda e, para eles, a moda ainda é a Conferência de Bandoeng e «a culpa do homem branco» - mesmo depois de cinquenta anos a assistirem à violência, ao nepotismo, à corrupção, às ditaduras e às guerras civis e tribais dos regimes pós-coloniais instalados em África, na Ásia ou no mundo árabe e muçulmano. Veja-se, dentro da primeira categoria, o «historiador» oficial do Bloco de Esquerda, o extraordinário Fernando Rosas, que, passando a voar por cima de tudo, de três mil anos de civilização desde o mundo greco-romano, resume toda a nossa história e toda a nossa culpa nesta frase lapidar: «O Ocidente - isto é, o capitalismo sobrevivente da Segunda Guerra...». Para ele, a existência de uma ditadura teocrática no Irão, que organiza e financia o terrorismo internacional contra os «infiéis», que tem um Presidente que nega o Holocausto e defende a exterminação de Israel, e que, apesar de ser o quarto exportador mundial de petróleo, pretende desenvolver todo o processo de produção de energia nuclear, não é motivo suficiente para duvidar das suas intenções «pacíficas» e de pôr em causa os seus direitos de soberania sobre a bomba atómica. Está escrito nos livros: é uma questão de fé. A mesma fé que jamais desfalece a essa instituição mais museológica do que ideológica que é o nosso venerável Partido Comunista Português, o último guardião da saudosa «guerra fria», para quem é necessário «para lá da extraordinária dimensão da crise dos ‘cartoons’» ver «a ofensiva mais geral do grande capital e do imperialismo». Porque, dizem eles, o que está em causa «não é a liberdade de imprensa e de expressão, mas acções de carácter racista e xenófobo... que possam servir de pretexto para a estratégia de agressão e guerra imperialista contra países soberanos». E temos, no extremo oposto, do lado da tradicionalíssima ultradireita católica portuguesa, o pensamento lapidar de um Jaime Nogueira Pinto, que aqui expôs, na semana passada, a fantástica tese de que tudo isto que estamos a viver - a crise dos «cartoons», as multidões ululantes dos países muçulmanos queimando Embaixadas e apelando ao terrorismo em manifestações de rua nas próprias capitais do Ocidente - é uma conspiração sabiamente montada pelos ateus contra os homens de fé e destinada a impor a estes os seus horrendos valores (ou melhor, a ausência deles), entre os quais se inclui até, imagine-se, a pedofilia! Pelo que, não há outra solução que não a de os «homens de fé» - cristãos e muçulmanos - se unirem para derrotar a grande conspiração universal dos que não têm nem Deus nem valores morais. (Esta pregação poderia começar pelo Iraque, onde os sunitas e os xiitas andam agora a queimar as respectivas mesquitas e lugares santos e prontos a exterminarem-se uns aos outros pela valiosíssima razão de que, embora sejam da mesma cor, do mesmo povo, do mesmo país e da mesma religião, há não sei quantos séculos houve uma ligeira divergência religiosa entre eles, a qual continua a justificar vingança. Nesta questão particular e bem ilustrativa, não vejo bem que justificação se possa fundar na culpa do Ocidente, do grande capital, dos ateus ou dos pedófilos). Como sempre, quando se chega ao essencial das coisas, tudo se resume a uma simples e determinante divisão de águas: entre os que amam a liberdade e os que acham que há coisas mais importantes. P.S.: Mais uma vez este aviso, de carácter pessoal: tudo o que escrevo é publicado e assinado por mim. O que circula na Net com o meu nome - como agora uma suposta resposta a um texto do «Independente» - é falso e abusivo.

7

1 a 7 | 7 comentários

João Honesto 1 de Março de 2006 às 22:58

Olh'ás fontes!

Palpita-me que essa tal jornalista a que você se refere, mas cujo nome não diz (porque será?) não é militante do Bloco de Esquerda. Veja lá do rigor, para além das banalidades ideológico-religiosas e da geopolítica barata.

Diógenes 26 de Fevereiro de 2006 às 21:00

Vejo neste artigo uma dose de ingenuidade que não esperaria de um jornalista com tantos anos de experiência. MST ainda não percebeu quem são as entidades que têm mexido os cordelinhos da história mundial nos últimos sessenta anos. E que nos últimos quinze têm refinado, e de que maneira, a sua acção.

