Calhar na Casa da Sorte

28-10-2008
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Lisboa

FAVORES O Património Disperso da Câmara é uma espécie de porquinho-mealheiro de casas para distribuir. Sem regras

Calhar na Casa da Sorte

Habitação cedida sem regras ou controlo

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O director do Departamento de Apoio aos Órgãos Municipais, que integra a presidência da Câmara de Lisboa, recebeu há 19 anos uma casa cedida pelo então autarca Krus Abecassis. Há sete anos que não vive lá. Esteve mais de um ano sem pagar os 95 euros mensais de renda pelo apartamento T1 em Telheiras e, por isso, o executivo camarário chamou-lhe a atenção. Em carta ao então presidente da Câmara, Santana Lopes, pediu desculpas pessoais, confessou “a dívida” e o “constrangimento” pela situação e colocou o lugar à disposição.

A demissão foi aceite. Mas a casa não foi devolvida. Hoje, José Bastos é de novo director daquele departamento e na casa da Câmara mora agora o seu filho. O director tem razões para achar que não está a abusar, tanto mais que, no andar de cima, também mora o filho de uma outra dirigente da Câmara. Isabel Soares, actual membro da equipa do número dois da autarquia lisboeta, Marcos Perestrello, recebeu uma casa de ‘renda técnica’ há 18 anos. Há cerca de quatro anos pediu a opção de compra do apartamento por 10 mil euros. A então vereadora da Habitação, Helena Lopes da Costa, analisou o processo, classificou-o de “escandaloso” e recusou. Ao DN, Isabel Soares assume que o filho “está lá à luz do que é permitido”.

A estes casos ‘normais’ juntaram-se esta semana notícias de vários funcionários, jornalistas e autarcas que receberam - sem explicação - casas camarárias. O ‘Lisboagate’ está a ser investigado por suspeita de favorecimentos ilícitos e chegou mesmo à actual vereadora da Habitação, Ana Sara Brito, que apesar de ser enfermeira de profissão, viveu 20 anos numa casa da CML, no centro de Lisboa, com uma renda de menos de 150 euros.

A vereadora recusa “qualquer comentário” ao assunto divulgado pelo DN mas garante que informou António Costa e Paula Teixeira da Cruz sobre a sua situação, antes mesmo de tomar posse. “Sabia que, mais dia menos dia, isto poderia aparecer”, disse ao Expresso, assumindo que existe uma tradição antiga na atribuição do património camarário. “Nos tempos de Krus Abecassis, foi criada uma bolsa de habitações para dirigentes, jornalistas e funcionários. As casas vinham para a CML como mais-valias dos empreiteiros e depois eram distribuídas”.

Cunhas com barbas

Pedro Feist é vereador na Câmara de Lisboa desde o 25 de Abril e acompanha o bodo das casas como quem vê o ‘canal memória’. Diz que o poder discricionário do vereador da habitação é ‘‘uma realidade histórica’’ na autarquia que remonta aos tempos de Aquilino Ribeiro Machado, o primeiro presidente em democracia. ‘‘Eu próprio tinha um motorista que morava na Curraleira e meti uma cunha ao meu colega da habitação, o que me parece perfeitamente humano’’, relatou ao Expresso.

“Depois veio o Abecassis e aí era uma desgraça’’, recorda, ‘‘ele levava uma hora da porta da Câmara até chegar ao gabinete para ouvir os pedidos das pessoas que se plantavam a pedir casas e só não dava se não podia’’. Por isso, Feist não percebe ‘‘esta sanha contra Lopes da Costa e Santana, quando eles não fizeram nada mais do que o que sempre foi feito’’.

Ele próprio - que entrou para a Câmara com Ribeiro Machado, foi reeleito com Abecassis, depois com João Soares e por último com Carmona Rodrigues -, confessa que recebeu ‘‘dezenas de cunhas e pedidos, alguns da drª Maria Barroso e da drª Manuela Eanes, sensíveis a casos dramáticos que a Câmara sempre tentou resolver’’. Helena Lopes da Costa, a antiga vereadora da PSD, espanta-se com o facto de ter sido constituída arguida pela atribuição de casas a motoristas do presidente da autarquia, à secretária de Amália Rodrigues ou por ter respondido a um pedido feito pela mulher de Durão Barroso. Margarida Sousa Uva foi mesmo ouvida pela PJ e,Lopes da Costa assume que recebeu vários pedidos da Presidência da República, Procuradoria ou Misericórdia. “Não sofri pressões. Foram todos casos de reencaminhamento de situações de emergência social”, afirma.

