da literatura: A RUÍNA

27-05-2005
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Tenho resistido a comentar o «caso» do n.º 68 da rua Saraiva de Carvalho. O tempo é pouco para o que realmente interessa e não vale a pena chover no molhado. No local existe hoje uma ruína. Mas foi ali que, antes de morrer (em Dezembro de 1854), viveu algum tempo o visconde de Almeida Garrett. Dependendo das fontes, esse «algum tempo» corresponderá a um período de 19 a 22 meses. Seja como for, não sobrou nada: nem uma estante decrépita, nem um bloco de notas, nem retratos das criadas da infância, a Brígida e a mulata Rosa de Lima, privilegiadas interlocutoras do «fantástico». Nada. Apenas detritos e uma parede a cair. Ciente do facto, o Ippar não classificou. O buraco foi comprado por um alto quadro do BES que é hoje ministro da Economia. Existe projecto aprovado para a construção de um pequeno bloco de apartamentos (três, salvo erro). O proprietário manifestou-se disponível para incluir no projecto a preservação da traça original da fachada, mantendo a lápide que assinala a passagem de Garrett pelo local. Mas um grupo de notáveis ameaça fazer cair o Carmo e a Trindade se o que resta da ruína for demolido. Exigem uma Casa-Museu que preserve a memória do escritor que com Viagens na Minha Terra (1846) inscreveu a literatura portuguesa na idade moderna. Eu percebo que Manuel Alegre e Gastão Cruz sejam pouco dados a contas. Mas Guilherme d'Oliveira Martins, presidente do Centro Nacional de Cultura, ex-ministro da Educação e das Finanças, não tem álibi lírico. Vão estes senhores arranjar as verbas necessárias para criar uma Fundação privada destinada a suportar a construção (exactamente: a construção), equipamento e gestão da futura Casa-Museu? Se o propósito for esse, é caso para perguntar por que só agora se lembraram do n.º 68 da rua Saraiva de Carvalho. Garrett morreu há 150 anos. Há vinte anos, provavelmente, a casa ainda não seria uma ruína. Agora que não há dinheiro para coisas tão prosaicas como os consumos «domésticos» (electricidade, água, telefones, fotocópias, etc.) da Torre do Tombo, e a Torre do Tombo tem aqui o valor simbólico de uma realidade mais vasta, agora é que se lembraram dos «deveres» do Estado? Quais deveres? Gerir uma ruína? No momento em que a Fundação Calouste Gulbenkian anuncia que vai encerrar o Centro Cultural de Paris, e mudar as instalações da sua biblioteca, e estamos a falar da «maior e melhor biblioteca portuguesa na Europa fora de Portugal», com o pretexto de a re-instalar noutro sítio, presumo que mais económico, no momento, dizia eu, em que tudo isto é feito sem que seja avançada qualquer data para a mudança, o que dá a medida das dificuldades logísticas (e trata-se da Gulbenkian), como é que alguém pode levar a sério o delírio das viúvas de Garrett?

Tenho resistido a comentar o «caso» do n.º 68 da rua Saraiva de Carvalho. O tempo é pouco para o que realmente interessa e não vale a pena chover no molhado. No local existe hoje uma ruína. Mas foi ali que, antes de morrer (em Dezembro de 1854), viveu algum tempo o visconde de Almeida Garrett. Dependendo das fontes, esse «algum tempo» corresponderá a um período de 19 a 22 meses. Seja como for, não sobrou nada: nem uma estante decrépita, nem um bloco de notas, nem retratos das criadas da infância, a Brígida e a mulata Rosa de Lima, privilegiadas interlocutoras do «fantástico». Nada. Apenas detritos e uma parede a cair. Ciente do facto, o Ippar não classificou. O buraco foi comprado por um alto quadro do BES que é hoje ministro da Economia. Existe projecto aprovado para a construção de um pequeno bloco de apartamentos (três, salvo erro). O proprietário manifestou-se disponível para incluir no projecto a preservação da traça original da fachada, mantendo a lápide que assinala a passagem de Garrett pelo local. Mas um grupo de notáveis ameaça fazer cair o Carmo e a Trindade se o que resta da ruína for demolido. Exigem uma Casa-Museu que preserve a memória do escritor que com Viagens na Minha Terra (1846) inscreveu a literatura portuguesa na idade moderna. Eu percebo que Manuel Alegre e Gastão Cruz sejam pouco dados a contas. Mas Guilherme d'Oliveira Martins, presidente do Centro Nacional de Cultura, ex-ministro da Educação e das Finanças, não tem álibi lírico. Vão estes senhores arranjar as verbas necessárias para criar uma Fundação privada destinada a suportar a construção (exactamente: a construção), equipamento e gestão da futura Casa-Museu? Se o propósito for esse, é caso para perguntar por que só agora se lembraram do n.º 68 da rua Saraiva de Carvalho. Garrett morreu há 150 anos. Há vinte anos, provavelmente, a casa ainda não seria uma ruína. Agora que não há dinheiro para coisas tão prosaicas como os consumos «domésticos» (electricidade, água, telefones, fotocópias, etc.) da Torre do Tombo, e a Torre do Tombo tem aqui o valor simbólico de uma realidade mais vasta, agora é que se lembraram dos «deveres» do Estado? Quais deveres? Gerir uma ruína? No momento em que a Fundação Calouste Gulbenkian anuncia que vai encerrar o Centro Cultural de Paris, e mudar as instalações da sua biblioteca, e estamos a falar da «maior e melhor biblioteca portuguesa na Europa fora de Portugal», com o pretexto de a re-instalar noutro sítio, presumo que mais económico, no momento, dizia eu, em que tudo isto é feito sem que seja avançada qualquer data para a mudança, o que dá a medida das dificuldades logísticas (e trata-se da Gulbenkian), como é que alguém pode levar a sério o delírio das viúvas de Garrett?

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