Fala na insurgência iraquiana, na guerra entre xiitas e sunitas, no programa nuclear iraniano, no terrorismo e nas caricaturas sem conseguir perceber o pano de fundo que os envolve. Com a informação que está hoje disponível na internet, esta posição é indefensável. Os que amam a liberdade não se podem confinar à «informação» veiculada pelos «media» tradicionais, hoje quase só difusores de propaganda e desinformação. Tem de ir muito mais longe!

Deixo-lhe um vídeo que pode explicar alguma coisa:

http://pirats.ttd.free.fr/ReOpen911/PainfulDeceptions_french.htm

Jebulinas Sousa 25 de Fevereiro de 2006 às 18:18

Ai a cotolicada!!!!

Pronto Miguel, conseguiu irritar a catolicada local. Ainda o mandam para a fogueiratodos sabemos como os católicos são anjinhos com a sua «fé»... ainda agora lá na Sede de Braga expulsaram uns alunos por terem a ousadia de dizerem o que pensam... enfim necessitma de uns neuróniozitos para poderem armazenar alguma informação....

Isabel Coutinho 25 de Fevereiro de 2006 às 16:03

Há anos que eu ando a dizer isto ...

Lembro-me como se fosse hoje:

Tudo começou com a queda do Xá, e a instauração do regime dos Ayatollas, liderado por aquele louco odioso que a França apaparicou durante anos e anos.

E toda a intelectualidade de esquerda a aplaudir ...

O Xá quiz fazer da Pérsia um país moderno e civilizado. Terá ido depressa demais, talvez. Tinha uma polícia política, é verdade. Mas que têm eles agora ?

A propria alteração do nome milenar do país, de Pérsia para Irão, reflecte uma atitude racista.

Irão significa terra de arianos. É certo que o povo persa é ariano, ao contrário da maioria dos outros dessa área, que tem origem semita. Este orgulho no arianismo, também Hitler o tinha. Hitler tinha as SS; os ayatolas tem os "guardas da revolução". Qual a diferença ?

E o actual presidente so Irão, não se mostra menos louco perigoso que o Fürer dos alemães. Ambos têm um ódio visceral aos judeus. Extermínio em câmaras de gaz, ou pela bomba atómica, qual é a diferença ?

Acontece que o nazismo foi derrubado, enquanto o fundamentalismo islâmico se espalhou como uma praga.

Estaline fez um pacto com Hitler: Não me ataques, que eu também não. E depois dividimos o espólio.

Hoje, é a esquerda tipo BE e o jurássico PCP a pactuar com os ayatolas!

Quanto ao que MST chama "fundamentalismo católico de direita" chamo-lhe a atenção para o facto a maioria dos católicos, e muita gente de direita, não ser fundamentalista. Mas, mesmo aqueles que o são, não lançam fatwas, não querem matar ninguém, e muito menos lançar bombas atómicas.

Cristo disse: "Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus". Os verdadeiros católicos observam este preceito.

Dizem os islâmicos que a sua religião considera Cristo um Profeta. O pior é que seguem cegamente um profeta posterior, que veio dizer em tudo o contrário do seu predecessor.

Quanto ao inefável "historiador" Fernando Rosas, só tem a notoriedade que os meios de comunicação lhe querem dar.

horaga 25 de Fevereiro de 2006 às 12:54

Ditadores

Muito elucidativo o texto, é bem verdade que é igual um ditador de esquerda a um de direita. Não sei qual o aborrecimento da direita clássica e tradicional. É por não haver pessoas com fé? Mas há quem tenha fé na condição humana, e não haver deus é também um deus.

Já agora qual é o conceito de português tradicional e religioso? É um club? Já camões dizia que a tradição já não é o que era! Talvez fosse anti-tradicionalista!E um pseudo religioso português! Claro está, o problema é o de os tradicionais religiosos ou anti-religiosos, que apenas são as duas faces da mesma moeda, não aceitarem algo que saia dos seus paramêtros de normalidade. Não percebem que os conceitos são relativos e limitados espacio-temporalmente.

