CyberCultura e Democracia Online: Morte, Perda e Luto (1)

03-10-2009
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«Não existe amor sem perda. E não existe a superação da perda sem alguma experiência de luto. Não ser capaz de a vivenciar é ser incapaz de entrar no grande ciclo da vida humana de morte e de renascimento, enfim, é ser incapaz de viver novamente». (Lifton) Philippe Ariés analisou as imagens da morte no Ocidente em função de quatro parâmetros: a consciência de si (1), a defesa da sociedade contra a natureza selvagem (2), a crença na outra vida (3), e a crença na existência do mal (4). As variações destes parâmetros ao longo do tempo, desde a baixa Idade Média até aos nossos dias, possibilitaram-lhe captar e estabelecer uma sequência ou sucessão de cinco modelos: a morte domada (1), a minha morte (2), a morte distante e próxima (3), a morte do outro (4) e a morte invertida (5). A história da morte apresentada por Ariés fornece-nos muitos dados e perspectivas importantes, mas a sua metodologia é ingénua e frágil e os seus resultados são questionáveis. Alguns conceitos utilizados, tais como "todos morremos" (morte domada), a "minha morte" e a "morte do outro", são retomados de V. Jankélévitch, não como constantes antropológicas da morte, mas como designações gerais de imagens da morte: as constantes antropológicas são vistas por Ariés como variações históricas de modelos da morte. Esta fragilidade teórica revela-se no uso que Ariés faz da "morte do outro". O seu surgimento histórico é explicado pela mudança do parâmetro da individualidade: "Até agora variava entre dois limites: o sentido da espécie e de um destino comum (todos morremos) e o sentido da sua biografia pessoal e específica (a minha morte). No século XIX, enfraquecem-se um e outro em proveito de um terceiro sentido, antes confundido com os dois primeiros: o sentido do outro, e não de um outro qualquer. A afectividade, outrora difusa, concentrou-se a partir de então em alguns seres raros cuja separação já não é suportada e desencadeia uma crise dramática: a morte do outro" (Ariés). O século XIX trouxe-nos uma "revolução do sentimento": a sensibilidade dirigida para a vida privada (privacy), que "encontrou o seu lugar na família «nuclear», remodelada pela sua nova função de afectividade absoluta. A família substituiu-se ao mesmo tempo à comunidade tradicional e ao indivíduo do final da Idade Média e do início dos tempos modernos". A morte de si perdeu sentido e "o medo da morte, germinando nos fantasmas dos séculos XVII e XVIII, foi desviado de si para o outro, o ser amado". Ariés apresenta como novidade aquilo que é uma realidade desde que o homem é homem ou, pelo menos, desde que sepulta os seus mortos queridos (Florbela Espanca) há cerca de 50 000 anos: a morte na primeira pessoa (a minha morte ou morte própria), na segunda pessoa (a morte do outro) e na terceira pessoa (a morte anónima) sempre-já coexistem, tanto ao nível humano como ao nível animal. A morte do outro significa uma perda para os que sobrevivem e esta perda de alguém próximo e querido constitui o maior golpe que o espírito humano pode (ou não) suportar: o homem pode ser esmagado pelo pesar e morrer por causa do sofrimento desencadeado pela perda do ser amado. O homem não sente amor e pesar por um outro ser humano qualquer, mas apenas por um ou alguns seres humanos particulares. Tudo isto se deve ao vínculo afectivo, isto é, à formação, manutenção, rompimento e renovação de vínculos emocionais: a atracção que um indivíduo sente por outro indivíduo. Diversas espécies animais revelam a existência de vínculos fortes e persistentes entre indivíduos e os tipos de vínculos diferem de uma espécie para outra, embora os mais comuns sejam as ligações entre pais e filhos e as ligações entre adultos do sexo oposto ou do mesmo sexo. O primeiro vínculo e o mais persistente é aquele que se forma entre a mãe e o seu filho. A vinculação afectiva resulta do comportamento social da espécie e implica uma aptidão para reconhecer indivíduos. Cada membro do par vinculado procura manter-se na proximidade do outro e suscita no outro o comportamento de manutenção da proximidade: os dois indivíduos vinculados tendem a manter-se próximos um do outro e, quando se separam, um deles procura, mais cedo ou mais tarde, o outro para restabelecer e reatar a proximidade. A presença de um intruso desencadeia resistência no par vinculado e, geralmente, o mais forte pode atacá-lo. O comportamento agressivo ajuda a manter e a conservar os vínculos, sendo utilizado quer para atacar e afugentar os intrusos, quer para punir o parceiro errante. Os vínculos afectivos e os estados emocionais subjectivos