O MacGuffin

20-06-2005
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Recentemente, no show da rentrée, Ferro Rodrigues, sob a batuta do mestre escola Soares, tratou de reabilitar um enviesado grito de guerraZola. “J’Accuse”, gritou Ferro, apontando todo o seu aparato bélico para um grupelho de extremistas, liderados por Paulo Portas. Segundo Ferro, este sinistro grupo tem vindo insistente e insidiosamente a contaminar o governo de Durão Barroso, não só influenciando perniciosamente a política do actual executivo como, desgraça das desgraças, tomando de assalto o seu. Avisa-nos paternalmente Ferro que, esta espécie de organização mafiosa (onde, supõe-se, se incluem os ministros que saíram das fileiras do PP), está interessada em inculcar uma visão passadista, retrógrada, reaccionária e neo-fascista da vida em sociedade e da política em geral. Germina no seio do governo uma semente maligna, da mesma estirpe que deu origem a um Haider e a um Le Pen. Ferro avisa os mais distraídos: o «Paulinho» das feiras não passa de um frio “neo-fascista” e de um irresponsável “neo-liberal”.Não fosse patética e demagógica, a insinuação seria hilariante. No fundo, espelha bem a falta de cultura política dos dirigentes políticos em Portugal. Só uma pessoa demagógica – habituada a olhar as «massas» como um bando de ignorantes que engolem qualquer patranha – ou ignorante – para quem os conceitos são estranhos, estando ao serviços dos slogans - poderá acusar outro seu semelhante de “neo-fascista” e “neo-liberal”, ao mesmo tempo. Que eu saiba, ou se é (neo) fascista, ou se é (neo) liberal. Juntar as duas coisas é um pouco como dizer que fulano tal é um “comunista Nozickiano”.Aparte esse «pequeníssimo» pormenor, a tese de Ferro, dissecada até ao tutano, não colhe. Eu peço ao auditório da blogosfera o seguinte exercício: tentemos recolher os indícios do caracter extremista de Paulo Portas que possam corroborar ou sustentar a suspeita.Terá sido o putativo afrontamento das chefias militares? Não me parece. Noutro tempo e noutro contexto, seria a própria esquerda a aplaudir este aparente braço de ferro entre a esfera militar e a esfera política, com vantagem para esta última. Bem analisado, parece constituir um saudável aviso à navegação: são os militares que estão sob a alçada de uma tutela política, e não o contrário.Terá sido a presença de Portas na cerimónia fúnebre de Maggiolo Gouveia e o seu fugaz contraditório relativamente às diatribes da Dra. Ana Gomes? Fraco. Em primeiro lugar, foi o socialista Rui Pena que deu o aval ao acto. Paulo Portas quis estar presente (nada de extraordinário) e, como bom católico, entrou na igreja, seguindo o seu ritual (facto que não tem que envergonhar ninguém). Seria de esperar que as câmaras estivessem lá e, como também é sabido, quem hoje em dia se benza ou beije a cruz é peremptoriamente acusado de «beato» ou «passadista». Sinal dos tempos. É certo que Portas deveria ter resistido à tentação de fingir não comentar, comentando (truque retórico muito próprio dos políticos). Mas a própria Ana Gomes foi bem mais radical nas suas observações. No fundo, provocou e recebeu o troco.Será que podemos associar uma eventual pose autoritária – com o dedinho em riste e o olhar intimidador – a um prenúncio de radicalismo de direita? Frouxo. Ferro Rodrigues também vocifera, de forma muitas vezes teatral. Também estica o dedo e grita. No caso Paulo Pedroso, fez uma triste figura de si mesmo.Terá sido o populismo larvar nas suas intervenções como líder partidário? A avaliar pelo discurso político da generalidade dos lideres partidários, de há uns anos a esta parte, parece-me desleal colocar o acento tónico nesse aspecto, uma vez que todos, intermitentemente, fazem uso do mesmo. Entendamo-nos: nos seus dias mais inspirados, Francisco Louçã não é um populista encartado? E Ferro Rodrigues, quando grita aqueles slogans e comenta os incêndios da forma como o fez no discurso da, não está a ser populista?Será o fatinho às riscas