74: VOO 837 A ENFERMEIRA QUE VINHA DO CÉU.

05-10-2009
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Manuel BastosFur.Mil.Op.Especiais (DFA) MuedaCoimbraCaro amigo BarataMando-te um pequeno texto que escrevi assim de improviso para responder ao teu pedido, mal li o teu e-mail.São sempre poucas as palavras quando os sentimentos são grandes, e são sempre insuficientes o reconhecimento e a gratidão de quem recebeu a dádiva generosa destas mulheres.Da tua e nossa FAP jamais esquecerei o ronronar dos T6 e o silvo dos Fiat nos momentos de aperto, nas matas e nas picadas do Planalto dos Macondes ou do Vale de Miteda.Posso dizer, como homem que nunca foi tocado pela fé, que a única protecção que recebi dos céus foi a das FAP.Mando duas fotos em que se vê a enfermeira de que falo no texto.Como já foram publicadas, fica ao teu critério arranjares outra ilustração, se o entenderes.Um grande abraço,Manuel BastosVB:Obrigado Manuel,mais uma vez me deixas rendido à emoção das sentidas palavras.A Enfermeira que Vinha do CéuEla vinha do céu. Há poucas coisas mais delicadas do que um helicóptero a poisar no meio da guerra para de dentro dele sair aquela figura feminina, normalmente de t-shirt branca. Vinha e levava com ela os nossos camaradas feridos, e durante uns breves minutos o terror dava lugar a uma leve sensação de doçura.Às vezes a meio do meu dia o som cacofónico de um helicóptero em direcção aos HUC devolve-me a mata de Moçambique e sinto um alívio antigo, tão antigo como as minhas memórias da Guerra Colonial. O alívio de ver salvo aquele camarada à beira da morte. Não amigo, não irmão; mais do que isso: aquele sócio da vida e da morte, aquele companheiro do peito, aquele parceiro de sangue, que nos olha incrédulo por ver a vida a escoar-se lentamente perante a nossa impotência.E ela chegava do céu. Chegava a tempo, antecipando-se à morte. E era então que me apetecia chorar; que um homem até aguenta o medo e o terror mas não resiste à generosidade de uma mulher.Há muitas maneiras de amarmos uma mulher, e eu acho que a vida já me concedeu o privilégio de as conhecer a todas. Mas um homem que não tenha conhecido um momento de extremo perigo, o abismo profundo da sensação da morte eminente, para ser resgatado no último instante pelo sorriso de uma mulher; não sabe que o amor pode tocar o limite do etéreo.Quando folheio as páginas da nossa história recente e vejo como os governantes deste país desprezam os soldados quando já não precisam deles – os prisioneiros abandonados de La Lys e da Índia portuguesa, e os soldados sepultados e esquecidos nas matas das ex-colónias, para não falar dos que regressaram vivos tendo deixado para trás a vontade de viver – resta-me o conforto de ter conhecido no momento mais dramático da guerra o sorriso redentor desta enfermeira pára-quedista. Sim, um dia no pó de uma picada do norte de Moçambique eram os meus olhos que procuravam desmentir a impotência dos meus camaradas, enquanto sentia a vida a escoar-se lentamente. E depois, ao longe, o som cacofónico do helicóptero como um clarim do céu.Estas fotos reportam-se ao tempo em que o Manuel,ferido pelo rebentamento de uma mina,era evacuado para o hospital em MuedaDelicadamente, como julgo que farão os anjos, o helicóptero pousou à minha frente e deixou sair de dentro de si a figura feminina da enfermeira. E a Morte, mais uma vez ultrapassada, deixou-me vivo nas suas mãos.Será que esta pátria, sempre tão ingrata para os que obriga a combater, trata ao menos com dignidade e honra estas mulheres que voluntariamente arriscavam a vida para salvar as dos outros?Por favor, não me digam que não, para que ainda possa guardar dentro de mim uma réstia de patriotismo.Manuel BastosComentário do nosso Co-Piloto,João Carlos,"largado"neste excelente texto:Companheiros, publicamos este belo texto do Manuel Bastos (1) de homenagem às Ilustres Enfermeiras Pára-quedistas.Com os seus dotes de escritor e tendo como base de partida o trágico momento em que pela última vez apoiou os dois pés no chão (2), o Manuel Bastos exprime de forma magnífica todo o seu sentimento e gratidão pela acção de quem arriscava a vida “Para Que Outros Vivam”.A Enfermeira que Vinha do Céu ou afinal um homem também chora, as emoções à flor da pele.O reconhecimento e a gratidão entre camaradas, mas a exigência de um tratamento digno e de honra por parte dos nossos governantes.Manuel Bastos, em nome da Linha da Frente, obrigado por nos enriqueceres com esta bela mensagem.(1) O Manuel Bastos é o autor do livro “Cacimbados – a vida por um fio” e tem alguns textos publicados no “nosso” blogue”, testemunhando momentos duros da Guerra Colonial.(2) A expressão muito forte “foi aqui que apoiei os dois pés no chão pela última vez na vida” foi utilizada pelo Manuel Bastos na legendagem de uma fotografia enviada para o “nosso” blogue.