João Soares, o ex-autarca socialista, também desvaloriza o caso. ‘‘Tanto quanto sei, as pessoas em causa (Santana e Lopes da Costa) vão ser ouvidos apenas como testemunhas e, sinceramente, não creio que o caso vá além disso’’.

Um esquema sem rasto

Em causa neste processo de distribuição de casas está um pacote de 3246 fogos, classificados como Património Disperso da Câmara de que fazem parte apartamentos, palácios, lojas e armazéns espalhados por toda a cidade. Inclui ainda apartamentos recentes, recebidos pela autarquia como contrapartida das cooperativas de habitação às quais a Câmara cede terrenos para construção. Em troca, a autarquia recebe entre 10 a 30% dos fogos construídos e procede à distribuição. Como? Ninguém explica.

E, aqui começam os problemas. Não há, nem nunca houve, regulamento para a concessão destas casas - ao contrário das casas de habitação social ou pertencentes à EPUL. Qualquer pessoa pode oferecer-se para arrendar as casas e existem formulários internos na CML para preenchimento de propostas de funcionários. O critério para a escolha dos inquilinos e a fixação das chamadas ‘rendas técnicas’ fica entregue ao poder discricionário do vereador da habitação, mediante o parecer técnico dos serviços. O controlo destas situações - nomeadamente sobre o pagamento das rendas ou a eventual mudança de inquilinos ou da sua condição socioeconómica - é escasso. Nada está informatizado.

Manuel Damásio, professor da Universidade Lusófona, confirmou ao EXPRESSO ter concluído um levantamento exaustivo sobre o património disperso da CML e um programa de Gestão Integrada de Informação para consulta dos processos em tempo real. Na altura, “a Câmara não sabia do que era dona. Nem sabe agora”, afirma. O estudo está concluído mas, por falta de pagamento, não foi entregue à autarquia.

Segundo dados fornecidos pela CML, 40% destes fogos camarários estão desabitados. A média do valor das rendas é de 35,48 euros.

Lisboa

FAVORES O Património Disperso da Câmara é uma espécie de porquinho-mealheiro de casas para distribuir. Sem regras

Calhar na Casa da Sorte

Habitação cedida sem regras ou controlo

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O director do Departamento de Apoio aos Órgãos Municipais, que integra a presidência da Câmara de Lisboa, recebeu há 19 anos uma casa cedida pelo então autarca Krus Abecassis. Há sete anos que não vive lá. Esteve mais de um ano sem pagar os 95 euros mensais de renda pelo apartamento T1 em Telheiras e, por isso, o executivo camarário chamou-lhe a atenção. Em carta ao então presidente da Câmara, Santana Lopes, pediu desculpas pessoais, confessou “a dívida” e o “constrangimento” pela situação e colocou o lugar à disposição.

A demissão foi aceite. Mas a casa não foi devolvida. Hoje, José Bastos é de novo director daquele departamento e na casa da Câmara mora agora o seu filho. O director tem razões para achar que não está a abusar, tanto mais que, no andar de cima, também mora o filho de uma outra dirigente da Câmara. Isabel Soares, actual membro da equipa do número dois da autarquia lisboeta, Marcos Perestrello, recebeu uma casa de ‘renda técnica’ há 18 anos. Há cerca de quatro anos pediu a opção de compra do apartamento por 10 mil euros. A então vereadora da Habitação, Helena Lopes da Costa, analisou o processo, classificou-o de “escandaloso” e recusou. Ao DN, Isabel Soares assume que o filho “está lá à luz do que é permitido”.

A estes casos ‘normais’ juntaram-se esta semana notícias de vários funcionários, jornalistas e autarcas que receberam - sem explicação - casas camarárias. O ‘Lisboagate’ está a ser investigado por suspeita de favorecimentos ilícitos e chegou mesmo à actual vereadora da Habitação, Ana Sara Brito, que apesar de ser enfermeira de profissão, viveu 20 anos numa casa da CML, no centro de Lisboa, com uma renda de menos de 150 euros.