MARTE8441 25 de Fevereiro de 2006 às 12:23

Claro que não é possivel discordar de tudo o que MST escreve.

O Ocidente deixou cair o Xá para na Pérsia instalar o mais odioso Estado Teocrático da actualidade.

Há um prazer mórbido deste mesmo Ocidente em servir-se de ditaduras para enfrentar outras deixando depois cair em desgraça todos aqueles de quem se serviu.

São,como mero exemplo,um Pinochet,um Mobutu e o próprio Xá,para não falar doutros na América do Sul ou na Ásia.

Contudo,os ditadores de esquerda são sempre poupados em nome da grandeza da Democracia Ocidental.

Após a Queda do ignóbil Muro da Vergonha,quantos ditadores ficaram a gozar da liberdade concedida pela grande Democracia Ocidental?

Os juizes Garzons limitam-se a mandar prender os ditadores de direita,mas deixam em plena liberdade um Fidel,um Eduardo dos Santos e tantos outros marxistas ou ex-marxistas disfarçados,tudo em nome da grande Democracia de Oeste.

MST vem a lume de espada em riste contra Rosa e Nogueira Pinto,colocando-os nos dois extremos,para fazer ressaltar a validade do "meio" onde MST se quer colocar,na chamada equidistância,para assim zurzir a seu belo prazer.

Rosas é o historiador do Museu Ideológico e,por isso,completamente ultrapassado pelos acontecimentos,mas Nogueira Pinto insere-se na tradição cultural e religiosa portuguesas.

Os ateus do tipo MST dão-se mal logicamente com a posição de Nogueira Pinto.Jamais compreenderão o que é possuir fé e acreditar.

E,por serem ateus,julgam-se com o direito e o dever de defender a "sua liberdade",ousando mesmo lançar gasolina no fogo,para que as chamas devorem os crentes.

Este obsceno MST é o fruto duma ABRILADA que enfrentou a tradição cultural e religiosa duma nação construida pela religiosidade do seu próprio povo.

Por isso,a visivel decadência do país com os MST's,jornalistas decadentes, defensores da contra corrente.

A liberdade do ateu MST é aqui defendida pelo próprio como o modelo a seguir para justificar toda a irresponsabilidade dessa mesma liberdade.

MST pretende continuar a enfiar um preservativo no nariz do Papa,uma bomba na cabeça de Maomé ou um missil na mão de Cristo,mesmo que seja em BD ou em qualquer forma de agressão religiosa,desde que o ateismo prevaleça como corrente da sociedade em que MST quer chafurdar.

MST continua a não ter emenda como os pobres diabos.

JP. Reis 25 de Fevereiro de 2006 às 09:20

Cuidado MST!!!!!

Teve o desplante de criticar o grande, e superior a todos os outros, intelectual da esquerda portuguesa, Fernando Rosas.

Arranjou mais um inimigo, mas fez muito bem, usou a sua liberdade de expressão e escreveu, seja sobre ele o PCP e mais importante ainda sobre o regime iraniano seus fundadores e dirigentes, aquilo que muito boa gente não tem a coragem e a cabeça fria para o fazer.

Em relação ao Irão deveremos estar atentos às medidas a serem tomadas, soloções "bushianas" já demonstraram à saciadade no Iraque que são, usando uma só palavra, estúpidas, o que aliás não admira vindas de quem vêm.

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Certas coisas são evidentes por si