tipo ‘Lord inglês’, a pose snob e o facto de ter pilotado, durante uns meses, um jaguar? Talvez, porque a esquerda vive desses preconceitos. Ainda assim, não me parece que justifique nada.Será o caso Moderna? Não estou a ver que a ligação entre Paulo Portas e um caso de gestão danosa seja, por si só, um sinal de fascismo ou de neo-liberalismo. Uma coisa nada tem a ver com outra. Se Paulo Portas é fascista por estar alegadamente ligado, ainda que de forma relativa, a um caso de peculato, José Luis Judas será o quê? Mussolini?A forma como, do lado da esquerda, certas eminências pardas – com Soares à cabeça – tentam relançar uma espécie de anacrónico conflito entre mundos ideológicos opostos, espelha bem o desespero e o desnorte estratégico de um dos quadrantes da contenda. Num mundo em mutação continua e acelerada, num mundo onde circulam livremente bens, conhecimentos e informação, num mundo onde os conceitos se confundem, as práticas convergem e se estabelecem consensos mais ou menos alargados sobre a inevitabilidade de uma sociedade de génese liberal e capitalista, continua a assistir-se a um certa esquerda presa, acossada, deslocada e incomodada com o mundo - como se essa fosse a única postura consonante com a eterna insatisfação de quem o quer mudar. Para melhor, entenda-se. No fundo, assiste-se a uma constante e romântica inquietação da esquerda face a um mundo que teima em fugir ao ideal de construção por ela preconizado. Facto que a baralha e a leva a perder a cabeça e fazer uso de uma cassete já gasta.Ainda há um ano atrás, em plena Silly Season, o tema predilecto tinha sido as desventuras da Esquerda. Fatal como o destino. De tempos a tempos, os mais dignos representantes da esquerda produzem, no espaço dos jornais, autênticas teses de doutoramento sobre os maravilhosos e exclusivos atributos da Esquerda e o seu futuro, tratando,, de separar as águas. Para esse efeito, as figuras detrabalham que nem formiguinhas na busca de um novo discurso, de uma nova retórica, para que a voz do líder se faça ouvir.Esta boa gente é incapaz de perceber que os eternos chavões da Esquerda, apregoados no mundo de hoje em jeito de aspiração difusa e sem explicação plausível de ordem prática, estão desacreditados. Parecem não querer perceber que os slogans contra a ‘desigualdade’, a ‘pobreza’, a ‘opressão’, os ‘privilégios’ e a favor da ‘justiça social’, deixaram de estar associados a um contexto ou conteúdo político-social. Ou seja, a Esquerda e a Direita competem irremediavelmente no mesmo campo, com discursos e práticas que se confundem – porque a evolução do mundo assim o ditou. Em boa verdade, combater a exclusão ou a pobreza não pertencem hoje, se é que alguma vez pertenceram, ao domínio exclusivo da Esquerda. São questões centrais, pragmáticas, que a realidade empurrou para fora do âmbito do discurso ideológico, e que são objecto da acção de qualquer governo democrático.Estas discussões sobre o papel da Esquerda são, sobretudo, um sintoma sério de como esta se desenquadrou do mundo, levando-a a invocar paradigmas da era da industrialização, com trejeitos de paranóia face às novas tecnologias e à mobilidade de meios humanos e materiais. É precisamente esta falta de ‘encaixe’ que tem sido fatal para a Esquerda. Daí o recurso, em desespero de causa, a novas frentes de combate: o anti-americanismo, a anti-globalização, o anti-(neo)liberalismo e o fundamentalismo ambientalista.Por outro lado, a forma como a Esquerda teima em empurrar presunçosamente os assuntos para a sua área, insistindo na ideia de uma ‘Solução’ e presumindo estar na vanguarda de tudo e todos, vem dar razão a Oakeshott, Camus e Popper, na sua crítica às ideologias. Popper criticou a tentativa de encontrar certezas na história e na produção de previsões a partir de modelos supostamente cientificos, quando isso se baseava num erro de lógica: a ideia de que a história e a evolução das sociedades podem ser transformadas numa ciência. E Oakeshott alertou-nos para