Clube de Reflexão Política: Sobre os espelhos: o PS, a política e a estridência do prosélito

29-09-2009
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(Para Henrique Neto)Sobretudo hoje, que a simples suspeita de uma vinculação alheia à linha do secretário-geral, seja ele quem for, tende a gerar invisibilidade, parece imprescindível àqueles que, no Partido Socialista, querem fazer um caminho de reflexão apartado da beata concordância com as políticas do governo, manter a serena disposição de persistir num fio condutor para a acção política essencialmente divergente do oficial - e dizê-lo.Dou um exemplo.É sabido como uma parte da ideia actualmente dominante no PS vê com admirativa complacência o trabalho de demolição dos sindicatos encetado nos anos de Thatcher, que também foram os do ‘capitalismo popular’, e como, sem rebuço ou nostalgia, o blairismo que o inspira se procurou desfazer do pesadíssimo ónus de um Labour hegemonizado pela ‘velha’ esquerda operária e sindical, isto tudo aproveitando a embalagem que lhe vinha da velha Dama de Ferro. O núcleo dirigente do PS assimilou, do exemplo inglês, um nome, Anthony Giddens, uma ‘noção’: terceira via, e com isso congeminou um híbrido de sociedade de mercado (em que tudo é privatizável e gerível segundo as normas ‘da iniciativa privada’, o que fica sempre por explicar na sua inteireza, mas deve ser lido como ‘mais eficaz’, ‘mais prontamente gerador de riqueza’ e, sobretudo, ‘mais imune a calões que vivem da extraordinária sinecura que é a condição de funcionário público’) e de economia planificada de direcção central, que tende a converter públicos menos protegidos dos abusos do paternalismo em clientela insciente de produtos de que se poderia dizer que ou são inócuos como um placebo ou modificam, através de um controlo oligopolista dos stocks e dos preços, o efectivo jogo das preferências que se haveriam de estruturar livremente no mercado (de acordo com o dogma). (O segundo termo da equação é a contribuição original dos portugueses para a terceira via primitiva, talvez explicável por uma sumária espreitadela às histórias pretéritas de ambas as democracias, se descontarmos a bizarra leitura de António Brotas na local do Acção Socialista reproduzida em post anterior.) Em tudo isto foi-se afirmando uma governação que evitava tocar, para melhorar, naquilo que, na acção do Estado, é estratégico. Não era, longe disso, da regulação do mercado financeiro que se ocupava o governo. Nem de uma intervenção decidida na economia, suportando escolhas racionais e ordenadas ao mandamento prudencial de fazer os investidores e accionistas partilhar, mais do que o risco de perda, a responsabilidade social que acompanha a actividade empresarial. Nem do alargamento das condições de participação responsável na ‘coisa pública’, tarefa alegremente substituída por sobressaltos fracturantes indiscriminados, de pequena monta e, já agora, manifestamente oportunistas – tentando, por exemplo, pescar os votos gay e cosmopolita nas águas da ‘direita chique’, do tal BE execrado –, que obscurecem a percepção dos riscos de efectiva redução dos espaços de liberdade: a História manda reconhecer que não há contradição entre casamento gay e uma imprensa indolente e servil ou uma justiça inquietantemente volúvel e palavrosa, p.ex.. Como frequentemente acontece quando não há um rumo, apenas monopólio, tratou-se essencialmente de manipular, a partir do centro político, a esfera dos recursos simbólicos. Entre o ataque aos trabalhadores ao serviço do Estado, a redução do âmbito simbólico e material da soberania e a extraordinária aproximação aos mercados do entertainment e das comunicações, hoje completamente fundidos, a orientação geral da governação não parece ter sido, ao contrário do que se pretende, contenção da despesa e reestruturação dos serviços públicos, impulso à produção, prioridade ao emprego, mas antes coordenação funcional passiva, subordinada, do fátuo campo do poder com as ‘forças do mercado’, pilotada, tal coordenação, pelos sectores da esfera empresarial ex- e para-estatal com sede ideológica para as bandas do Convento do Beato e do Compromisso Portugal. E uma, se não intencional, pelo menos muito a-propósito, desorganização e paralisia de serviços nucleares do Estado, para efeitos de demonstração. Ora, é disto que importa falar dentro do PS. É das opções de política em presença que há muito é imprescindível falar, para lá da já velha ‘nova retórica’ das ‘políticas públicas’. De outro modo, resta-nos a superstição e o sextante, à maneira das exuberantes metáforas do ministro das Finanças, que nunca poderemos esquecer se quisermos compreender a que abismos conduz a auto-estima. Não sabemos o que é mais extraordinário: se dizer que «fazer política em condições de normalidade