Da Literatura: ROSA LOBATO DE FARIA

20-05-2009
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Hoje no Público:Ouvida por Isabel Coutinho para o dossiê sobre ficção gay portuguesa que o Ípsilon publicou a 24 de Agosto, Rosa Lobato de Faria (n. 1932) afirmou não ter tido intenção prévia quando escreveu A Alma Trocada, uma vez que a última coisa que lhe passaria pela cabeça seria «escrever um livro para o inserir num género.» A entrevista tinha razão de ser porque entre nós não é vulgar fazer do coming out tema de romance, ainda para mais no contexto de uma obra como a de Rosa Lobato de Faria. Nada o indiciava nos nove romances anteriores ou na figura pública da escritora. Estas coisas são afinal mais simples do que parecem: «Teófilo é uma personagem como outra qualquer. [...] Gostei daquele homem cheio de fragilidades porque não o deixaram crescer como ele devia ter crescido.» A naturalidade é sempre desarmante. Este Teófilo à volta de quem tudo gira, é um homem nascido em Março de 1976, professor de francês num colégio de Lisboa, alguém que desenha nas horas vagas e acalenta o desejo de ser escritor. Aos 26 anos decide sair do armário, perante a aparente indiferença da “noiva”, a cumplicidade da avó Jacinta (uma matriarca alentejana), o desespero da mãe e o ódio do pai. Anos a fio a suportar o peso das normas, a pressão social, os equívocos da “normalidade”, em terreno sempre escorregadio, desde o dia longínquo em que descobriu o «rasgão no peito». Descoberta abrupta, à beira dos 13 anos, quando surpreende o Tinito, cinco anos mais velho, a masturbar-se: «foi quando vi o Tinito, todo nu, entretido com o seu próprio membro [...] a deliciar-se com o seu rapidíssimo jogo de mão.» Segue-se a iniciação às mãos do referido Tinito, cigano bem-parecido criado em casa da avó Jacinta. Nesse dia percebeu. Muitos anos passados, Tinito continuará a alimentar as suas fantasias eróticas. Mas quem o faz enfrentar a família e a sociedade é outro homem, Hugo, um advogado jovem sem problemas identitários. A acção do romance divide-se entre Lisboa, o Estoril (onde Teófilo e Hugo arranjam casa) e o monte alentejano da avó Jacinta, com rápida digressão parisiense, em ambiente burguês, com apontamentos certeiros sobre tiques, hábitos e costumes das classes médias urbanas. A fluência narrativa não tropeça no sexo: «Cala-te, patrão. Não digas nada se não queres ser violado à bruta. [...] Só sei que lhe gritei uma vez e outra e outra vez, amo-te estúpido, amo-te animal, amo-te cabrão, filho da puta, cigano de merda, meu amor.» Passa-se isto quando, já casado e pai de filhos, Tinito leva Teófilo a trair Hugo, seu companheiro, de facto. Reflexo simétrico da libertinagem do século XVIII, quando o casamento significava carta de alforria? Seja como for, a história é mais complexa do que este intróito pressupõe. Raquel, a “noiva” rejeitada, está na origem de uma sucessão de crimes: rouba os manuscritos de Teófilo, fazendo-os publicar com outro nome; encomenda o seu atropelamento; e depois o sequestro de uma criança. Acaba presa. Estas e outras peripécias dão colorido à acção, mas não me parece que resida nelas o essencial da intriga. O essencial são as contradições de Teófilo, homossexual enrustido até quase aos trinta anos, assombrado pelo fantasma desestabilizador do cigano que gostava de jogar ao gato e ao rato. A ligação de Teófilo e Hugo mais não é que um pretexto da “respeitabilidade” que Teófilo inventou no dia em que assume a condição de homossexual. Só depois dessa nova “normalidade” irá transgredir. Que tudo isto seja descrito com assinalável desenvoltura, eis o que só surpreenderá quem confunda literatura com experiência de vida. Sem curar de conveniências ou proselitismo, Rosa Lobato de Faria constrói o plot com grande segurança, não recuando, sempre que necessário, na utilização (correcta) de calão e dos verbos mais adequados a cada circunstância. Por vezes, certa deriva naïf — como nas recorrentes invocações de «um tempo de oxálida, cítara, xairel, gomil, rocio, cântaro, miligrã» — tende a desequilibrar o fôlego discursivo, que tem momentos deveras conseguidos, como o longo monólogo interior que sucede à festa de aniversário de Teófilo, no dia da inauguração da casa nova. De resto, o tom dos períodos mais “adocicados” lembra muito, nas suas declinações de classe, o daquela literatura gay (nacional) que alguns sectores da crítica caucionam e a generalidade dos leitores aceita sem incómodo. Tudo visto, A Alma Trocada é mais do que isso.Um Rasgão no Peito, in Ípsilon, 5-10-2007, p. 55. Quatro estrelas.Etiquetas: Crítica literária