Manuel BastosFur.Mil.Op.Especiais (DFA) MuedaCoimbraCaro amigo BarataMando-te um pequeno texto que escrevi assim de improviso para responder ao teu pedido, mal li o teu e-mail.São sempre poucas as palavras quando os sentimentos são grandes, e são sempre insuficientes o reconhecimento e a gratidão de quem recebeu a dádiva generosa destas mulheres.Da tua e nossa FAP jamais esquecerei o ronronar dos T6 e o silvo dos Fiat nos momentos de aperto, nas matas e nas picadas do Planalto dos Macondes ou do Vale de Miteda.Posso dizer, como homem que nunca foi tocado pela fé, que a única protecção que recebi dos céus foi a das FAP.Mando duas fotos em que se vê a enfermeira de que falo no texto.Como já foram publicadas, fica ao teu critério arranjares outra ilustração, se o entenderes.Um grande abraço,Manuel BastosVB:Obrigado Manuel,mais uma vez me deixas rendido à emoção das sentidas palavras.A Enfermeira que Vinha do CéuEla vinha do céu. Há poucas coisas mais delicadas do que um helicóptero a poisar no meio da guerra para de dentro dele sair aquela figura feminina, normalmente de t-shirt branca. Vinha e levava com ela os nossos camaradas feridos, e durante uns breves minutos o terror dava lugar a uma leve sensação de doçura.Às vezes a meio do meu dia o som cacofónico de um helicóptero em direcção aos HUC devolve-me a mata de Moçambique e sinto um alívio antigo, tão antigo como as minhas memórias da Guerra Colonial. O alívio de ver salvo aquele camarada à beira da morte. Não amigo, não irmão; mais do que isso: aquele sócio da vida e da morte, aquele companheiro do peito, aquele parceiro de sangue, que nos olha incrédulo por ver a vida a escoar-se lentamente perante a nossa impotência.E ela chegava do céu. Chegava a tempo, antecipando-se à morte. E era então que me apetecia chorar; que um homem até aguenta o medo e o terror mas não resiste à generosidade de uma mulher.Há muitas maneiras de amarmos uma mulher, e eu acho que a vida já me concedeu o privilégio de as conhecer a todas. Mas um homem que não tenha conhecido um momento de extremo perigo, o abismo profundo da sensação da morte eminente, para ser resgatado no último instante pelo sorriso de uma mulher; não sabe que o amor pode tocar o limite do etéreo.Quando folheio as páginas da nossa história recente e vejo como os governantes deste país desprezam os soldados quando já não precisam deles – os prisioneiros abandonados de La Lys e da Índia portuguesa, e os soldados sepultados e esquecidos nas matas das ex-colónias, para não falar dos que regressaram vivos tendo deixado para trás a vontade de viver – resta-me o conforto de ter conhecido no momento mais dramático da guerra o sorriso redentor desta enfermeira pára-quedista. Sim, um dia no pó de uma picada do norte de Moçambique eram os meus olhos que procuravam desmentir a impotência dos meus camaradas, enquanto sentia a vida a escoar-se lentamente. E depois, ao longe, o som cacofónico do helicóptero como um clarim do céu.Estas fotos reportam-se ao tempo em que o Manuel,ferido pelo rebentamento de uma mina,era evacuado para o hospital em MuedaDelicadamente, como julgo que farão os anjos, o helicóptero pousou à minha frente e deixou sair de dentro de si a figura feminina da enfermeira. E a Morte, mais uma vez ultrapassada, deixou-me vivo nas suas mãos.Será que esta pátria, sempre tão ingrata para os que obriga a combater, trata ao menos com dignidade e honra estas mulheres que voluntariamente arriscavam a vida para salvar as dos outros?Por favor, não me digam que não, para que ainda possa guardar dentro de mim uma réstia de patriotismo.Manuel BastosComentário do nosso Co-Piloto,João Carlos,"largado"neste excelente texto:Companheiros, publicamos este belo texto do Manuel Bastos (1) de homenagem às Ilustres Enfermeiras Pára-quedistas.Com os seus dotes de escritor e tendo como base de partida o trágico momento em que pela última vez apoiou os dois pés no chão (2), o Manuel Bastos exprime de forma magnífica todo o seu sentimento e gratidão pela acção de quem arriscava a vida “Para Que Outros Vivam”.A Enfermeira que Vinha do Céu ou afinal um homem também chora, as emoções à flor da pele.O reconhecimento e a gratidão entre camaradas, mas a exigência de um tratamento digno e de honra por parte dos nossos governantes.Manuel Bastos, em nome da Linha da Frente, obrigado por nos enriqueceres com esta bela mensagem.(1) O Manuel Bastos é o autor do livro “Cacimbados – a vida por um fio” e tem alguns textos publicados no “nosso” blogue”, testemunhando momentos duros da Guerra Colonial.(2) A expressão muito forte “foi aqui que apoiei os dois pés no chão pela última vez na vida” foi utilizada pelo Manuel Bastos na legendagem de uma fotografia enviada para o “nosso” blogue.

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