é quase como navegar com GPS», se acrescentar que a coisa está tão má que «temos de nos guiar pelas estrelas». Ambas as declarações proferidas numa universidade meridional, que se presume ‘escola de quadros’. Tudo isto passa, de uma maneira ou de outra, pela Carta Aberta que Henrique Neto dirigiu, no passado sábado, a Augusto Santos Silva e a Manuel Alegre (Público, 7.2.09). E é de um balanço indispensável da governação socialista que fala, com rara oportunidade, mesmo que se não concorde inteiramente com o diagnóstico e o prognóstico, Joaquim Jorge Veiguinha, quando antecipa o tom e o som do próximo congresso do Partido Socialista (Público, 31.1.09). Aqueles que, dentro do PS, não concordam com as palavras afrontosas e insuportavelmente intolerantes proferidas por Augusto Santos Silva no Largo do Rato não são menos amigos do PS e dos seus heróis – que serão todos quantos, na sua breve história, desenharam uma possibilidade para a esquerda, vinculada ao ideário complexo do socialismo e da social-democracia. E certamente não estarão disponíveis para abdicar da liberdade de crítica, da liberdade de acção e, acima de tudo, de reclamar uma indispensável independência do Partido relativamente ao Estado e ao governo. A subordinação integral do Partido Socialista ao governo está a gerar uma relação alucinada dos militantes e apoiantes com o real: todos os dias lhes chegam notícias de que o mundo tem de ser como lhes contam a partir dos gabinetes de imprensa. Não como a sua mente, certamente enganada, e por isso culpada, o compreende, experimenta e, tantas vezes, sofre. Os dias que aí vêm serão muito exigentes, não duvidemos. E os sacerdotes do templo da ortodoxia não conseguirão ocultar por muito tempo a sua incapacidade para reconhecer a natureza dos desafios que se colocam à esquerda, lá das profundas do seu colectivo exercício de egotismo e self-deception. E isso não será, ao contrário do que os mesmos se esforçam por fazer crer, a derrota do PS. Será apenas o colapso de uma visão do mundo que uma parte do núcleo dirigente quis ver também reflectida no espelho do Partido. Uma visão que se destaca, precisamente, por querer tudo e o seu contrário, mas sempre com a mesma gritada e permanentemente afrontada falta de convicção. Espelho, espelho meu…João SantosPost scriptum: Aqui fica um pedido de desculpas ao Carlos Leone por, sem querer, o ter induzido em erro no meu último post.Foto: ilhas.blogspot.com


(Para Henrique Neto)Sobretudo hoje, que a simples suspeita de uma vinculação alheia à linha do secretário-geral, seja ele quem for, tende a gerar invisibilidade, parece imprescindível àqueles que, no Partido Socialista, querem fazer um caminho de reflexão apartado da beata concordância com as políticas do governo, manter a serena disposição de persistir num fio condutor para a acção política essencialmente divergente do oficial - e dizê-lo.Dou um exemplo.É sabido como uma parte da ideia actualmente dominante no PS vê com admirativa complacência o trabalho de demolição dos sindicatos encetado nos anos de Thatcher, que também foram os do ‘capitalismo popular’, e como, sem rebuço ou nostalgia, o blairismo que o inspira se procurou desfazer do pesadíssimo ónus de um Labour hegemonizado pela ‘velha’ esquerda operária e sindical, isto tudo aproveitando a embalagem que lhe vinha da velha Dama de Ferro. O núcleo dirigente do PS assimilou, do exemplo inglês, um nome, Anthony Giddens, uma ‘noção’: terceira via, e com isso congeminou um híbrido de sociedade de mercado (em que tudo é privatizável e gerível segundo as normas ‘da iniciativa privada’, o que fica sempre por explicar na sua inteireza, mas deve ser lido como ‘mais eficaz’, ‘mais prontamente gerador de riqueza’ e, sobretudo, ‘mais imune a calões que vivem da extraordinária sinecura que é a condição de funcionário público’) e de economia planificada de direcção central, que tende a converter públicos menos protegidos dos abusos do paternalismo em clientela insciente de produtos de que se poderia dizer que ou são inócuos como um placebo ou modificam, através de um controlo oligopolista dos stocks e dos preços, o efectivo jogo das preferências que se haveriam de estruturar livremente no mercado (de acordo com o dogma). (O segundo termo da equação é a contribuição original dos portugueses para a terceira via primitiva, talvez explicável por uma sumária espreitadela às histórias pretéritas de ambas as democracias, se descontarmos a bizarra leitura de António Brotas na local do Acção Socialista reproduzida em post anterior.) Em tudo isto foi-se afirmando uma governação que evitava tocar, para melhorar, naquilo que, na acção do Estado, é estratégico. Não era, longe disso, da regulação do mercado financeiro que se ocupava o governo. Nem de uma intervenção