O BAR DO OSSIAN: CADERNO DE TELAS, Sereiazinha, Paula Rego

02-10-2009
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Não sabemos quando começa a vida, mas sabemos quando ela acaba.«A este tempo andava o mar todo coalhado de caixas, lanças, pipas, e outras diversidades de cousas, que a desventurada hora do naufrágio faz aparecer; e andando assim tudo baralhado com a gente, de que a maior parte ia nadando à terra, era cousa medonha de ver, e em todo o tempo lastimosa de contar, a carniçaria que a fúria do mar em cada um fazia e os diversos géneros de tormentos com que geralmente tratava a todos, porque em cada parte se viam uns que não podendo mais nadar andavam dando grandes e trabalhosos arrancos com a muita água que bebiam, outros, a que as forças ainda abrangiam menos, que encomendando-se a Deus nas vontades se deixavam a derradeira vez cair ao fundo; outros a que as caixas matavam, entre si entalados, ou, deixando-os atordoados, as ondas os acabavam, marrando com eles em os penedos; outros a que as lanças, ou pedaços da nau, que andavam a nado, os espedaçavam por diversas partes com os pregos que traziam, de modo que a água andava em diversas partes manchada de uma cor tão vermelha como o próprio sangue, do muito que corria das feridas aos que assim acabavam os seus dias.»Naufrágio da Nau S. Bento no Cabo da Boa Esperança no Ano de 1554, História Trágico-Marítima.RELAÇÃO SUMÁRIA DA VIAGEM QUE FEZ ERMELINDA DESDE QUE NASCEU NESTE REINO QUE FOI NO ANO DE (…) ATÉ QUE SE PERDEU NO CABO DA BOA ESPERANÇA NO ANO DE (…) ESCRITA POR CLARISSA QUE SE ACHOU NO DITO NAUFRÁGIO.Nasceu na terra das batatas, a Ermelinda, numa família de oito, onde as bocas para alimentar eram mais que muitas, e sempre poucas as mãos para o trabalho. Cresceu entre as covas abertas, para onde eram lançados os tubérculos grelados, e o motor de rega a abafar-lhe a voz.Fez-se mulher junto ao poço, onde lavou o primeiro sangue negro que lhe encharcou as partes baixas. Deitou corpo, alargou-lhe a anca, braços robustos, dos carregos transportados à cabeça na rodilha colorida.Começou a olhar para a sombra, a ir para os bailaricos, a ser catrapiscada pelos moços das redondezas. Embeiçou-se por um latagão, tez morena, curtido pelo sol do campo.Aperaltou-se para a missa e saiu cedo.Correu para a meda de palha, por detrás da eira, e conheceu os prazeres da carne. Verdade seja dita, de prazer nada teve, senão as entranhas retalhadas e dois dias sem se poder sentar.Ficou prenha a Ermelinda, (de esperanças ficam as senhoras que até dão à luz, as mulheres emprenham e acabam por parir). As regras não apareciam e o marmanjão desapareceu, lá para as bandas do rio onde estava de núpcias marcadas com moça rica e de bom-nome.Viu-se sozinha Ermelinda, com um rebento no buxo e sem marido para lhe lavar a honra.Meteu-se à estrada, para uma tal casa de que as más-línguas davam conta.Entrou no casebre sem nada dizer – não fazem falta as palavras. Deitou-se, abriu as pernas e ficou-se a olhar o tecto, negro de fuligem, do lume onde cozia uma sopa. Queixou-se entredentes, soltou uns ais, gritou.Não fizeram caso do corpo que lhe estrebuchou, da palidez que cobria o rosto.Por entre as pernas viu o sangue empastelado a cobrir aquelas mãos que se lhe entranhavam corpo dentro, esburacando-lhe as carnes.Voltou a casa por seu pé.Invocou «coisas de mulher», para desculpar a queda à cama e o sangue que não parava de jorrar.Finou-se, a pobre, numa enxerga de palha, entre os poceiros de vime, carregados de batatas prontas para a sementeira. Sereiazinha, Paula Rego, 2003.