tendem a ocorrer juntos. Em termos de experiência subjectiva, a formação de um vínculo é descrita como apaixonar-se, a manutenção desse vínculo, como amar alguém, e a perda do parceiro vinculado, como sofrer por alguém. A ameaça de perda gera ansiedade, a perda produz tristeza, e, tanto uma como a outra, podem despertar raiva. A manutenção de um vínculo é experienciada como uma fonte de segurança, e a sua renovação, como uma fonte de alegria. A alimentação e o sexo não explicam a existência de vínculos afectivos: o bebé não se vincula à mãe por causa desta o alimentar e os adultos não se vinculam uns aos outros por causa do sexo. Estas explicações foram desmentidas por estudos etológicos e experimentais. Entre as aves e os mamíferos, as crias ligam-se a objectos maternos, apesar de não serem alimentadas por eles, e os vínculos afectivos entre adultos não são necessariamente acompanhados por relações sexuais, as quais ocorrem frequentemente na ausência de vínculos afectivos persistentes. Do ponto de vista ontogenético, os vínculos afectivos desenvolvem-se, porque os seres vivos nascem dotados de uma inclinação para se aproximar de determinado tipo específico de estímulos, aqueles que lhes são familiares, e para evitar outros tipos de estímulos, aqueles que lhes são estranhos. O bebé humano desenvolve o comportamento de ligação com a mãe ou outro substituto maternal durante os primeiros nove meses de vida: a figura de ligação é, geralmente, a pessoa que lhe dispensa a maior parte dos cuidados maternos. O comportamento de ligação mantém-se activado até ao final do terceiro ano de vida e, depois desta idade, torna-se cada vez menos activado, embora persista, como parte do equipamento comportamental humano, durante grande parte do ciclo vital. A ligação desenvolve-se mesmo que o bebé seja repetidamente punido pela figura de ligação. Do ponto de vista evolutivo, a função biológica da vinculação entre indivíduos da mesma espécie é, provavelmente, a protecção contra predadores: o comportamento de apego contribui para a sobrevivência do indivíduo, mantendo-o em contacto com aqueles que cuidam dele e protegendo-o das ameaças ambientais. Os cuidados que lhe são prestados garantem a sua sobrevivência, protegendo-o das ameaças ambientais e reduzindo o risco de morte prematura. (CONTINUA com o título "Morte, Perda e Luto 2".) J Francisco Saraiva de Sousa


«Não existe amor sem perda. E não existe a superação da perda sem alguma experiência de luto. Não ser capaz de a vivenciar é ser incapaz de entrar no grande ciclo da vida humana de morte e de renascimento, enfim, é ser incapaz de viver novamente». (Lifton) Philippe Ariés analisou as imagens da morte no Ocidente em função de quatro parâmetros: a consciência de si (1), a defesa da sociedade contra a natureza selvagem (2), a crença na outra vida (3), e a crença na existência do mal (4). As variações destes parâmetros ao longo do tempo, desde a baixa Idade Média até aos nossos dias, possibilitaram-lhe captar e estabelecer uma sequência ou sucessão de cinco modelos: a morte domada (1), a minha morte (2), a morte distante e próxima (3), a morte do outro (4) e a morte invertida (5). A história da morte apresentada por Ariés fornece-nos muitos dados e perspectivas importantes, mas a sua metodologia é ingénua e frágil e os seus resultados são questionáveis. Alguns conceitos utilizados, tais como "todos morremos" (morte domada), a "minha morte" e a "morte do outro", são retomados de V. Jankélévitch, não como constantes antropológicas da morte, mas como designações gerais de imagens da morte: as constantes antropológicas são vistas por Ariés como variações históricas de modelos da morte. Esta fragilidade teórica revela-se no uso que Ariés faz da "morte do outro". O seu surgimento histórico é explicado pela mudança do parâmetro da individualidade: "Até agora variava entre dois limites: o sentido da espécie e de um destino comum (todos morremos) e o sentido da sua biografia pessoal e específica (a minha morte). No século XIX, enfraquecem-se um e outro em proveito de um terceiro sentido, antes confundido com os dois primeiros: o sentido do outro, e não de um outro qualquer. A afectividade, outrora difusa, concentrou-se a partir de então em alguns seres raros cuja separação já não é suportada e desencadeia uma crise dramática: a morte do outro" (Ariés). O século XIX trouxe-nos uma "revolução do sentimento": a sensibilidade dirigida para a vida privada (privacy), que "encontrou o seu lugar na família «nuclear», remodelada pela sua nova função de afectividade absoluta. A família substituiu-se ao mesmo tempo à comunidade tradicional e ao indivíduo do final da Idade Média e do início dos