Ligações Perigosas : O valor da peseta

19-12-2007
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O valor da peseta

Eu não conheci a Espanha de alpercatas de que me falavam, com real compaixão e dignidade incomodada, as minhas queridas, santas e infinitamente dedicadas tias espanholas, na verdade tias-avós, todas católicas, todas castelhanas, todas monárquicas, por esta ordem.

Mas há outra Espanha que eu ainda conheci. Lembro-me de Páscoas e Natais de transbordante felicidade em casa do meu avô, irmão delas e por acaso português, um senhor como já não há; lembro-me de ele me levar, pequenino, do Alentejo a Badajoz, e tomar una copa no Zurbaran.

Retive, não sei porquê, o valor da peseta: valia exactamente 50 centavos, a metade, por grosso, de cada escudo. Bem sei que a moeda não é tudo; mas também sei que, nos últimos cinquenta anos, a transformação de Espanha é um milagre humano, e por ser obra tão próxima mais envergonha o resultado de Portugal no mesmo período, essa lenta evolução de quem acompanha os ponteiros do relógio mas não mais, um caso de estagnação se usarmos o critério do tempo histórico.

É empírico mas é óbvio: ninguém imaginaria que a Espanha chegasse onde chegou. Quanto a Portugal, não é abonatório mas é verdade, crescemos o que naturalmente sempre cresceríamos. Como andei esta semana por Madrid – cada vez mais cosmopolita, enquanto Barcelona está a ficar etnocêntrica, perdão, etno-excêntrica, pobrezas de um nacionalismo tribal –, voltei à idade dos porquês.

Primeiro porquê: Franco foi melhor do que Salazar. Claro que o general do ‘alzamiento’ era mais cruel do que o professor de Coimbra. Claro que o galego não venceria a guerra civil sem o Eixo, enquanto o beirão procurou por todos os meios que o ‘mundo’ nunca passasse dos Pirenéus.

Mas é incontroverso que, quando Franco morreu, a Espanha tinha ‘classe média’, dispunha de indústria e capital, o povo era mais instruído, já não havia possessões ultramarinas (modestas) e a sucessão, em pessoa e regime, estava preparada.

Salazar temia o parentesco entre prosperidade e liberdade; desconfiava do dinheiro; não queria o povo letrado; governou um Império que nunca conheceu; e morreu convicto de que ainda era Presidente do Conselho, o que diz tudo sobre a reverência do poder.

Na década de cinquenta, a Espanha largou a autarcia e disparou. Precisamente em 1958, o salazarismo fechava-se de vez.

Segundo porquê: Juan Carlos não tem comparação com Vasco Gonçalves. É sempre melhor uma transição do que uma revolução. Os espanhóis bem o sabiam com a memória da guerra civil e dos seus mortos, das duas Espanhas e das suas fracturas.

Com memorável inteligência histórica, dois ‘jovens’ da época, o Bourbon e Adolfo Suárez, levaram as Cortes franquistas a votar uma reforma política, obtiveram a lealdade do Exército que não era tropa fandanga e não descansaram até ver a Constituição ratificada pela direita de Fraga e pela esquerda de Carrilho.

Numa palavra, 99% dos espanhóis couberam no novo regime que, evidentemente, era uma economia de mercado. Nesta mesma década de setenta, Portugal traçava o seu abismo de ignorâncias revolucionárias, estupidezes económicas e desordens sociais, com a penosa tortura de fazer da Constituição estalactite doutrinária. Os espanhóis construíram, os portugueses desfizeram. Nem eles sonham o que pouparam.

Terceiro porquê: Felipe González foi melhor do que Mário Soares (e Guterres). No sentido profissional da palavra, González e Soares foram políticos salientes. Nenhum tinha um partido verdadeiramente organizado ou fazia a mais remota ideia do que era governar. Ambos sofreram – e venceram – a concorrência dos comunistas, enfrentaram inimigos difíceis, como a ETA ou o Conselho da Revolução, e ancoraram a Península na Europa. E por aqui se ficam as coincidências: o felipismo dos anos oitenta é o tempo da reconversão industrial, da revolução administrativa e da projecção cultural de Espanha – e isto é um legado de governo.

