NOVA ÁGUIA: O BLOGUE DA LUSOFONIA: Nos 73 anos de António Braz Teixeira, um texto em três partes (a incluir no próximo volume da Colecção NOVA ÁGUIA, da sua autoria)

30-09-2009
marcar artigo


.PORTUGAL COMO ENIGMA (II)À memória de Francisco da Cunha Leão6. Em contrapartida, o castelhano, na visão de Cunha Leão, fundada em amplo conhecimento da bibliografia sobre o tema, bem como em grande familiaridade com a cultura espanhola, caracterizar-se-ia, psicologicamente, por:a) Uma religiosidade imediata, por uma relação directa do homem com Deus, na mística, excluindo qualquer termo médio ou mediação, e por firmeza da crença, inseparável da expressão prática;b) Homem como agente do ideal, primazia da acção, militantismo;c) Indiferença à natureza cósmica, natureza como palco da história, realismo antropológico;d) Vida como afirmação e luta, valorização do pessoal, dramatismo, código de honra, morte como acesso à glória;e) Extremação entre o amor e a sexualidade; amor natural, sem intrincamento;f) Ironia cortante, ácida; apreensão realista do tipo humano; picaresca; ludismo verbal;g) Solidariedade contra as intervenções alheias; orgulho e hermetismo nacional;h) Reacção perante a adversidade pelo refúgio no foro individual, isento de derrota; “soledade”; senequismo; alternância com o desespero colectivo expresso em luta e aniquilamento iconoclasta;i) Tendência para o categórico, para a nitidez dos contrastes e para o menosprezo dos valores intermediários; firmeza das opiniões, pouco permeáveis à dúvida;j) Desinteresse pelo mundo;l) Teimosia aberta e obstinada, desapego das comodidades, inteireza. [13]7. Procurando desenvolver e explicitar o quadro de características que, em seu entender, definiam, psicologicamente, o português, o ensaísta notava que, na sua religiosidade, o amor da natureza e o amor de Deus se apresentam intimamente associados, ao mesmo tempo que é nele muito funda a angústia pela degradação humana, pelo paraíso perdido, que a saudade exemplarmente ilustraria e à qual se alia uma aguda sensibilidade face ao mal, que tem dificuldade em conciliar com a bondade divina. Aqui radicaria, para o autor de O Naufrágio de Goa, a predisposição do português para admitir milagres e outros sinais complementares da Revelação, que o muito antigo culto popular do Espírito Santo exemplarmente ilustraria.A funda relação que, no português, se estabeleceria entre o amor da natureza e o amor de Deus explicaria também o peso do franciscanismo na religião dos portugueses e o lugar que a devoção a Santo António nela ocupa. [14]A religiosidade portuguesa seria ainda definida pelo intenso culto mariano e pelas almas do Purgatório, pela fácil aceitação da santidade, pela ausência de heresias ou cismas religiosos e diminuta importância de movimentos heterodoxos, características que não deixavam de coexistir com outras delas de algum modo contrapolares ou antinómicas, como uma acentuada moderação da fé religiosa, um catolicismo tolerante, que coexiste facilmente com certa religiosidade pagã ou com a superstição, um reduzido número de Santos, a pompa de procissões e romarias ou um marcado anti-clericalismo. [15]8. Quanto ao segundo traço definidor da psicologia portuguesa, que denominou “homem como estado de alma”, notava F. Cunha Leão significar que o português mede as coisas sentimentalmente, podendo dizer-se que, para ele, o cartesiano penso, logo existo se volveria em sinto, logo existo ou, mais sinteticamente, amo, existo.A esta característica de portugueses e galegos anda associada uma certa dor de viver, que faz que a coita chegue a ser amada ou saboreada, a ponto de se tornar necessária, como limiar do sonho, podendo dizer-se mesmo que “anda sempre no subsolo das nossas alegrias”. Por outro lado, esta sujeição ao estado de alma traduz-se ou exprime-se em desigualdade do temperamento, em que a alegria e a dor amiúde surgem ligadas e em que também a brandura convive com a violência. Daí, igualmente, que, segundo o ensaísta, amor e morte se apresentem, na mundividência portuguesa, como os dois termos de uma alternativa que exclui qualquer termo médio. Fora