O BAR DO OSSIAN: COINCIDÊNCIAS VOLUNTÁRIAS, Transparências e Opacidades

02-10-2009
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Vivemos numa época das mais opacas que a humanidade conheceu. E justamente no quadro civilizacional que aspira à globalidade, apregoando valores éticos de fundo e direitos de grande efeito sobre a organização social. O século XX acabou ontem, após descobertas técnicas e tecnológicas assombrosas, capazes da maior bondade na saúde e nas estruturas produtivas, por exemplo, mas afrontosamente empregues em operações de destruição, duas grandes guerras, dezenas de conflitos imperdoáveis, correntes de tráfico de armas ou drogas, a par de sistemas de gestão das economias permeáveis a um capitalismo fundamentalista, selvagem, assimétrico, incapaz de verdadeiras regulações compagináveis com métodos preventivos eficazes.As artes, que em geral caminham na vanguarda de muitas transformações, anunciando mudanças de rumo e novos conceitos sobre a actividade criativa do espírito, estimularam toda a cultura do fim do milénio a vários desprendimentos, dadaismos contamináveis a novas tendências, rupturas de difícil retorno, desconstrução das geometrias ordenadoras em ordem à negação dos processos representativos, por despojamentos sucessivos de que só restam a cor (estruturante da pintura), o volume (referido à escultura) e o ponto e a linha brandamente reformulados, na teoria e na prática de Paul Klee. Mestres da modernidade referenciaram este artista, e com boas razões de experiência ou de investigação, preferindo aquelas aguadas muito bem enquadradas, cadenciando cores e valores, afinal mais exercícios de aprendizagem séria do que obras primas de inexplicável prioridade. O próprio Klee advogou a ideia de que a arte não reproduzia o real, tornava-o visível. Reproduzir não o real não se alcança nem com a mais sofisticada das clonagens: apenas se pode aceder, como mimou o hiperrealismo, ao fingimento de tal fenómeno. Tornar visível, por outro lado, cabe na determinação da vontade de ver, isto é, de simplificar ou de acentuar os meios representativos, inclusive as próprias estatísticas cromáticas a fim de se atingir sofríveis meios de reconhecimento aprofundado sobre o que julgamos ser o real.O conceito de transparência, ancorado na técnica das velaturas quanto a diversas versões físicas muito apregoadas pelos inventores de efeitos plásticos, é ainda base tão pouco sedutora quanto as descolagens a partir de papel (ou mesmo tela) destapando o que os véus encobriram medianamente. Isto não significa que um número importante de autores não haja encontrado em tais truques bons apoios a obras de grande esplendor, fortes exemplos de que técnicas desusadas ou básicas podem servir o melhor dos discursos, das artes visuais à própria escrita. Modernamente, o uso de materiais não ortodoxos permitiu enveredar por esculturas onde o vidro, sedas e redes edificaram as linhas de força aptas ao tratamento simultâneo do peso e da leveza, entre linhas expressivas depois sugeridas pela arquitectura electrotécnica. A claridade, o que envolve o próprio processo, pode tornar-se mais ética (digamos em quase metáfora) do que a transparência. Há sempre aqui uma questão de intuitos, toda a comunicação expressiva, a verdade aberta so nosso compromisso com o testemunho e alguma problemática ideológica. Nesse sentido, os diversos caminhos da opacidade tanto podem envolver mudanças pouco ponderadas, escurecendo a absorção contemplativa, como explicitar múltiplas fragilidades do ver, num equilíbrio entre a força da matéria (em Tapiés, por exemplo) e a incidência quase musical dos riscos, da vibração das manchas, raiva de dizer o muito que não cabe nos limites da pintura. A libertação das modas, dos próprios modos, alargou o espaço a um desejo novo, a presenças inusitadas, e não tanto à efabulação do compacto e do indizível, sugestão de adereços pendurados em formas básicas. Mas é preciso redimensionar todas as novidades. É preciso conferir permanência quer à decisão laminar quer ao precipício da simplificação redutora. O minimalismo, retirado ou não da pedagogia de Paul Klee, ganhou favores de autenticidade com uma simples linha pendurada do tecto, eventualmente esticada por meio de certo peso, pêndulo, esfera metálica, a vulgar pedra que se subtrai à paisagem. A essa autenticidade da mínima presença alguns artistas atribuem um valor de transparência. Trata-se, no fundo, de uma rudimentar metáfora, um passo conceptual capaz de visar, por outras palavras, o peso na leveza.O factor