Mário Soares e António Guterres nunca foram bons primeiros-ministros. É certo que o final de González, como quase todos os finais, era dispensável. Mas ainda me lembro de o ver aguentar 20% de desemprego. Por cá, nenhum homólogo aguentaria metade.

Quarto porquê: Aznar foi melhor do que Cavaco (e Durão). Tirando o final, foi mesmo um dos melhores governantes da Europa. A seu crédito vão o equilíbrio financeiro, o modelo de crescimento e a ambição internacional de Espanha. A diferença com Portugal é simples: Aznar nunca ficou a meio dos valores, a meio das decisões ou a meio das rupturas. Mas é natural – em Espanha foi a direita que ‘comeu’ o centro, em Portugal foi o centro que ‘comeu’ a direita. Deve ser do código genético – eles matam o touro na arena, nós enviamo-lo para o matadouro.

Propositadamente, digo pouco sobre Zapatero. A Espanha está liberal e liberalizada, secular e secularizada, mas não está unida. Vista de fora, é forte. Vista de dentro, é fraca. Zapatero tem qualquer coisa de experimental. Especializou-se em profanar os ‘sagrados’ deste milagre: a transição como pano de fundo, a Constituição como marco de convivência, o compromisso como método político. De repente, começaram a arrancar as estátuas de Franco, multiplicam-se as nações, nacionalidades e realidades nacionais nos estatutos autonómicos e a política comum contra a ETA está feita em cacos.

Se as minhas tias fossem vivas, teriam uma conversinha com a Virgen del Pilar. Mas o que me impressionou mais foi a quantidade de gente de esquerda que está com medo do improviso. Zapatero parece não escutar aquela Espanha do duque de Alba que, sem sorte nenhuma, pedia a Olivares prudência e mais prudência, senão perdiam Portugal – «Y, sobre todo, negociación e inteligencia, perdones y mercedes; e jamás furias derramadas».

O valor da peseta

Eu não conheci a Espanha de alpercatas de que me falavam, com real compaixão e dignidade incomodada, as minhas queridas, santas e infinitamente dedicadas tias espanholas, na verdade tias-avós, todas católicas, todas castelhanas, todas monárquicas, por esta ordem.

Mas há outra Espanha que eu ainda conheci. Lembro-me de Páscoas e Natais de transbordante felicidade em casa do meu avô, irmão delas e por acaso português, um senhor como já não há; lembro-me de ele me levar, pequenino, do Alentejo a Badajoz, e tomar una copa no Zurbaran.

Retive, não sei porquê, o valor da peseta: valia exactamente 50 centavos, a metade, por grosso, de cada escudo. Bem sei que a moeda não é tudo; mas também sei que, nos últimos cinquenta anos, a transformação de Espanha é um milagre humano, e por ser obra tão próxima mais envergonha o resultado de Portugal no mesmo período, essa lenta evolução de quem acompanha os ponteiros do relógio mas não mais, um caso de estagnação se usarmos o critério do tempo histórico.

É empírico mas é óbvio: ninguém imaginaria que a Espanha chegasse onde chegou. Quanto a Portugal, não é abonatório mas é verdade, crescemos o que naturalmente sempre cresceríamos. Como andei esta semana por Madrid – cada vez mais cosmopolita, enquanto Barcelona está a ficar etnocêntrica, perdão, etno-excêntrica, pobrezas de um nacionalismo tribal –, voltei à idade dos porquês.

Primeiro porquê: Franco foi melhor do que Salazar. Claro que o general do ‘alzamiento’ era mais cruel do que o professor de Coimbra. Claro que o galego não venceria a guerra civil sem o Eixo, enquanto o beirão procurou por todos os meios que o ‘mundo’ nunca passasse dos Pirenéus.

Mas é incontroverso que, quando Franco morreu, a Espanha tinha ‘classe média’, dispunha de indústria e capital, o povo era mais instruído, já não havia possessões ultramarinas (modestas) e a sucessão, em pessoa e regime, estava preparada.