Não sabemos quando começa a vida, mas sabemos quando ela acaba.«A este tempo andava o mar todo coalhado de caixas, lanças, pipas, e outras diversidades de cousas, que a desventurada hora do naufrágio faz aparecer; e andando assim tudo baralhado com a gente, de que a maior parte ia nadando à terra, era cousa medonha de ver, e em todo o tempo lastimosa de contar, a carniçaria que a fúria do mar em cada um fazia e os diversos géneros de tormentos com que geralmente tratava a todos, porque em cada parte se viam uns que não podendo mais nadar andavam dando grandes e trabalhosos arrancos com a muita água que bebiam, outros, a que as forças ainda abrangiam menos, que encomendando-se a Deus nas vontades se deixavam a derradeira vez cair ao fundo; outros a que as caixas matavam, entre si entalados, ou, deixando-os atordoados, as ondas os acabavam, marrando com eles em os penedos; outros a que as lanças, ou pedaços da nau, que andavam a nado, os espedaçavam por diversas partes com os pregos que traziam, de modo que a água andava em diversas partes manchada de uma cor tão vermelha como o próprio sangue, do muito que corria das feridas aos que assim acabavam os seus dias.»Naufrágio da Nau S. Bento no Cabo da Boa Esperança no Ano de 1554, História Trágico-Marítima.RELAÇÃO SUMÁRIA DA VIAGEM QUE FEZ ERMELINDA DESDE QUE NASCEU NESTE REINO QUE FOI NO ANO DE (…) ATÉ QUE SE PERDEU NO CABO DA BOA ESPERANÇA NO ANO DE (…) ESCRITA POR CLARISSA QUE SE ACHOU NO DITO NAUFRÁGIO.Nasceu na terra das batatas, a Ermelinda, numa família de oito, onde as bocas para alimentar eram mais que muitas, e sempre poucas as mãos para o trabalho. Cresceu entre as covas abertas, para onde eram lançados os tubérculos grelados, e o motor de rega a abafar-lhe a voz.Fez-se mulher junto ao poço, onde lavou o primeiro sangue negro que lhe encharcou as partes baixas. Deitou corpo, alargou-lhe a anca, braços robustos, dos carregos transportados à cabeça na rodilha colorida.Começou a olhar para a sombra, a ir para os bailaricos, a ser catrapiscada pelos moços das redondezas. Embeiçou-se por um latagão, tez morena, curtido pelo sol do campo.Aperaltou-se para a missa e saiu cedo.Correu para a meda de palha, por detrás da eira, e conheceu os prazeres da carne. Verdade seja dita, de prazer nada teve, senão as entranhas retalhadas e dois dias sem se poder sentar.Ficou prenha a Ermelinda, (de esperanças ficam as senhoras que até dão à luz, as mulheres emprenham e acabam por parir). As regras não apareciam e o marmanjão desapareceu, lá para as bandas do rio onde estava de núpcias marcadas com moça rica e de bom-nome.Viu-se sozinha Ermelinda, com um rebento no buxo e sem marido para lhe lavar a honra.Meteu-se à estrada, para uma tal casa de que as más-línguas davam conta.Entrou no casebre sem nada dizer – não fazem falta as palavras. Deitou-se, abriu as pernas e ficou-se a olhar o tecto, negro de fuligem, do lume onde cozia uma sopa. Queixou-se entredentes, soltou uns ais, gritou.Não fizeram caso do corpo que lhe estrebuchou, da palidez que cobria o rosto.Por entre as pernas viu o sangue empastelado a cobrir aquelas mãos que se lhe entranhavam corpo dentro, esburacando-lhe as carnes.Voltou a casa por seu pé.Invocou «coisas de mulher», para desculpar a queda à cama e o sangue que não parava de jorrar.Finou-se, a pobre, numa enxerga de palha, entre os poceiros de vime, carregados de batatas prontas para a sementeira. Sereiazinha, Paula Rego, 2003.

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