o papel do Racionalismo acrítico na política, tão próprio das ideologias.Em Portugal, por força de uma hegemonia cultural de Esquerda, maioritariamente francófona, e ainda com os ecos do antifascismo a fazerem-se ouvir, muito boa gente continua a olhar a Esquerda como a campeã na luta contra os males do mundo – ao contrário da ímpia Direita. Este fim-de-semana ouvia Gerónimo de Sousa, do PCP, e dei comigo a pensar: eu oiço esta cassete há vinte anos. Para estas pessoas não interessa mais nada, a não ser isto: a Esquerda foi e será sempre a solitária, firme e hirta representante dos bons sentimentos e das boas intenções - e bem tramado está quem disser o contrário ou quem ousar «roubar» os nobres fins da “justiça” ou da “coesão” sociais (como se a Esquerda tivesse comprado essa patente). Ora, é precisamente isto que está em causa, no plano prático: são os meios e não os fins que devem ser discutidos. Mas isso é difícil de explicar a quem continua a viver num mundo maniqueísta de “imperialismos” e “subjugados”.Em último recurso de retórica, os arautos da Esquerda insistem no facto de que “ser de Esquerda” se trata, sobretudo, de uma «atitude», de uma «cultura» e de uma «estética». É bom lembrar que este retiro para a área da «estética», e a adopção do que é virtualmente um código privado de neo-marxismo, antecipou e alimentou a evasão pós-modernista da realidade e, por consequência, o desviar do olhar sobre o mundo «real» - cuja complexidade e diversidade baralha e confunde as suas meditações - e a concentrar a reflexão da Esquerda na órbita do seu umbigo.No fundo, a Esquerda vive, hoje, com o recurso a habilidades linguísticas (os «tumores» de Soares, os slogans de Ferro, as demonizações de Ana Gomes, os chavões de Louçã) que lhe permitem continuar a falar, pensar e teorizar sobre questões de interesse prático vago, ignorando a evidência de que, por exemplo, o socialismo está, em todo o lado, num estado de declínio terminal. Não é por acaso que a Esquerda, pelo menos a mais empedernida, tem relutância e até vergonha em reconhecer o contributo do sistema capitalista nas democracias ocidentais, no aumento do nível de vida à escala mundial e na consolidação das liberdades individuais. Basta observar a forma como perverte o tema da Globalização.Por último, observemos como a supostamente esclarecida e vanguardista elite académica europeia e americana, que se alimenta das mordomias capitalistas como a abelha do mel, está impregnada de um Marxismo Rocócó (a expressão é de Tom Wolfe) que mete dó. É a mesma elite académica, aparentemente letrada em filosofia política e história, que nunca leu uma linha de Oakeshott, Berlin, von Mises, Hayek, Schumpeter, Popper, Friedman, Aron ou Strauss, e que se atreve a classificar os livros “Empire” ou “No Logo” como sendo “a primeira grande síntese do novo milénio” e “uma obra de intensidade visionária”. O que, bem vistas as coisas, diz tudo.Seria bom que a Esquerda e os seus acérrimos representantes perdem-se a presunção e a arrogância de pensar que o mundo gira à volta dos seus modelos e que o resto é paisagem. Não é. As conquistas de que hoje as sociedades ocidentais usufruem - ao nível da liberdade individual, da democracia, da liberdade de expressão, da livre associação civil – nasceram da luta do homem «individual» contra o despotismo e tirania de regimes totalitários, quer à esquerda, quer à direita. Já era altura de os esquerdistas mais empedernidos perceberem que existem outras propostas, outras visões válidas, sendo certo que muitas delas se baseiam mais no pragmatismo do que na ideologia – o que, em meu entender, faz a diferença.E seria bom que o seu discurso fosse um discurso sério, não demagógico. Que fosse minimamente rigoroso do ponto de vista da política formal – mesmo que o da direita assim não seja. Que não tentasse criar fantasmas onde eles não existem. E que evitasse o facilitismo dos slogans generalistas. Ao contrário do que se possa pensar, a malta não é assim tão parva.

