Pó dos Livros: Teaser

23-05-2009
marcar artigo


---“O filho do médico jazia na cama, rígido, em contracções. Corpo inundado de suor, sentia-se febril. Pela fresta da janela, via o desenho anguloso da rua – uma árvore, um telhado, três janelas – que obscurecia, vagarosamente. Um fio ténue de fumo subia direito da chaminé em frente. No quarto, baixo e abobadado, adensava-se agora a escuridão, mais pesada ainda que na rua. Pela janela aberta, vertia-se o calor asfixiante do início de Verão; aureolavam-se de verde, no crepúsculo vaporoso, os candeeiros a gás. Em noites de Primavera, cai, por vezes, este nevoeiro impalpável, que tinge de reflexos verdes as luzes da rua. Na cozinha, a criada passava a ferro e cantarolava. Reflectindo-se obliquamente na vidraça da janela aberta, crepitou o ferro de passar num círculo lúbrico em brasa, como fósforo sulfuroso que se risca numa tábua, na escuridão; nesse instante a rapariga rodava sobre a cabeça a chapa de ferro incandescente.Jazia, rígido, e olhava em frente, com náuseas. O bando debandara às três horas. Assim de repente, tinha a sensação de acordar de um sonho horrível; mas tudo se havia de compor, e depressa, bastava acordar de vez, sair, fazer frente à vida e levar as coisas com afabilidade e aplicação. Esboçou um ricto, doloroso. E, lentamente, ergueu-se, recuperou a consciência de cada um dos seus membros, bamboleou as pernas, vagueando em volta com ar abismado. Em movimentos pesados, arrastou-se da cama, dirigiu-se ao lavatório, e, tacteando na escuridão, procurou o jarro, inclinou a cabeça sobre a bacia e molhou o cabelo e a fronte suados com água quente, estagnada. Pingando, encaminhou-se, meio às cegas, para a porta, até encontrar o interruptor. Sentou-se à mesa, e, com a toalha felpuda e distraída, começou a esfregar a cabeça.” ---É assim que começa o último romance de Sándor Márai editado pela Dom Quixote: “Rebeldes”. E já não apetece parar de ler!---Isabel Nogueira


---“O filho do médico jazia na cama, rígido, em contracções. Corpo inundado de suor, sentia-se febril. Pela fresta da janela, via o desenho anguloso da rua – uma árvore, um telhado, três janelas – que obscurecia, vagarosamente. Um fio ténue de fumo subia direito da chaminé em frente. No quarto, baixo e abobadado, adensava-se agora a escuridão, mais pesada ainda que na rua. Pela janela aberta, vertia-se o calor asfixiante do início de Verão; aureolavam-se de verde, no crepúsculo vaporoso, os candeeiros a gás. Em noites de Primavera, cai, por vezes, este nevoeiro impalpável, que tinge de reflexos verdes as luzes da rua. Na cozinha, a criada passava a ferro e cantarolava. Reflectindo-se obliquamente na vidraça da janela aberta, crepitou o ferro de passar num círculo lúbrico em brasa, como fósforo sulfuroso que se risca numa tábua, na escuridão; nesse instante a rapariga rodava sobre a cabeça a chapa de ferro incandescente.Jazia, rígido, e olhava em frente, com náuseas. O bando debandara às três horas. Assim de repente, tinha a sensação de acordar de um sonho horrível; mas tudo se havia de compor, e depressa, bastava acordar de vez, sair, fazer frente à vida e levar as coisas com afabilidade e aplicação. Esboçou um ricto, doloroso. E, lentamente, ergueu-se, recuperou a consciência de cada um dos seus membros, bamboleou as pernas, vagueando em volta com ar abismado. Em movimentos pesados, arrastou-se da cama, dirigiu-se ao lavatório, e, tacteando na escuridão, procurou o jarro, inclinou a cabeça sobre a bacia e molhou o cabelo e a fronte suados com água quente, estagnada. Pingando, encaminhou-se, meio às cegas, para a porta, até encontrar o interruptor. Sentou-se à mesa, e, com a toalha felpuda e distraída, começou a esfregar a cabeça.” ---É assim que começa o último romance de Sándor Márai editado pela Dom Quixote: “Rebeldes”. E já não apetece parar de ler!---Isabel Nogueira

marcar artigo