gravidade pode, por outro lado, sustentar uma tese de «composição clara» ou apenas a demonstração em evidência do próprio factor. Mas, a partir disso, o que nos resta para pensarmos o sonho?Quem melhor abordou, entre nós, o conceito de transparência foi certamente Ana Vieira, porque ela não procurou disfarçar o visível mas dar-lhe distância, leitura poética, tudo na ética dos meios e do seu uso: a sua assumida mentira acabava numa tradução capaz de conduzir à verdade. A autora, com instalações em forma de casas, permitia o exercício da visão através das paredes, outras paredes interiores e até mobiliário, quadros, jarras com flores, um quotidiano presente, sustentando a ideia de personagem mas sem a nomear. Trabalhando nesta linha em caixas de pequeno formato, Ana Vieira soube explorar uma certa dimensão relacionada com o intimismo e o espaço metafísico, as coisas e o seu desfoque, o desfoque e a literalidade de algum objecto colado no material exterior, mesmo que translúcido, tocado por iluminações espaciais ou interiores.Seja como for, a pintura pode tratar-se com meios e materiais susceptíveis de exprimirem transparência, claridade, profundidade, opacidade. além de, conforme o processo instaurador, expressões de espaço e tempo, algo que já mobiliza importantes elaborações conceptuais, complexos exercícios pelos quais a percepção é mais manipulada, cogitada por vezes em termos de armadilha. O trompe l'oeil finge relevo, matéria, espaço – e, em certa medida, tempo. O tempo que imaginamos a viajar por corredores que não existem, horizontes que não passam de papel de parede. É preciso insistir neste ponto: nada disso é a opacidade da denegação. Trata-se antes de frutos de uma longa investigação no espectro estrutural das artes, trabalho que, sem retorno preguiçoso, denota avanço e sabedoria. Alguns jovens autores, como Rui Macedo, promovem vias de investigação de considerável profundidade. Rui Macedo estuda os fenómenos do espaço e da representação, misturando o ilusório com o concreto, o concreto revertido para a pintura e contendo a sua própria representação noutro ponto do espaço plástico. O trabalho da repetição de peças leva, em certos casos, ao reflexo de uma obra na que lhe fica em frente, presa à parede da galeria, ou a leitura de trajectos como processo empregue no completamento de formas tridimensionalizadas em plena ilusão, visível/invisível. Este tipo de trabalho não persegue a descomplexificação da arte, mas também não se deixa ancorar na inútil ornamentação do sagrado. As opacidades servem para falar do espaço e das coisas que o habitam, desfazendo-se em claridade. As transparências tornam-se desnecessárias, porque a expressão decorre do espaço que cada um de nós percorre. A excelência da própria representação problematiza o nosso confronto com o espaço, o tempo, e as miragens entre eles.A transparência opacaO pior é que o advento da transparência no campo das artes plásticas, embora remoto, foi entretanto pronunciado pela classe política, ocultando no espaço artístico a reconquista da convivialidade, a sabedoria dos modos de coexistir, processos que não passam nem pela ideologia (em sentido restrito) nem pela religião. A arte não é transparente em si mesma, valha-nos isso, e Braque bem nos avisou de que tudo o que é verdadeiramente importante numa pinura é o que menos se explica. Mas, seja como for, a arte, sugerindo luz ou claro-escuro, translucidez ou opacidade, é um soberbo edifício de mentiras cujo reagrupamento aponta para a verdade. Nisso, ela acaba por se afirmar desobstrutiva (em nome de novas construções), contra todos os dogmas e todos os totalitarismos; não por viver em estado de graça ou de inocência, entre enigmas, mas porque se constitui essencialmente com o fenómeno do imaginário em liberdade, num registo cada vez mais ecuménico. Quando se procura o triunfo a todo o custo, por eleições espúrias, pelo jogo das influências, sem qualidade nem genealogia, a transparência não passa de um eufemismo para disfarçar o pudor, um simples erro. A sofreguidão com que se elegem novos produtos (tóxicos) atingiu a arte em geral, porque os imitadores de um modo acabam transformados em comerciantes da moda, na insuportável indústria cultural. Protegidos das infecções originadas na militância estética, os novos autores, em anestesia contra a dor, ascendem directa ou indirectamente à condição de empresários. A transparência fica para os truques ensinados na Escola e a opacidade será confinada ao mercado. Enquanto isso, as ilusões entopem as sarjetas.