Quando se chega ao essencial das coisas, tudo se resume a uma simples e determinante divisão de águas: entre os que amam a liberdade e os que acham que há coisas mais importantes. Alterar tamanho HÁ já uns largos anos, na redacção jornalística onde eu na altura trabalhava, estava a ver em directo na Eurovisão a cobertura da chegada do «ayatollah» Khomeini ao Irão, depois dos seus anos de exílio em França. Comigo estava uma jornalista, então militante do MRPP, devota da Revolução Cultural chinesa e do «Grande Timoneiro» Mao Tsé-Tung, e hoje militante do Bloco de Esquerda. Ela seguia entusiasmada a transmissão, insistindo comigo que ali estava um «libertador» do seu povo, que vinha pôr fim à relação promíscua entre o Irão e o Ocidente. Há meses que o Irão ocupava a frente dos noticiários e, seguindo atentamente o que se passava, saltava imediatamente à memória a comparação entre a Revolução Iraniana e a mítica Revolução de Outubro de 1917, o farol onde se embriagavam de luz todos os marxistas-leninistas do planeta: lá estava o Xá, Reza Pahlevi, fazendo o papel do Czar Nicolau II, presidindo a um regime corrupto, hipotecado aos interesses estratégicos e económicos das superpotências ocidentais, uma ditadura policial que o curso da história não poderia sustentar mais; lá estava o libertador Lenine, representado pelo «ayatollah» Khomeini, também ele abrigado e protegido cautelarmente por uma das mesmas superpotências que tinham alimentado o regime deposto e que agora patrocinavam o seu regresso do exílio (a França, no caso); e lá estava também o homem que desempenhava o mesmo fracassado papel que Kerensky desempenhara, o primeiro-ministro Shapur Baktiar, cuja tentativa de uma terceira via democrática e reformista chegara tarde demais para ter alguma hipótese de êxito, entre a intransigência de uns e o radicalismo de outros. HÁ já uns largos anos, na redacção jornalística onde eu na altura trabalhava, estava a ver em directo na Eurovisão a cobertura da chegada do «ayatollah» Khomeini ao Irão, depois dos seus anos de exílio em França. Comigo estava uma jornalista, então militante do MRPP, devota da Revolução Cultural chinesa e do «Grande Timoneiro» Mao Tsé-Tung, e hoje militante do Bloco de Esquerda. Ela seguia entusiasmada a transmissão, insistindo comigo que ali estava umdo seu povo, que vinha pôr fim à relação promíscua entre o Irão e o Ocidente. Há meses que o Irão ocupava a frente dos noticiários e, seguindo atentamente o que se passava, saltava imediatamente à memória a comparação entre a Revolução Iraniana e a mítica Revolução de Outubro de 1917, o farol onde se embriagavam de luz todos os marxistas-leninistas do planeta: lá estava o Xá, Reza Pahlevi, fazendo o papel do Czar Nicolau II, presidindo a um regime corrupto, hipotecado aos interesses estratégicos e económicos das superpotências ocidentais, uma ditadura policial que o curso da história não poderia sustentar mais; lá estava o libertador Lenine, representado pelo «ayatollah» Khomeini, também ele abrigado e protegido cautelarmente por uma das mesmas superpotências que tinham alimentado o regime deposto e que agora patrocinavam o seu regresso do exílio (a França, no caso); e lá estava também o homem que desempenhava o mesmo fracassado papel que Kerensky desempenhara, o primeiro-ministro Shapur Baktiar, cuja tentativa de uma terceira via democrática e reformista chegara tarde demais para ter alguma hipótese de êxito, entre a intransigência de uns e o radicalismo de outros. Mas, olhando as imagens do regresso de Khomeini ao seu país e das multidões que o aclamavam como a um semi-Deus, também saltava imediatamente à vista que o que se iria seguir não teria nada de revolucionário e, menos ainda, de libertador. Em devido tempo, a minha mãe ensinara-me que o critério para avaliar a natureza das pessoas continuava a não dispensar uma coisa básica: «olhar-lhes a cara». E eu olhava a cara do «libertador» e o que via era um ódio silencioso e feroz, um desejo de mando e de abuso há muito reprimido e que agora iria correr livre. Dois dias antes, a Eurovisão mostrara as imagens do Xá partindo para o exílio, estendendo a mão para beijar ao chefe das Forças Armadas, à porta do avião. Agora, na mesma pista do mesmo aeroporto, Khomeini também estendia as mãos sobre a multidão de fiéis que se atropelavam para as beijar ou tocar e que ele sacudia com um gesto de desprezo, como se sacodem moscas. Hoje, só por má-fé é possível fingir não compreender no que deu o regime do «homem novo» instalado por Khomeini no Irão. Nós, que vivemos em sociedades onde a religião diz