Hoje no Público:Ouvida por Isabel Coutinho para o dossiê sobre ficção gay portuguesa que o Ípsilon publicou a 24 de Agosto, Rosa Lobato de Faria (n. 1932) afirmou não ter tido intenção prévia quando escreveu A Alma Trocada, uma vez que a última coisa que lhe passaria pela cabeça seria «escrever um livro para o inserir num género.» A entrevista tinha razão de ser porque entre nós não é vulgar fazer do coming out tema de romance, ainda para mais no contexto de uma obra como a de Rosa Lobato de Faria. Nada o indiciava nos nove romances anteriores ou na figura pública da escritora. Estas coisas são afinal mais simples do que parecem: «Teófilo é uma personagem como outra qualquer. [...] Gostei daquele homem cheio de fragilidades porque não o deixaram crescer como ele devia ter crescido.» A naturalidade é sempre desarmante. Este Teófilo à volta de quem tudo gira, é um homem nascido em Março de 1976, professor de francês num colégio de Lisboa, alguém que desenha nas horas vagas e acalenta o desejo de ser escritor. Aos 26 anos decide sair do armário, perante a aparente indiferença da “noiva”, a cumplicidade da avó Jacinta (uma matriarca alentejana), o desespero da mãe e o ódio do pai. Anos a fio a suportar o peso das normas, a pressão social, os equívocos da “normalidade”, em terreno sempre escorregadio, desde o dia longínquo em que descobriu o «rasgão no peito». Descoberta abrupta, à beira dos 13 anos, quando surpreende o Tinito, cinco anos mais velho, a masturbar-se: «foi quando vi o Tinito, todo nu, entretido com o seu próprio membro [...] a deliciar-se com o seu rapidíssimo jogo de mão.» Segue-se a iniciação às mãos do referido Tinito, cigano bem-parecido criado em casa da avó Jacinta. Nesse dia percebeu. Muitos anos passados, Tinito continuará a alimentar as suas fantasias eróticas. Mas quem o faz enfrentar a família e a sociedade é outro homem, Hugo, um advogado jovem sem problemas identitários. A acção do romance divide-se entre Lisboa, o Estoril (onde Teófilo e Hugo arranjam casa) e o monte alentejano da avó Jacinta, com rápida digressão parisiense, em ambiente burguês, com apontamentos certeiros sobre tiques, hábitos e costumes das classes médias urbanas. A fluência narrativa não tropeça no sexo: «Cala-te, patrão. Não digas nada se não queres ser violado à bruta. [...] Só sei que lhe gritei uma vez e outra e outra vez, amo-te estúpido, amo-te animal, amo-te cabrão, filho da puta, cigano de merda, meu amor.» Passa-se isto quando, já casado e pai de filhos, Tinito leva Teófilo a trair Hugo, seu companheiro, de facto. Reflexo simétrico da libertinagem do século XVIII, quando o casamento significava carta de alforria? Seja como for, a história é mais complexa do que este intróito pressupõe. Raquel, a “noiva” rejeitada, está na origem de uma sucessão de crimes: rouba os manuscritos de Teófilo, fazendo-os publicar com outro nome; encomenda o seu atropelamento; e depois o sequestro de uma criança. Acaba presa. Estas e outras peripécias dão colorido à acção, mas não me parece que resida nelas o essencial da intriga. O essencial são as contradições de Teófilo, homossexual enrustido até quase aos trinta anos, assombrado pelo fantasma desestabilizador do cigano que gostava de jogar ao gato e ao rato. A ligação de Teófilo e Hugo mais não é que um pretexto da “respeitabilidade” que Teófilo inventou no dia em que assume a condição de homossexual. Só depois dessa nova “normalidade” irá transgredir. Que tudo isto seja descrito com assinalável desenvoltura, eis o que só surpreenderá quem confunda literatura com experiência de vida. Sem curar de conveniências ou proselitismo, Rosa Lobato de Faria constrói o plot com grande segurança, não recuando, sempre que necessário, na utilização (correcta) de calão e dos verbos mais adequados a cada circunstância. Por vezes, certa deriva naïf — como nas recorrentes invocações de «um tempo de oxálida, cítara, xairel, gomil, rocio, cântaro, miligrã» — tende a desequilibrar o fôlego discursivo, que tem momentos deveras conseguidos, como o longo monólogo interior que sucede à festa de aniversário de Teófilo, no dia da inauguração da casa nova. De resto, o tom dos períodos mais “adocicados” lembra muito, nas suas declinações de classe, o daquela literatura gay (nacional) que alguns sectores da crítica caucionam e a generalidade dos leitores aceita sem incómodo. Tudo visto, A Alma Trocada é mais do que isso.Um Rasgão no Peito, in Ípsilon, 5-10-2007, p. 55. Quatro estrelas.Etiquetas: Crítica literária

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