Salazar temia o parentesco entre prosperidade e liberdade; desconfiava do dinheiro; não queria o povo letrado; governou um Império que nunca conheceu; e morreu convicto de que ainda era Presidente do Conselho, o que diz tudo sobre a reverência do poder.

Na década de cinquenta, a Espanha largou a autarcia e disparou. Precisamente em 1958, o salazarismo fechava-se de vez.

Segundo porquê: Juan Carlos não tem comparação com Vasco Gonçalves. É sempre melhor uma transição do que uma revolução. Os espanhóis bem o sabiam com a memória da guerra civil e dos seus mortos, das duas Espanhas e das suas fracturas.

Com memorável inteligência histórica, dois ‘jovens’ da época, o Bourbon e Adolfo Suárez, levaram as Cortes franquistas a votar uma reforma política, obtiveram a lealdade do Exército que não era tropa fandanga e não descansaram até ver a Constituição ratificada pela direita de Fraga e pela esquerda de Carrilho.

Numa palavra, 99% dos espanhóis couberam no novo regime que, evidentemente, era uma economia de mercado. Nesta mesma década de setenta, Portugal traçava o seu abismo de ignorâncias revolucionárias, estupidezes económicas e desordens sociais, com a penosa tortura de fazer da Constituição estalactite doutrinária. Os espanhóis construíram, os portugueses desfizeram. Nem eles sonham o que pouparam.

Terceiro porquê: Felipe González foi melhor do que Mário Soares (e Guterres). No sentido profissional da palavra, González e Soares foram políticos salientes. Nenhum tinha um partido verdadeiramente organizado ou fazia a mais remota ideia do que era governar. Ambos sofreram – e venceram – a concorrência dos comunistas, enfrentaram inimigos difíceis, como a ETA ou o Conselho da Revolução, e ancoraram a Península na Europa. E por aqui se ficam as coincidências: o felipismo dos anos oitenta é o tempo da reconversão industrial, da revolução administrativa e da projecção cultural de Espanha – e isto é um legado de governo.

Mário Soares e António Guterres nunca foram bons primeiros-ministros. É certo que o final de González, como quase todos os finais, era dispensável. Mas ainda me lembro de o ver aguentar 20% de desemprego. Por cá, nenhum homólogo aguentaria metade.

Quarto porquê: Aznar foi melhor do que Cavaco (e Durão). Tirando o final, foi mesmo um dos melhores governantes da Europa. A seu crédito vão o equilíbrio financeiro, o modelo de crescimento e a ambição internacional de Espanha. A diferença com Portugal é simples: Aznar nunca ficou a meio dos valores, a meio das decisões ou a meio das rupturas. Mas é natural – em Espanha foi a direita que ‘comeu’ o centro, em Portugal foi o centro que ‘comeu’ a direita. Deve ser do código genético – eles matam o touro na arena, nós enviamo-lo para o matadouro.

Propositadamente, digo pouco sobre Zapatero. A Espanha está liberal e liberalizada, secular e secularizada, mas não está unida. Vista de fora, é forte. Vista de dentro, é fraca. Zapatero tem qualquer coisa de experimental. Especializou-se em profanar os ‘sagrados’ deste milagre: a transição como pano de fundo, a Constituição como marco de convivência, o compromisso como método político. De repente, começaram a arrancar as estátuas de Franco, multiplicam-se as nações, nacionalidades e realidades nacionais nos estatutos autonómicos e a política comum contra a ETA está feita em cacos.

Se as minhas tias fossem vivas, teriam uma conversinha com a Virgen del Pilar. Mas o que me impressionou mais foi a quantidade de gente de esquerda que está com medo do improviso. Zapatero parece não escutar aquela Espanha do duque de Alba que, sem sorte nenhuma, pedia a Olivares prudência e mais prudência, senão perdiam Portugal – «Y, sobre todo, negociación e inteligencia, perdones y mercedes; e jamás furias derramadas».

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