respeito apenas à esfera privada de cada um e o Estado diz respeito ao governo de todos, onde os direitos cívicos prevalecem sobre qualquer direito de autoridade, onde os nossos filhos não são obrigados a frequentar escolas em que se ensina o ódio religioso e o combate ao «infiel», onde as mulheres não têm de se tapar e esconder como se a sua condição fosse em si mesma uma vergonha, onde as nossas vidas públicas e privadas não estão à mercê de esquadrões de vigilantes da moral, nós deveríamos perceber que temos também um dever correspondente a estes direitos, que é o de os defender contra quem os ameaça. A liberdade de que gozamos é a nossa fronteira vital, além da qual, ou não há vida ou ela não interessa. Há, porém quem goste de brincar com isto, com coisas sérias. Ou porque os seus códigos primários de pensamento cristalizaram no fundamentalismo leninista ou no fundamentalismo católico e daí não conseguem evoluir ainda que tentem, ou por simples ignorância cultural, ou porque gostam de estar onde julgam que está a moda e, para eles, a moda ainda é a Conferência de Bandoeng e «a culpa do homem branco» - mesmo depois de cinquenta anos a assistirem à violência, ao nepotismo, à corrupção, às ditaduras e às guerras civis e tribais dos regimes pós-coloniais instalados em África, na Ásia ou no mundo árabe e muçulmano. Veja-se, dentro da primeira categoria, o «historiador» oficial do Bloco de Esquerda, o extraordinário Fernando Rosas, que, passando a voar por cima de tudo, de três mil anos de civilização desde o mundo greco-romano, resume toda a nossa história e toda a nossa culpa nesta frase lapidar: «O Ocidente - isto é, o capitalismo sobrevivente da Segunda Guerra...». Para ele, a existência de uma ditadura teocrática no Irão, que organiza e financia o terrorismo internacional contra os «infiéis», que tem um Presidente que nega o Holocausto e defende a exterminação de Israel, e que, apesar de ser o quarto exportador mundial de petróleo, pretende desenvolver todo o processo de produção de energia nuclear, não é motivo suficiente para duvidar das suas intenções «pacíficas» e de pôr em causa os seus direitos de soberania sobre a bomba atómica. Está escrito nos livros: é uma questão de fé. A mesma fé que jamais desfalece a essa instituição mais museológica do que ideológica que é o nosso venerável Partido Comunista Português, o último guardião da saudosa «guerra fria», para quem é necessário «para lá da extraordinária dimensão da crise dos ‘cartoons’» ver «a ofensiva mais geral do grande capital e do imperialismo». Porque, dizem eles, o que está em causa «não é a liberdade de imprensa e de expressão, mas acções de carácter racista e xenófobo... que possam servir de pretexto para a estratégia de agressão e guerra imperialista contra países soberanos». E temos, no extremo oposto, do lado da tradicionalíssima ultradireita católica portuguesa, o pensamento lapidar de um Jaime Nogueira Pinto, que aqui expôs, na semana passada, a fantástica tese de que tudo isto que estamos a viver - a crise dos «cartoons», as multidões ululantes dos países muçulmanos queimando Embaixadas e apelando ao terrorismo em manifestações de rua nas próprias capitais do Ocidente - é uma conspiração sabiamente montada pelos ateus contra os homens de fé e destinada a impor a estes os seus horrendos valores (ou melhor, a ausência deles), entre os quais se inclui até, imagine-se, a pedofilia! Pelo que, não há outra solução que não a de os «homens de fé» - cristãos e muçulmanos - se unirem para derrotar a grande conspiração universal dos que não têm nem Deus nem valores morais. (Esta pregação poderia começar pelo Iraque, onde os sunitas e os xiitas andam agora a queimar as respectivas mesquitas e lugares santos e prontos a exterminarem-se uns aos outros pela valiosíssima razão de que, embora sejam da mesma cor, do mesmo povo, do mesmo país e da mesma religião, há não sei quantos séculos houve uma ligeira divergência religiosa entre eles, a qual continua a justificar vingança. Nesta questão particular e bem ilustrativa, não vejo bem que justificação se possa fundar na culpa do Ocidente, do grande capital, dos ateus ou dos pedófilos). Como sempre, quando se chega ao essencial das coisas, tudo se resume a uma simples e determinante divisão de águas: entre os que amam a liberdade e os que acham que há coisas mais importantes. P.S.: Mais uma vez este aviso, de carácter pessoal: tudo o que escrevo é publicado e assinado por mim. O que circula na Net com o meu nome - como agora uma suposta resposta a um texto do «Independente» - é falso e abusivo.