Vivemos numa época das mais opacas que a humanidade conheceu. E justamente no quadro civilizacional que aspira à globalidade, apregoando valores éticos de fundo e direitos de grande efeito sobre a organização social. O século XX acabou ontem, após descobertas técnicas e tecnológicas assombrosas, capazes da maior bondade na saúde e nas estruturas produtivas, por exemplo, mas afrontosamente empregues em operações de destruição, duas grandes guerras, dezenas de conflitos imperdoáveis, correntes de tráfico de armas ou drogas, a par de sistemas de gestão das economias permeáveis a um capitalismo fundamentalista, selvagem, assimétrico, incapaz de verdadeiras regulações compagináveis com métodos preventivos eficazes.As artes, que em geral caminham na vanguarda de muitas transformações, anunciando mudanças de rumo e novos conceitos sobre a actividade criativa do espírito, estimularam toda a cultura do fim do milénio a vários desprendimentos, dadaismos contamináveis a novas tendências, rupturas de difícil retorno, desconstrução das geometrias ordenadoras em ordem à negação dos processos representativos, por despojamentos sucessivos de que só restam a cor (estruturante da pintura), o volume (referido à escultura) e o ponto e a linha brandamente reformulados, na teoria e na prática de Paul Klee. Mestres da modernidade referenciaram este artista, e com boas razões de experiência ou de investigação, preferindo aquelas aguadas muito bem enquadradas, cadenciando cores e valores, afinal mais exercícios de aprendizagem séria do que obras primas de inexplicável prioridade. O próprio Klee advogou a ideia de que a arte não reproduzia o real, tornava-o visível. Reproduzir não o real não se alcança nem com a mais sofisticada das clonagens: apenas se pode aceder, como mimou o hiperrealismo, ao fingimento de tal fenómeno. Tornar visível, por outro lado, cabe na determinação da vontade de ver, isto é, de simplificar ou de acentuar os meios representativos, inclusive as próprias estatísticas cromáticas a fim de se atingir sofríveis meios de reconhecimento aprofundado sobre o que julgamos ser o real.O conceito de transparência, ancorado na técnica das velaturas quanto a diversas versões físicas muito apregoadas pelos inventores de efeitos plásticos, é ainda base tão pouco sedutora quanto as descolagens a partir de papel (ou mesmo tela) destapando o que os véus encobriram medianamente. Isto não significa que um número importante de autores não haja encontrado em tais truques bons apoios a obras de grande esplendor, fortes exemplos de que técnicas desusadas ou básicas podem servir o melhor dos discursos, das artes visuais à própria escrita. Modernamente, o uso de materiais não ortodoxos permitiu enveredar por esculturas onde o vidro, sedas e redes edificaram as linhas de força aptas ao tratamento simultâneo do peso e da leveza, entre linhas expressivas depois sugeridas pela arquitectura electrotécnica. A claridade, o que envolve o próprio processo, pode tornar-se mais ética (digamos em quase metáfora) do que a transparência. Há sempre aqui uma questão de intuitos, toda a comunicação expressiva, a verdade aberta so nosso compromisso com o testemunho e alguma problemática ideológica. Nesse sentido, os diversos caminhos da opacidade tanto podem envolver mudanças pouco ponderadas, escurecendo a absorção contemplativa, como explicitar múltiplas fragilidades do ver, num equilíbrio entre a força da matéria (em Tapiés, por exemplo) e a incidência quase musical dos riscos, da vibração das manchas, raiva de dizer o muito que não cabe nos limites da pintura. A libertação das modas, dos próprios modos, alargou o espaço a um desejo novo, a presenças inusitadas, e não tanto à efabulação do compacto e do indizível, sugestão de adereços pendurados em formas básicas. Mas é preciso redimensionar todas as novidades. É preciso conferir permanência quer à decisão laminar quer ao precipício da simplificação redutora. O minimalismo, retirado ou não da pedagogia de Paul Klee, ganhou favores de autenticidade com uma simples linha pendurada do tecto, eventualmente esticada por meio de certo peso, pêndulo, esfera metálica, a vulgar pedra que se subtrai à paisagem. A essa autenticidade da mínima presença alguns artistas atribuem um valor de transparência. Trata-se, no fundo, de uma rudimentar metáfora, um passo conceptual capaz de visar, por outras palavras, o peso na leveza.O factor gravidade pode, por outro lado, sustentar uma tese de «composição clara» ou apenas a demonstração