do amor, visto e vivido com uma carga de idealidade, que o torna algo de sagrado, não há outra dignidade senão a da morte, compreendida como cumprimento ou plenificação de uma existência cujos pólos extremos e complementares são o amor e o heroísmo, mas um heroísmo sentimental, nostálgico, sonhador.Este temperamento suave, comovivel do português, que o abre à compreensão do outro, ao universalismo e à tolerância, não deixa de descambar, com frequência, para um certo “amolecimento moral”, para uma condescendência para com os abusos, desde a corrupção à generalização do empenho, que faz da “cunha” uma verdadeira instituição nacional.No português, contudo, esta brandura, o carácter amoroso, a generosidade humana, a tolerância, transmuta-se, por vezes, em violência e até em crueldade. [16]9. No que respeita à atitude do português perante a natureza, notava F. Cunha Leão ser esta entendida por ele animadamente, a ponto de ver nos montes, nas nascentes, nos rios algo dotado de alma, cujas entranhas escondem prodigiosos tesouros ou segredos imprescindíveis, sentido cósmico da natureza que impregna tanto o movimento priscilianista, longamente presente no inconsciente colectivo luso-galaico, como a poesia de Camões, Pondal e Pascoaes, apresentando com frequência uma coloração saudosista e transcendente, que pode levar à espiritualização da matéria e à materialização do espírito, o que denunciaria, segundo o nosso ensaísta, “a comunhão estreita, a confusão do homem na natureza”, um naturalismo transcendente e saudosista [17] ou aquele “transcendentalismo panteísta” de que falou Pessoa a propósito dos poetas de A Águia. [18]10. Relativamente ao modo de compreender, vivencialmente, a vida, esta apresenta-se, acima de tudo, como afirmação pelo sentimento e assimilação humana, pois o português se considera falhado ou fracassado quando, possuído pelo espírito de missão, não logra exceder-se em algo de nobre e universal, procedendo, porém, de modo indirecto, dominado pelo sentimento, através de um processo de simbiose espiritual, acompanhado, seguido ou completado com a assimilação física das terras e das gentes e movido, as mais das vezes, pelo gosto da aventura, da devassa de novos mundos. [19]O modo português de viver o amor, para o ensaísta, seria marcado, desde logo, por uma fluida fronteira entre amor e sexualidade, que faz coexistir a idealidade do amor das cantigas de amor e de amigo com o desmando carnal das cantigas de escárnio e maldizer e elevou um enlace amoroso à margem do casamento – o do rei D. Pedro com a galega Inês de Castro – à dignidade de grande mito nacional, o da supervivência do amor, do fatalismo passional que transcende a própria morte e em que o amor adquire vida.Por outro lado, o amor português teria feição tão absorvente e monopolizadora que até aquele que é correspondido vive no permanente receio de perdê-lo, numa antecipada nostalgia das situações passadas que deseja reviver, que alimenta a mágoa do amor, as queixas do amado, a saudade. [20]A força absorvente do sentimento que, na visão do ensaísta, define e caracteriza o português, projecta-se, igualmente, na sua ironia, ela própria de fundo sentimental e impregnada de ingredientes emotivos, o que faz não só que seja usada como libertação de estados emocionais, do desgosto de nós próprios e da melancolia, que ironizemos os nossos defeitos e fracassos, a tristeza e o medo que sentimos, que disfarcemos com ironia as nossas virtudes e mais secretos desejos, como que, muitas vezes, entre nós, a ironia e a queixa apareçam estreitamente associadas, pois a extrema sensibilidade não deixa de se reflectir numa agudo sentido do ridículo próprio e alheio e num invulgar poder de captação do cómico, que faz do nosso riso um riso apaixonado, marcado pela parcialidade do coração. [21][13] Idem, p. 160.[14] O Enigma, pp. 162-168.[15] Ensaio, pp. 24-25 e 67-78.[16] O Enigma, pp. 169-172 e Ensaio, pp. 97-104.[17] O Enigma, pp. 173-178.[18] “A Moderna Poesia Portuguesa”, A Águia, 1912.[19] O Enigma, pp. 179-180.[20] O Enigma, pp. 181-185 e Ensaio, pp. 105-117.[21] O Enigma, pp. 186-190.