7

1 a 7 | 7 comentários

João Honesto 1 de Março de 2006 às 22:58

Olh'ás fontes!

Palpita-me que essa tal jornalista a que você se refere, mas cujo nome não diz (porque será?) não é militante do Bloco de Esquerda. Veja lá do rigor, para além das banalidades ideológico-religiosas e da geopolítica barata.

Diógenes 26 de Fevereiro de 2006 às 21:00

Vejo neste artigo uma dose de ingenuidade que não esperaria de um jornalista com tantos anos de experiência. MST ainda não percebeu quem são as entidades que têm mexido os cordelinhos da história mundial nos últimos sessenta anos. E que nos últimos quinze têm refinado, e de que maneira, a sua acção.

Fala na insurgência iraquiana, na guerra entre xiitas e sunitas, no programa nuclear iraniano, no terrorismo e nas caricaturas sem conseguir perceber o pano de fundo que os envolve. Com a informação que está hoje disponível na internet, esta posição é indefensável. Os que amam a liberdade não se podem confinar à «informação» veiculada pelos «media» tradicionais, hoje quase só difusores de propaganda e desinformação. Tem de ir muito mais longe!

Deixo-lhe um vídeo que pode explicar alguma coisa:

http://pirats.ttd.free.fr/ReOpen911/PainfulDeceptions_french.htm

Jebulinas Sousa 25 de Fevereiro de 2006 às 18:18

Ai a cotolicada!!!!

Pronto Miguel, conseguiu irritar a catolicada local. Ainda o mandam para a fogueiratodos sabemos como os católicos são anjinhos com a sua «fé»... ainda agora lá na Sede de Braga expulsaram uns alunos por terem a ousadia de dizerem o que pensam... enfim necessitma de uns neuróniozitos para poderem armazenar alguma informação....

Isabel Coutinho 25 de Fevereiro de 2006 às 16:03

Há anos que eu ando a dizer isto ...

Lembro-me como se fosse hoje:

Tudo começou com a queda do Xá, e a instauração do regime dos Ayatollas, liderado por aquele louco odioso que a França apaparicou durante anos e anos.

E toda a intelectualidade de esquerda a aplaudir ...

O Xá quiz fazer da Pérsia um país moderno e civilizado. Terá ido depressa demais, talvez. Tinha uma polícia política, é verdade. Mas que têm eles agora ?

A propria alteração do nome milenar do país, de Pérsia para Irão, reflecte uma atitude racista.

Irão significa terra de arianos. É certo que o povo persa é ariano, ao contrário da maioria dos outros dessa área, que tem origem semita. Este orgulho no arianismo, também Hitler o tinha. Hitler tinha as SS; os ayatolas tem os "guardas da revolução". Qual a diferença ?

E o actual presidente so Irão, não se mostra menos louco perigoso que o Fürer dos alemães. Ambos têm um ódio visceral aos judeus. Extermínio em câmaras de gaz, ou pela bomba atómica, qual é a diferença ?

Acontece que o nazismo foi derrubado, enquanto o fundamentalismo islâmico se espalhou como uma praga.

Estaline fez um pacto com Hitler: Não me ataques, que eu também não. E depois dividimos o espólio.

Hoje, é a esquerda tipo BE e o jurássico PCP a pactuar com os ayatolas!

Quanto ao que MST chama "fundamentalismo católico de direita" chamo-lhe a atenção para o facto a maioria dos católicos, e muita gente de direita, não ser fundamentalista. Mas, mesmo aqueles que o são, não lançam fatwas, não querem matar ninguém, e muito menos lançar bombas atómicas.

Cristo disse: "Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus". Os verdadeiros católicos observam este preceito.

Dizem os islâmicos que a sua religião considera Cristo um Profeta. O pior é que seguem cegamente um profeta posterior, que veio dizer em tudo o contrário do seu predecessor.