em evidência do próprio factor. Mas, a partir disso, o que nos resta para pensarmos o sonho?Quem melhor abordou, entre nós, o conceito de transparência foi certamente Ana Vieira, porque ela não procurou disfarçar o visível mas dar-lhe distância, leitura poética, tudo na ética dos meios e do seu uso: a sua assumida mentira acabava numa tradução capaz de conduzir à verdade. A autora, com instalações em forma de casas, permitia o exercício da visão através das paredes, outras paredes interiores e até mobiliário, quadros, jarras com flores, um quotidiano presente, sustentando a ideia de personagem mas sem a nomear. Trabalhando nesta linha em caixas de pequeno formato, Ana Vieira soube explorar uma certa dimensão relacionada com o intimismo e o espaço metafísico, as coisas e o seu desfoque, o desfoque e a literalidade de algum objecto colado no material exterior, mesmo que translúcido, tocado por iluminações espaciais ou interiores.Seja como for, a pintura pode tratar-se com meios e materiais susceptíveis de exprimirem transparência, claridade, profundidade, opacidade. além de, conforme o processo instaurador, expressões de espaço e tempo, algo que já mobiliza importantes elaborações conceptuais, complexos exercícios pelos quais a percepção é mais manipulada, cogitada por vezes em termos de armadilha. O trompe l'oeil finge relevo, matéria, espaço – e, em certa medida, tempo. O tempo que imaginamos a viajar por corredores que não existem, horizontes que não passam de papel de parede. É preciso insistir neste ponto: nada disso é a opacidade da denegação. Trata-se antes de frutos de uma longa investigação no espectro estrutural das artes, trabalho que, sem retorno preguiçoso, denota avanço e sabedoria. Alguns jovens autores, como Rui Macedo, promovem vias de investigação de considerável profundidade. Rui Macedo estuda os fenómenos do espaço e da representação, misturando o ilusório com o concreto, o concreto revertido para a pintura e contendo a sua própria representação noutro ponto do espaço plástico. O trabalho da repetição de peças leva, em certos casos, ao reflexo de uma obra na que lhe fica em frente, presa à parede da galeria, ou a leitura de trajectos como processo empregue no completamento de formas tridimensionalizadas em plena ilusão, visível/invisível. Este tipo de trabalho não persegue a descomplexificação da arte, mas também não se deixa ancorar na inútil ornamentação do sagrado. As opacidades servem para falar do espaço e das coisas que o habitam, desfazendo-se em claridade. As transparências tornam-se desnecessárias, porque a expressão decorre do espaço que cada um de nós percorre. A excelência da própria representação problematiza o nosso confronto com o espaço, o tempo, e as miragens entre eles.A transparência opacaO pior é que o advento da transparência no campo das artes plásticas, embora remoto, foi entretanto pronunciado pela classe política, ocultando no espaço artístico a reconquista da convivialidade, a sabedoria dos modos de coexistir, processos que não passam nem pela ideologia (em sentido restrito) nem pela religião. A arte não é transparente em si mesma, valha-nos isso, e Braque bem nos avisou de que tudo o que é verdadeiramente importante numa pinura é o que menos se explica. Mas, seja como for, a arte, sugerindo luz ou claro-escuro, translucidez ou opacidade, é um soberbo edifício de mentiras cujo reagrupamento aponta para a verdade. Nisso, ela acaba por se afirmar desobstrutiva (em nome de novas construções), contra todos os dogmas e todos os totalitarismos; não por viver em estado de graça ou de inocência, entre enigmas, mas porque se constitui essencialmente com o fenómeno do imaginário em liberdade, num registo cada vez mais ecuménico. Quando se procura o triunfo a todo o custo, por eleições espúrias, pelo jogo das influências, sem qualidade nem genealogia, a transparência não passa de um eufemismo para disfarçar o pudor, um simples erro. A sofreguidão com que se elegem novos produtos (tóxicos) atingiu a arte em geral, porque os imitadores de um modo acabam transformados em comerciantes da moda, na insuportável indústria cultural. Protegidos das infecções originadas na militância estética, os novos autores, em anestesia contra a dor, ascendem directa ou indirectamente à condição de empresários. A transparência fica para os truques ensinados na Escola e a opacidade será confinada ao mercado. Enquanto isso, as ilusões entopem as sarjetas.

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