tempos modernos". A morte de si perdeu sentido e "o medo da morte, germinando nos fantasmas dos séculos XVII e XVIII, foi desviado de si para o outro, o ser amado". Ariés apresenta como novidade aquilo que é uma realidade desde que o homem é homem ou, pelo menos, desde que sepulta os seus mortos queridos (Florbela Espanca) há cerca de 50 000 anos: a morte na primeira pessoa (a minha morte ou morte própria), na segunda pessoa (a morte do outro) e na terceira pessoa (a morte anónima) sempre-já coexistem, tanto ao nível humano como ao nível animal. A morte do outro significa uma perda para os que sobrevivem e esta perda de alguém próximo e querido constitui o maior golpe que o espírito humano pode (ou não) suportar: o homem pode ser esmagado pelo pesar e morrer por causa do sofrimento desencadeado pela perda do ser amado. O homem não sente amor e pesar por um outro ser humano qualquer, mas apenas por um ou alguns seres humanos particulares. Tudo isto se deve ao vínculo afectivo, isto é, à formação, manutenção, rompimento e renovação de vínculos emocionais: a atracção que um indivíduo sente por outro indivíduo. Diversas espécies animais revelam a existência de vínculos fortes e persistentes entre indivíduos e os tipos de vínculos diferem de uma espécie para outra, embora os mais comuns sejam as ligações entre pais e filhos e as ligações entre adultos do sexo oposto ou do mesmo sexo. O primeiro vínculo e o mais persistente é aquele que se forma entre a mãe e o seu filho. A vinculação afectiva resulta do comportamento social da espécie e implica uma aptidão para reconhecer indivíduos. Cada membro do par vinculado procura manter-se na proximidade do outro e suscita no outro o comportamento de manutenção da proximidade: os dois indivíduos vinculados tendem a manter-se próximos um do outro e, quando se separam, um deles procura, mais cedo ou mais tarde, o outro para restabelecer e reatar a proximidade. A presença de um intruso desencadeia resistência no par vinculado e, geralmente, o mais forte pode atacá-lo. O comportamento agressivo ajuda a manter e a conservar os vínculos, sendo utilizado quer para atacar e afugentar os intrusos, quer para punir o parceiro errante. Os vínculos afectivos e os estados emocionais subjectivos tendem a ocorrer juntos. Em termos de experiência subjectiva, a formação de um vínculo é descrita como apaixonar-se, a manutenção desse vínculo, como amar alguém, e a perda do parceiro vinculado, como sofrer por alguém. A ameaça de perda gera ansiedade, a perda produz tristeza, e, tanto uma como a outra, podem despertar raiva. A manutenção de um vínculo é experienciada como uma fonte de segurança, e a sua renovação, como uma fonte de alegria. A alimentação e o sexo não explicam a existência de vínculos afectivos: o bebé não se vincula à mãe por causa desta o alimentar e os adultos não se vinculam uns aos outros por causa do sexo. Estas explicações foram desmentidas por estudos etológicos e experimentais. Entre as aves e os mamíferos, as crias ligam-se a objectos maternos, apesar de não serem alimentadas por eles, e os vínculos afectivos entre adultos não são necessariamente acompanhados por relações sexuais, as quais ocorrem frequentemente na ausência de vínculos afectivos persistentes. Do ponto de vista ontogenético, os vínculos afectivos desenvolvem-se, porque os seres vivos nascem dotados de uma inclinação para se aproximar de determinado tipo específico de estímulos, aqueles que lhes são familiares, e para evitar outros tipos de estímulos, aqueles que lhes são estranhos. O bebé humano desenvolve o comportamento de ligação com a mãe ou outro substituto maternal durante os primeiros nove meses de vida: a figura de ligação é, geralmente, a pessoa que lhe dispensa a maior parte dos cuidados maternos. O comportamento de ligação mantém-se activado até ao final do terceiro ano de vida e, depois desta idade, torna-se cada vez menos activado, embora persista, como parte do equipamento comportamental humano, durante grande parte do ciclo vital. A ligação desenvolve-se mesmo que o bebé seja repetidamente punido pela figura de ligação. Do ponto de vista evolutivo, a função biológica da vinculação entre indivíduos da mesma espécie é, provavelmente, a protecção contra predadores: o comportamento de apego contribui para a sobrevivência do indivíduo, mantendo-o em contacto com aqueles que cuidam dele e protegendo-o das ameaças ambientais. Os cuidados que lhe são prestados garantem a sua sobrevivência, protegendo-o das ameaças ambientais e reduzindo o risco de morte prematura. (CONTINUA com o título "Morte, Perda e Luto 2".) J Francisco Saraiva de Sousa

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