Quanto ao inefável "historiador" Fernando Rosas, só tem a notoriedade que os meios de comunicação lhe querem dar.

horaga 25 de Fevereiro de 2006 às 12:54

Ditadores

Muito elucidativo o texto, é bem verdade que é igual um ditador de esquerda a um de direita. Não sei qual o aborrecimento da direita clássica e tradicional. É por não haver pessoas com fé? Mas há quem tenha fé na condição humana, e não haver deus é também um deus.

Já agora qual é o conceito de português tradicional e religioso? É um club? Já camões dizia que a tradição já não é o que era! Talvez fosse anti-tradicionalista!E um pseudo religioso português! Claro está, o problema é o de os tradicionais religiosos ou anti-religiosos, que apenas são as duas faces da mesma moeda, não aceitarem algo que saia dos seus paramêtros de normalidade. Não percebem que os conceitos são relativos e limitados espacio-temporalmente.

MARTE8441 25 de Fevereiro de 2006 às 12:23

Claro que não é possivel discordar de tudo o que MST escreve.

O Ocidente deixou cair o Xá para na Pérsia instalar o mais odioso Estado Teocrático da actualidade.

Há um prazer mórbido deste mesmo Ocidente em servir-se de ditaduras para enfrentar outras deixando depois cair em desgraça todos aqueles de quem se serviu.

São,como mero exemplo,um Pinochet,um Mobutu e o próprio Xá,para não falar doutros na América do Sul ou na Ásia.

Contudo,os ditadores de esquerda são sempre poupados em nome da grandeza da Democracia Ocidental.

Após a Queda do ignóbil Muro da Vergonha,quantos ditadores ficaram a gozar da liberdade concedida pela grande Democracia Ocidental?

Os juizes Garzons limitam-se a mandar prender os ditadores de direita,mas deixam em plena liberdade um Fidel,um Eduardo dos Santos e tantos outros marxistas ou ex-marxistas disfarçados,tudo em nome da grande Democracia de Oeste.

MST vem a lume de espada em riste contra Rosa e Nogueira Pinto,colocando-os nos dois extremos,para fazer ressaltar a validade do "meio" onde MST se quer colocar,na chamada equidistância,para assim zurzir a seu belo prazer.

Rosas é o historiador do Museu Ideológico e,por isso,completamente ultrapassado pelos acontecimentos,mas Nogueira Pinto insere-se na tradição cultural e religiosa portuguesas.

Os ateus do tipo MST dão-se mal logicamente com a posição de Nogueira Pinto.Jamais compreenderão o que é possuir fé e acreditar.

E,por serem ateus,julgam-se com o direito e o dever de defender a "sua liberdade",ousando mesmo lançar gasolina no fogo,para que as chamas devorem os crentes.

Este obsceno MST é o fruto duma ABRILADA que enfrentou a tradição cultural e religiosa duma nação construida pela religiosidade do seu próprio povo.

Por isso,a visivel decadência do país com os MST's,jornalistas decadentes, defensores da contra corrente.

A liberdade do ateu MST é aqui defendida pelo próprio como o modelo a seguir para justificar toda a irresponsabilidade dessa mesma liberdade.

MST pretende continuar a enfiar um preservativo no nariz do Papa,uma bomba na cabeça de Maomé ou um missil na mão de Cristo,mesmo que seja em BD ou em qualquer forma de agressão religiosa,desde que o ateismo prevaleça como corrente da sociedade em que MST quer chafurdar.

MST continua a não ter emenda como os pobres diabos.

JP. Reis 25 de Fevereiro de 2006 às 09:20

Cuidado MST!!!!!

Teve o desplante de criticar o grande, e superior a todos os outros, intelectual da esquerda portuguesa, Fernando Rosas.

Arranjou mais um inimigo, mas fez muito bem, usou a sua liberdade de expressão e escreveu, seja sobre ele o PCP e mais importante ainda sobre o regime iraniano seus fundadores e dirigentes, aquilo que muito boa gente não tem a coragem e a cabeça fria para o fazer.

Em relação ao Irão deveremos estar atentos às medidas a serem tomadas, soloções "bushianas" já demonstraram à saciadade no Iraque que são, usando uma só palavra, estúpidas, o que aliás não admira vindas de quem vêm.

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