Recentemente, no show da rentrée, Ferro Rodrigues, sob a batuta do mestre escola Soares, tratou de reabilitar um enviesado grito de guerraZola. “J’Accuse”, gritou Ferro, apontando todo o seu aparato bélico para um grupelho de extremistas, liderados por Paulo Portas. Segundo Ferro, este sinistro grupo tem vindo insistente e insidiosamente a contaminar o governo de Durão Barroso, não só influenciando perniciosamente a política do actual executivo como, desgraça das desgraças, tomando de assalto o seu. Avisa-nos paternalmente Ferro que, esta espécie de organização mafiosa (onde, supõe-se, se incluem os ministros que saíram das fileiras do PP), está interessada em inculcar uma visão passadista, retrógrada, reaccionária e neo-fascista da vida em sociedade e da política em geral. Germina no seio do governo uma semente maligna, da mesma estirpe que deu origem a um Haider e a um Le Pen. Ferro avisa os mais distraídos: o «Paulinho» das feiras não passa de um frio “neo-fascista” e de um irresponsável “neo-liberal”.Não fosse patética e demagógica, a insinuação seria hilariante. No fundo, espelha bem a falta de cultura política dos dirigentes políticos em Portugal. Só uma pessoa demagógica – habituada a olhar as «massas» como um bando de ignorantes que engolem qualquer patranha – ou ignorante – para quem os conceitos são estranhos, estando ao serviços dos slogans - poderá acusar outro seu semelhante de “neo-fascista” e “neo-liberal”, ao mesmo tempo. Que eu saiba, ou se é (neo) fascista, ou se é (neo) liberal. Juntar as duas coisas é um pouco como dizer que fulano tal é um “comunista Nozickiano”.Aparte esse «pequeníssimo» pormenor, a tese de Ferro, dissecada até ao tutano, não colhe. Eu peço ao auditório da blogosfera o seguinte exercício: tentemos recolher os indícios do caracter extremista de Paulo Portas que possam corroborar ou sustentar a suspeita.Terá sido o putativo afrontamento das chefias militares? Não me parece. Noutro tempo e noutro contexto, seria a própria esquerda a aplaudir este aparente braço de ferro entre a esfera militar e a esfera política, com vantagem para esta última. Bem analisado, parece constituir um saudável aviso à navegação: são os militares que estão sob a alçada de uma tutela política, e não o contrário.Terá sido a presença de Portas na cerimónia fúnebre de Maggiolo Gouveia e o seu fugaz contraditório relativamente às diatribes da Dra. Ana Gomes? Fraco. Em primeiro lugar, foi o socialista Rui Pena que deu o aval ao acto. Paulo Portas quis estar presente (nada de extraordinário) e, como bom católico, entrou na igreja, seguindo o seu ritual (facto que não tem que envergonhar ninguém). Seria de esperar que as câmaras estivessem lá e, como também é sabido, quem hoje em dia se benza ou beije a cruz é peremptoriamente acusado de «beato» ou «passadista». Sinal dos tempos. É certo que Portas deveria ter resistido à tentação de fingir não comentar, comentando (truque retórico muito próprio dos políticos). Mas a própria Ana Gomes foi bem mais radical nas suas observações. No fundo, provocou e recebeu o troco.Será que podemos associar uma eventual pose autoritária – com o dedinho em riste e o olhar intimidador – a um prenúncio de radicalismo de direita? Frouxo. Ferro Rodrigues também vocifera, de forma muitas vezes teatral. Também estica o dedo e grita. No caso Paulo Pedroso, fez uma triste figura de si mesmo.Terá sido o populismo larvar nas suas intervenções como líder partidário? A avaliar pelo discurso político da generalidade dos lideres partidários, de há uns anos a esta parte, parece-me desleal colocar o acento tónico nesse aspecto, uma