.PORTUGAL COMO ENIGMA (II)À memória de Francisco da Cunha Leão6. Em contrapartida, o castelhano, na visão de Cunha Leão, fundada em amplo conhecimento da bibliografia sobre o tema, bem como em grande familiaridade com a cultura espanhola, caracterizar-se-ia, psicologicamente, por:a) Uma religiosidade imediata, por uma relação directa do homem com Deus, na mística, excluindo qualquer termo médio ou mediação, e por firmeza da crença, inseparável da expressão prática;b) Homem como agente do ideal, primazia da acção, militantismo;c) Indiferença à natureza cósmica, natureza como palco da história, realismo antropológico;d) Vida como afirmação e luta, valorização do pessoal, dramatismo, código de honra, morte como acesso à glória;e) Extremação entre o amor e a sexualidade; amor natural, sem intrincamento;f) Ironia cortante, ácida; apreensão realista do tipo humano; picaresca; ludismo verbal;g) Solidariedade contra as intervenções alheias; orgulho e hermetismo nacional;h) Reacção perante a adversidade pelo refúgio no foro individual, isento de derrota; “soledade”; senequismo; alternância com o desespero colectivo expresso em luta e aniquilamento iconoclasta;i) Tendência para o categórico, para a nitidez dos contrastes e para o menosprezo dos valores intermediários; firmeza das opiniões, pouco permeáveis à dúvida;j) Desinteresse pelo mundo;l) Teimosia aberta e obstinada, desapego das comodidades, inteireza. [13]7. Procurando desenvolver e explicitar o quadro de características que, em seu entender, definiam, psicologicamente, o português, o ensaísta notava que, na sua religiosidade, o amor da natureza e o amor de Deus se apresentam intimamente associados, ao mesmo tempo que é nele muito funda a angústia pela degradação humana, pelo paraíso perdido, que a saudade exemplarmente ilustraria e à qual se alia uma aguda sensibilidade face ao mal, que tem dificuldade em conciliar com a bondade divina. Aqui radicaria, para o autor de O Naufrágio de Goa, a predisposição do português para admitir milagres e outros sinais complementares da Revelação, que o muito antigo culto popular do Espírito Santo exemplarmente ilustraria.A funda relação que, no português, se estabeleceria entre o amor da natureza e o amor de Deus explicaria também o peso do franciscanismo na religião dos portugueses e o lugar que a devoção a Santo António nela ocupa. [14]A religiosidade portuguesa seria ainda definida pelo intenso culto mariano e pelas almas do Purgatório, pela fácil aceitação da santidade, pela ausência de heresias ou cismas religiosos e diminuta importância de movimentos heterodoxos, características que não deixavam de coexistir com outras delas de algum modo contrapolares ou antinómicas, como uma acentuada moderação da fé religiosa, um catolicismo tolerante, que coexiste facilmente com certa religiosidade pagã ou com a superstição, um reduzido número de Santos, a pompa de procissões e romarias ou um marcado anti-clericalismo. [15]8. Quanto ao segundo traço definidor da psicologia portuguesa, que denominou “homem como estado de alma”, notava F. Cunha Leão significar que o português mede as coisas sentimentalmente, podendo dizer-se que, para ele, o cartesiano penso, logo existo se volveria em sinto, logo existo ou, mais sinteticamente, amo, existo.A esta característica de portugueses e galegos anda associada uma certa dor de viver, que faz que a coita chegue a ser amada ou saboreada, a ponto de se tornar necessária, como limiar do sonho, podendo dizer-se mesmo que “anda sempre no subsolo das nossas alegrias”. Por outro lado, esta sujeição ao estado de alma traduz-se ou exprime-se em desigualdade do temperamento, em que a alegria e a dor amiúde surgem ligadas e em que também a brandura convive com a violência. Daí, igualmente, que, segundo o ensaísta, amor e morte se apresentem, na mundividência portuguesa, como os dois termos de uma alternativa que exclui qualquer termo médio. Fora do amor, visto e vivido com uma carga de idealidade, que o torna algo de sagrado, não há outra