decidida na economia, suportando escolhas racionais e ordenadas ao mandamento prudencial de fazer os investidores e accionistas partilhar, mais do que o risco de perda, a responsabilidade social que acompanha a actividade empresarial. Nem do alargamento das condições de participação responsável na ‘coisa pública’, tarefa alegremente substituída por sobressaltos fracturantes indiscriminados, de pequena monta e, já agora, manifestamente oportunistas – tentando, por exemplo, pescar os votos gay e cosmopolita nas águas da ‘direita chique’, do tal BE execrado –, que obscurecem a percepção dos riscos de efectiva redução dos espaços de liberdade: a História manda reconhecer que não há contradição entre casamento gay e uma imprensa indolente e servil ou uma justiça inquietantemente volúvel e palavrosa, p.ex.. Como frequentemente acontece quando não há um rumo, apenas monopólio, tratou-se essencialmente de manipular, a partir do centro político, a esfera dos recursos simbólicos. Entre o ataque aos trabalhadores ao serviço do Estado, a redução do âmbito simbólico e material da soberania e a extraordinária aproximação aos mercados do entertainment e das comunicações, hoje completamente fundidos, a orientação geral da governação não parece ter sido, ao contrário do que se pretende, contenção da despesa e reestruturação dos serviços públicos, impulso à produção, prioridade ao emprego, mas antes coordenação funcional passiva, subordinada, do fátuo campo do poder com as ‘forças do mercado’, pilotada, tal coordenação, pelos sectores da esfera empresarial ex- e para-estatal com sede ideológica para as bandas do Convento do Beato e do Compromisso Portugal. E uma, se não intencional, pelo menos muito a-propósito, desorganização e paralisia de serviços nucleares do Estado, para efeitos de demonstração. Ora, é disto que importa falar dentro do PS. É das opções de política em presença que há muito é imprescindível falar, para lá da já velha ‘nova retórica’ das ‘políticas públicas’. De outro modo, resta-nos a superstição e o sextante, à maneira das exuberantes metáforas do ministro das Finanças, que nunca poderemos esquecer se quisermos compreender a que abismos conduz a auto-estima. Não sabemos o que é mais extraordinário: se dizer que «fazer política em condições de normalidade é quase como navegar com GPS», se acrescentar que a coisa está tão má que «temos de nos guiar pelas estrelas». Ambas as declarações proferidas numa universidade meridional, que se presume ‘escola de quadros’. Tudo isto passa, de uma maneira ou de outra, pela Carta Aberta que Henrique Neto dirigiu, no passado sábado, a Augusto Santos Silva e a Manuel Alegre (Público, 7.2.09). E é de um balanço indispensável da governação socialista que fala, com rara oportunidade, mesmo que se não concorde inteiramente com o diagnóstico e o prognóstico, Joaquim Jorge Veiguinha, quando antecipa o tom e o som do próximo congresso do Partido Socialista (Público, 31.1.09). Aqueles que, dentro do PS, não concordam com as palavras afrontosas e insuportavelmente intolerantes proferidas por Augusto Santos Silva no Largo do Rato não são menos amigos do PS e dos seus heróis – que serão todos quantos, na sua breve história, desenharam uma possibilidade para a esquerda, vinculada ao ideário complexo do socialismo e da social-democracia. E certamente não estarão disponíveis para abdicar da liberdade de crítica, da liberdade de acção e, acima de tudo, de reclamar uma indispensável independência do Partido relativamente ao Estado e ao governo. A subordinação integral do Partido Socialista ao governo está a gerar uma relação alucinada dos militantes e apoiantes com o real: todos os dias lhes chegam notícias de que o mundo tem de ser como lhes contam a partir dos gabinetes de imprensa. Não como a sua mente, certamente enganada, e por isso culpada, o compreende, experimenta e, tantas vezes, sofre. Os dias que aí vêm serão muito exigentes, não duvidemos. E os sacerdotes do templo da ortodoxia não conseguirão ocultar por muito tempo a sua incapacidade para reconhecer a natureza dos desafios que se colocam à esquerda, lá das profundas do seu colectivo exercício de egotismo e self-deception. E isso não será, ao contrário do que os mesmos se esforçam por fazer crer, a derrota do PS. Será apenas o colapso de uma visão do mundo que uma parte do núcleo dirigente quis ver também reflectida no espelho do Partido. Uma visão que se destaca, precisamente, por querer tudo e o seu contrário, mas sempre com a mesma gritada e permanentemente afrontada falta de convicção. Espelho, espelho meu…João SantosPost scriptum: Aqui fica um pedido de desculpas ao Carlos Leone por, sem querer, o ter induzido em erro no meu último post.Foto: ilhas.blogspot.com

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