vez que todos, intermitentemente, fazem uso do mesmo. Entendamo-nos: nos seus dias mais inspirados, Francisco Louçã não é um populista encartado? E Ferro Rodrigues, quando grita aqueles slogans e comenta os incêndios da forma como o fez no discurso da, não está a ser populista?Será o fatinho às riscas tipo ‘Lord inglês’, a pose snob e o facto de ter pilotado, durante uns meses, um jaguar? Talvez, porque a esquerda vive desses preconceitos. Ainda assim, não me parece que justifique nada.Será o caso Moderna? Não estou a ver que a ligação entre Paulo Portas e um caso de gestão danosa seja, por si só, um sinal de fascismo ou de neo-liberalismo. Uma coisa nada tem a ver com outra. Se Paulo Portas é fascista por estar alegadamente ligado, ainda que de forma relativa, a um caso de peculato, José Luis Judas será o quê? Mussolini?A forma como, do lado da esquerda, certas eminências pardas – com Soares à cabeça – tentam relançar uma espécie de anacrónico conflito entre mundos ideológicos opostos, espelha bem o desespero e o desnorte estratégico de um dos quadrantes da contenda. Num mundo em mutação continua e acelerada, num mundo onde circulam livremente bens, conhecimentos e informação, num mundo onde os conceitos se confundem, as práticas convergem e se estabelecem consensos mais ou menos alargados sobre a inevitabilidade de uma sociedade de génese liberal e capitalista, continua a assistir-se a um certa esquerda presa, acossada, deslocada e incomodada com o mundo - como se essa fosse a única postura consonante com a eterna insatisfação de quem o quer mudar. Para melhor, entenda-se. No fundo, assiste-se a uma constante e romântica inquietação da esquerda face a um mundo que teima em fugir ao ideal de construção por ela preconizado. Facto que a baralha e a leva a perder a cabeça e fazer uso de uma cassete já gasta.Ainda há um ano atrás, em plena Silly Season, o tema predilecto tinha sido as desventuras da Esquerda. Fatal como o destino. De tempos a tempos, os mais dignos representantes da esquerda produzem, no espaço dos jornais, autênticas teses de doutoramento sobre os maravilhosos e exclusivos atributos da Esquerda e o seu futuro, tratando,, de separar as águas. Para esse efeito, as figuras detrabalham que nem formiguinhas na busca de um novo discurso, de uma nova retórica, para que a voz do líder se faça ouvir.Esta boa gente é incapaz de perceber que os eternos chavões da Esquerda, apregoados no mundo de hoje em jeito de aspiração difusa e sem explicação plausível de ordem prática, estão desacreditados. Parecem não querer perceber que os slogans contra a ‘desigualdade’, a ‘pobreza’, a ‘opressão’, os ‘privilégios’ e a favor da ‘justiça social’, deixaram de estar associados a um contexto ou conteúdo político-social. Ou seja, a Esquerda e a Direita competem irremediavelmente no mesmo campo, com discursos e práticas que se confundem – porque a evolução do mundo assim o ditou. Em boa verdade, combater a exclusão ou a pobreza não pertencem hoje, se é que alguma vez pertenceram, ao domínio exclusivo da Esquerda. São questões centrais, pragmáticas, que a realidade empurrou para fora do âmbito do discurso ideológico, e que são objecto da acção de qualquer governo democrático.Estas discussões sobre o papel da Esquerda são, sobretudo, um sintoma sério de como esta se desenquadrou do mundo, levando-a a invocar paradigmas da era da industrialização, com trejeitos de paranóia face às novas tecnologias e à mobilidade de meios humanos e materiais. É precisamente esta falta de ‘encaixe’ que tem sido fatal para a Esquerda. Daí o recurso, em desespero de causa, a