A vereadora recusa “qualquer comentário” ao assunto divulgado pelo DN mas garante que informou António Costa e Paula Teixeira da Cruz sobre a sua situação, antes mesmo de tomar posse. “Sabia que, mais dia menos dia, isto poderia aparecer”, disse ao Expresso, assumindo que existe uma tradição antiga na atribuição do património camarário. “Nos tempos de Krus Abecassis, foi criada uma bolsa de habitações para dirigentes, jornalistas e funcionários. As casas vinham para a CML como mais-valias dos empreiteiros e depois eram distribuídas”.

Cunhas com barbas

Pedro Feist é vereador na Câmara de Lisboa desde o 25 de Abril e acompanha o bodo das casas como quem vê o ‘canal memória’. Diz que o poder discricionário do vereador da habitação é ‘‘uma realidade histórica’’ na autarquia que remonta aos tempos de Aquilino Ribeiro Machado, o primeiro presidente em democracia. ‘‘Eu próprio tinha um motorista que morava na Curraleira e meti uma cunha ao meu colega da habitação, o que me parece perfeitamente humano’’, relatou ao Expresso.

“Depois veio o Abecassis e aí era uma desgraça’’, recorda, ‘‘ele levava uma hora da porta da Câmara até chegar ao gabinete para ouvir os pedidos das pessoas que se plantavam a pedir casas e só não dava se não podia’’. Por isso, Feist não percebe ‘‘esta sanha contra Lopes da Costa e Santana, quando eles não fizeram nada mais do que o que sempre foi feito’’.

Ele próprio - que entrou para a Câmara com Ribeiro Machado, foi reeleito com Abecassis, depois com João Soares e por último com Carmona Rodrigues -, confessa que recebeu ‘‘dezenas de cunhas e pedidos, alguns da drª Maria Barroso e da drª Manuela Eanes, sensíveis a casos dramáticos que a Câmara sempre tentou resolver’’. Helena Lopes da Costa, a antiga vereadora da PSD, espanta-se com o facto de ter sido constituída arguida pela atribuição de casas a motoristas do presidente da autarquia, à secretária de Amália Rodrigues ou por ter respondido a um pedido feito pela mulher de Durão Barroso. Margarida Sousa Uva foi mesmo ouvida pela PJ e,Lopes da Costa assume que recebeu vários pedidos da Presidência da República, Procuradoria ou Misericórdia. “Não sofri pressões. Foram todos casos de reencaminhamento de situações de emergência social”, afirma.

João Soares, o ex-autarca socialista, também desvaloriza o caso. ‘‘Tanto quanto sei, as pessoas em causa (Santana e Lopes da Costa) vão ser ouvidos apenas como testemunhas e, sinceramente, não creio que o caso vá além disso’’.

Um esquema sem rasto

Em causa neste processo de distribuição de casas está um pacote de 3246 fogos, classificados como Património Disperso da Câmara de que fazem parte apartamentos, palácios, lojas e armazéns espalhados por toda a cidade. Inclui ainda apartamentos recentes, recebidos pela autarquia como contrapartida das cooperativas de habitação às quais a Câmara cede terrenos para construção. Em troca, a autarquia recebe entre 10 a 30% dos fogos construídos e procede à distribuição. Como? Ninguém explica.

E, aqui começam os problemas. Não há, nem nunca houve, regulamento para a concessão destas casas - ao contrário das casas de habitação social ou pertencentes à EPUL. Qualquer pessoa pode oferecer-se para arrendar as casas e existem formulários internos na CML para preenchimento de propostas de funcionários. O critério para a escolha dos inquilinos e a fixação das chamadas ‘rendas técnicas’ fica entregue ao poder discricionário do vereador da habitação, mediante o parecer técnico dos serviços. O controlo destas situações - nomeadamente sobre o pagamento das rendas ou a eventual mudança de inquilinos ou da sua condição socioeconómica - é escasso. Nada está informatizado.

Manuel Damásio, professor da Universidade Lusófona, confirmou ao EXPRESSO ter concluído um levantamento exaustivo sobre o património disperso da CML e um programa de Gestão Integrada de Informação para consulta dos processos em tempo real. Na altura, “a Câmara não sabia do que era dona. Nem sabe agora”, afirma. O estudo está concluído mas, por falta de pagamento, não foi entregue à autarquia.

Segundo dados fornecidos pela CML, 40% destes fogos camarários estão desabitados. A média do valor das rendas é de 35,48 euros.

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