dignidade senão a da morte, compreendida como cumprimento ou plenificação de uma existência cujos pólos extremos e complementares são o amor e o heroísmo, mas um heroísmo sentimental, nostálgico, sonhador.Este temperamento suave, comovivel do português, que o abre à compreensão do outro, ao universalismo e à tolerância, não deixa de descambar, com frequência, para um certo “amolecimento moral”, para uma condescendência para com os abusos, desde a corrupção à generalização do empenho, que faz da “cunha” uma verdadeira instituição nacional.No português, contudo, esta brandura, o carácter amoroso, a generosidade humana, a tolerância, transmuta-se, por vezes, em violência e até em crueldade. [16]9. No que respeita à atitude do português perante a natureza, notava F. Cunha Leão ser esta entendida por ele animadamente, a ponto de ver nos montes, nas nascentes, nos rios algo dotado de alma, cujas entranhas escondem prodigiosos tesouros ou segredos imprescindíveis, sentido cósmico da natureza que impregna tanto o movimento priscilianista, longamente presente no inconsciente colectivo luso-galaico, como a poesia de Camões, Pondal e Pascoaes, apresentando com frequência uma coloração saudosista e transcendente, que pode levar à espiritualização da matéria e à materialização do espírito, o que denunciaria, segundo o nosso ensaísta, “a comunhão estreita, a confusão do homem na natureza”, um naturalismo transcendente e saudosista [17] ou aquele “transcendentalismo panteísta” de que falou Pessoa a propósito dos poetas de A Águia. [18]10. Relativamente ao modo de compreender, vivencialmente, a vida, esta apresenta-se, acima de tudo, como afirmação pelo sentimento e assimilação humana, pois o português se considera falhado ou fracassado quando, possuído pelo espírito de missão, não logra exceder-se em algo de nobre e universal, procedendo, porém, de modo indirecto, dominado pelo sentimento, através de um processo de simbiose espiritual, acompanhado, seguido ou completado com a assimilação física das terras e das gentes e movido, as mais das vezes, pelo gosto da aventura, da devassa de novos mundos. [19]O modo português de viver o amor, para o ensaísta, seria marcado, desde logo, por uma fluida fronteira entre amor e sexualidade, que faz coexistir a idealidade do amor das cantigas de amor e de amigo com o desmando carnal das cantigas de escárnio e maldizer e elevou um enlace amoroso à margem do casamento – o do rei D. Pedro com a galega Inês de Castro – à dignidade de grande mito nacional, o da supervivência do amor, do fatalismo passional que transcende a própria morte e em que o amor adquire vida.Por outro lado, o amor português teria feição tão absorvente e monopolizadora que até aquele que é correspondido vive no permanente receio de perdê-lo, numa antecipada nostalgia das situações passadas que deseja reviver, que alimenta a mágoa do amor, as queixas do amado, a saudade. [20]A força absorvente do sentimento que, na visão do ensaísta, define e caracteriza o português, projecta-se, igualmente, na sua ironia, ela própria de fundo sentimental e impregnada de ingredientes emotivos, o que faz não só que seja usada como libertação de estados emocionais, do desgosto de nós próprios e da melancolia, que ironizemos os nossos defeitos e fracassos, a tristeza e o medo que sentimos, que disfarcemos com ironia as nossas virtudes e mais secretos desejos, como que, muitas vezes, entre nós, a ironia e a queixa apareçam estreitamente associadas, pois a extrema sensibilidade não deixa de se reflectir numa agudo sentido do ridículo próprio e alheio e num invulgar poder de captação do cómico, que faz do nosso riso um riso apaixonado, marcado pela parcialidade do coração. [21][13] Idem, p. 160.[14] O Enigma, pp. 162-168.[15] Ensaio, pp. 24-25 e 67-78.[16] O Enigma, pp. 169-172 e Ensaio, pp. 97-104.[17] O Enigma, pp. 173-178.[18] “A Moderna Poesia Portuguesa”, A Águia, 1912.[19] O Enigma, pp. 179-180.[20] O Enigma, pp. 181-185 e Ensaio, pp. 105-117.[21] O Enigma, pp. 186-190.

marcar artigo