Sociedade de Debates: Spam Lusitano

02-10-2009
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Disse Clara Ferreira Alves na sua habitual crónica no Expresso do último Sábado, o que, com alguns cortes, passo a transcrever:"Uma boa parte do que se publica em jornais é Spam. Spam é lixo electrónico, a quantidade inesgotável de mails e mensagens sobre coisa nenhuma, avisos e alertas desnecessários, indignações de rodapé e comentários de nada. O spam atravessa as nossas vidas cibernéticas e estima-se que o tempo que perdemos a fazer “delete” mais o tempo que perdemos a lê-lo, mais o dinheiro gasto pelas companhias que inventam filtros de spam a inventar e a instalar esses filtros, é calculável em muitos milhares de milhões de dólares. Acções potencialmente inúteis porque os fabricantes de Spam e os anunciantes de Spam conseguem iludir todas as vigilâncias e dotar o lixo deles de poderosas propriedades de infiltração das nossas consciências.O que quer dizer que o avanço tecnológico trouxe o seu reverso, a estupidificação progressiva das massas e a atrofia do cérebro, cada vez mais cheio de Spam e de trivialidades e menos ocupado com raciocínios e pensamentos que suscitem inteligência e concentração.Na revista americana "Atlantic", o ensaísta Nicholas Carr publicou um texto com o título "Is Google Making us Stoopid?", e o subtítulo "What the Internet Is Doing to Our Brains". Carr é autor de um livro sobre o tema da revolução tecnológica na informação: The Big Switch: Rewiring the World, from Edison to Google, e o que ele diz é, essencialmente, uma constatação: qualquer pessoa que esteja habituada a ler livros, e livros grandes e difíceis, com muitas páginas e muito raciocínio, livros que só dão alguma coisa se o leitor der algo em troca, apercebe-se de que se torna cada vez mais árdua a concentração nesses livros e que a tendência para a dispersão e a diminuição da atenção se tornou uma segunda natureza no leitor.Vivemos em "overdose" de informação desnecessária e invasiva como um tumor maligno. Escapar a esta "overdose" é impossível, tanto na imagem como na palavra escrita, a não ser que desliguemos todas as tomadas eléctricas. Essa informação multiplicada, e muitas vezes burocraticamente multiplicada, tende a inverter ou destruir as hierarquias e a subverter o essencial ao acessório. Existem novas leis: a imagem sobrepõe-se à palavra, a palavra tem de estar dividida e segmentada em parágrafos e pedaços, com destaques, de modo a prender a atenção. Na luta infernal pela atenção dispersa do ouvinte, leitor, espectador, tudo tem de ser hiperexplicado ou, em alternativa, sensacional e eufórico, sensacional e disfórico. Uma vez convenientemente digerida nos intervalos de outras infirmações que competem entre si, a informação não chega a ser hierarquizada nas nossas mentes e tudo é igual a tudo, na grande teoria da indiferenciação cultural que gera a nossa indiferença.Só o aberrante, o pai austríaco que manteve a filha prisioneira durante 24 anos, ou o grandioso, a Espanha ter ganho o Euro 2008, ou o catastrófico inovador, o tsunami da Ásia que matou 250 mil pessoas, ou o criminoso policial, o desaparecimento de Madeleine McCann, provoca a nossa atenção não dividida. Tudo o resto cai em saco roto, e não nos espanta ver em rodapé de um noticiário pimba de televisão a notícia "180 mortos no Iraque em atentado terrorista", porque a notícia que devia ser importante tornou-se secundária. O terramoto na China foi completamente engolido nas nossas televisões pelo futebol e os desígnios insondáveis de Scolari. Assim sendo, o noticiário internacional tornou-se esparso e irrelevante e o noticiário nacional tornou-se tablóide e grotesco. No reino da estupidez, vale tudo. Portugal está inundado de Spam na informação e certas notícias historicamente relevantes nem chagam a ter cobertura jornalística. Em vez de informar, deforma-se. O major Valentim é mais importante do que as tropas portuguesas no Afeganistão.A estupidez contamina a audiência e forja o preconceito violento e iletrado que enche as caixas de comentários e certa blogosfera azeda. Carr não fala de jornalismo, descreve dificuldades pessoais para ler um livro e inscreve a história e efeitos da inteligência artificial, explicando como estamos a ser privados de "um reportório de densa herança cultural" (a cultura ocidental) e a ser transformados em "pessoas-panquecas", segundo a teoria de Richard Foreman. Pessoas-panquecas, fininhas e achatadas enquanto se ligam à rede de informação pela mero toque de um botão. Pessoas panquecas que deixarão de ler romances russos, livros de Kant e Hegel, Aristóteles e Platão. Pessoas-panquecas que deixarão de ler, simplesmente. E que terão opinião sobre tudo."Esta crónica fez-me reflectir, deixou-me apreensiva. Não estará Clara Ferreira Alves, com tais palavras proféticas, a pintar o quadro um pouco negro demais? Ou será que, como a maior parte das vezes, está certa, e o jornalismo português caiu num poço sem fundo? E o filtro de spam do "português médio", estará estragado, desactualizado, ou simplesmente farto de ter que filtrar? Será que a sua pluma, além de caprichosa, é hiperbolicamente alarmista, ou será que esta "overdose de informação" está mesmo a tornar-nos "pessoas-panquecas"?


Disse Clara Ferreira Alves na sua habitual crónica no Expresso do último Sábado, o que, com alguns cortes, passo a transcrever:"Uma boa parte do que se publica em jornais é Spam. Spam é lixo electrónico, a quantidade inesgotável de mails e mensagens sobre coisa nenhuma, avisos e alertas desnecessários, indignações de rodapé e comentários de nada. O spam atravessa as nossas vidas cibernéticas e estima-se que o tempo que perdemos a fazer “delete” mais o tempo que perdemos a lê-lo, mais o dinheiro gasto pelas companhias que inventam filtros de spam a inventar e a instalar esses filtros, é calculável em muitos milhares de milhões de dólares. Acções potencialmente inúteis porque os fabricantes de Spam e os anunciantes de Spam conseguem iludir todas as vigilâncias e dotar o lixo deles de poderosas propriedades de infiltração das nossas consciências.O que quer dizer que o avanço tecnológico trouxe o seu reverso, a estupidificação progressiva das massas e a atrofia do cérebro, cada vez mais cheio de Spam e de trivialidades e menos ocupado com raciocínios e pensamentos que suscitem inteligência e concentração.Na revista americana "Atlantic", o ensaísta Nicholas Carr publicou um texto com o título "Is Google Making us Stoopid?", e o subtítulo "What the Internet Is Doing to Our Brains". Carr é autor de um livro sobre o tema da revolução tecnológica na informação: The Big Switch: Rewiring the World, from Edison to Google, e o que ele diz é, essencialmente, uma constatação: qualquer pessoa que esteja habituada a ler livros, e livros grandes e difíceis, com muitas páginas e muito raciocínio, livros que só dão alguma coisa se o leitor der algo em troca, apercebe-se de que se torna cada vez mais árdua a concentração nesses livros e que a tendência para a dispersão e a diminuição da atenção se tornou uma segunda natureza no leitor.Vivemos em "overdose" de informação desnecessária e invasiva como um tumor maligno. Escapar a esta "overdose" é impossível, tanto na imagem como na palavra escrita, a não ser que desliguemos todas as tomadas eléctricas. Essa informação multiplicada, e muitas vezes burocraticamente multiplicada, tende a inverter ou destruir as hierarquias e a subverter o essencial ao acessório. Existem novas leis: a imagem sobrepõe-se à palavra, a palavra tem de estar dividida e segmentada em parágrafos e pedaços, com destaques, de modo a prender a atenção. Na luta infernal pela atenção dispersa do ouvinte, leitor, espectador, tudo tem de ser hiperexplicado ou, em alternativa, sensacional e eufórico, sensacional e disfórico. Uma vez convenientemente digerida nos intervalos de outras infirmações que competem entre si, a informação não chega a ser hierarquizada nas nossas mentes e tudo é igual a tudo, na grande teoria da indiferenciação cultural que gera a nossa indiferença.Só o aberrante, o pai austríaco que manteve a filha prisioneira durante 24 anos, ou o grandioso, a Espanha ter ganho o Euro 2008, ou o catastrófico inovador, o tsunami da Ásia que matou 250 mil pessoas, ou o criminoso policial, o desaparecimento de Madeleine McCann, provoca a nossa atenção não dividida. Tudo o resto cai em saco roto, e não nos espanta ver em rodapé de um noticiário pimba de televisão a notícia "180 mortos no Iraque em atentado terrorista", porque a notícia que devia ser importante tornou-se secundária. O terramoto na China foi completamente engolido nas nossas televisões pelo futebol e os desígnios insondáveis de Scolari. Assim sendo, o noticiário internacional tornou-se esparso e irrelevante e o noticiário nacional tornou-se tablóide e grotesco. No reino da estupidez, vale tudo. Portugal está inundado de Spam na informação e certas notícias historicamente relevantes nem chagam a ter cobertura jornalística. Em vez de informar, deforma-se. O major Valentim é mais importante do que as tropas portuguesas no Afeganistão.A estupidez contamina a audiência e forja o preconceito violento e iletrado que enche as caixas de comentários e certa blogosfera azeda. Carr não fala de jornalismo, descreve dificuldades pessoais para ler um livro e inscreve a história e efeitos da inteligência artificial, explicando como estamos a ser privados de "um reportório de densa herança cultural" (a cultura ocidental) e a ser transformados em "pessoas-panquecas", segundo a teoria de Richard Foreman. Pessoas-panquecas, fininhas e achatadas enquanto se ligam à rede de informação pela mero toque de um botão. Pessoas panquecas que deixarão de ler romances russos, livros de Kant e Hegel, Aristóteles e Platão. Pessoas-panquecas que deixarão de ler, simplesmente. E que terão opinião sobre tudo."Esta crónica fez-me reflectir, deixou-me apreensiva. Não estará Clara Ferreira Alves, com tais palavras proféticas, a pintar o quadro um pouco negro demais? Ou será que, como a maior parte das vezes, está certa, e o jornalismo português caiu num poço sem fundo? E o filtro de spam do "português médio", estará estragado, desactualizado, ou simplesmente farto de ter que filtrar? Será que a sua pluma, além de caprichosa, é hiperbolicamente alarmista, ou será que esta "overdose de informação" está mesmo a tornar-nos "pessoas-panquecas"?

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