novas frentes de combate: o anti-americanismo, a anti-globalização, o anti-(neo)liberalismo e o fundamentalismo ambientalista.Por outro lado, a forma como a Esquerda teima em empurrar presunçosamente os assuntos para a sua área, insistindo na ideia de uma ‘Solução’ e presumindo estar na vanguarda de tudo e todos, vem dar razão a Oakeshott, Camus e Popper, na sua crítica às ideologias. Popper criticou a tentativa de encontrar certezas na história e na produção de previsões a partir de modelos supostamente cientificos, quando isso se baseava num erro de lógica: a ideia de que a história e a evolução das sociedades podem ser transformadas numa ciência. E Oakeshott alertou-nos para o papel do Racionalismo acrítico na política, tão próprio das ideologias.Em Portugal, por força de uma hegemonia cultural de Esquerda, maioritariamente francófona, e ainda com os ecos do antifascismo a fazerem-se ouvir, muito boa gente continua a olhar a Esquerda como a campeã na luta contra os males do mundo – ao contrário da ímpia Direita. Este fim-de-semana ouvia Gerónimo de Sousa, do PCP, e dei comigo a pensar: eu oiço esta cassete há vinte anos. Para estas pessoas não interessa mais nada, a não ser isto: a Esquerda foi e será sempre a solitária, firme e hirta representante dos bons sentimentos e das boas intenções - e bem tramado está quem disser o contrário ou quem ousar «roubar» os nobres fins da “justiça” ou da “coesão” sociais (como se a Esquerda tivesse comprado essa patente). Ora, é precisamente isto que está em causa, no plano prático: são os meios e não os fins que devem ser discutidos. Mas isso é difícil de explicar a quem continua a viver num mundo maniqueísta de “imperialismos” e “subjugados”.Em último recurso de retórica, os arautos da Esquerda insistem no facto de que “ser de Esquerda” se trata, sobretudo, de uma «atitude», de uma «cultura» e de uma «estética». É bom lembrar que este retiro para a área da «estética», e a adopção do que é virtualmente um código privado de neo-marxismo, antecipou e alimentou a evasão pós-modernista da realidade e, por consequência, o desviar do olhar sobre o mundo «real» - cuja complexidade e diversidade baralha e confunde as suas meditações - e a concentrar a reflexão da Esquerda na órbita do seu umbigo.No fundo, a Esquerda vive, hoje, com o recurso a habilidades linguísticas (os «tumores» de Soares, os slogans de Ferro, as demonizações de Ana Gomes, os chavões de Louçã) que lhe permitem continuar a falar, pensar e teorizar sobre questões de interesse prático vago, ignorando a evidência de que, por exemplo, o socialismo está, em todo o lado, num estado de declínio terminal. Não é por acaso que a Esquerda, pelo menos a mais empedernida, tem relutância e até vergonha em reconhecer o contributo do sistema capitalista nas democracias ocidentais, no aumento do nível de vida à escala mundial e na consolidação das liberdades individuais. Basta observar a forma como perverte o tema da Globalização.Por último, observemos como a supostamente esclarecida e vanguardista elite académica europeia e americana, que se alimenta das mordomias capitalistas como a abelha do mel, está impregnada de um Marxismo Rocócó (a expressão é de Tom Wolfe) que mete dó. É a mesma elite académica, aparentemente letrada em filosofia política e história, que nunca leu uma linha de Oakeshott, Berlin, von Mises, Hayek, Schumpeter, Popper, Friedman, Aron ou Strauss, e que se atreve a classificar os livros “Empire” ou “No Logo” como sendo “a primeira grande síntese do novo milénio” e “uma obra de intensidade visionária”. O que, bem vistas as coisas, diz tudo.Seria bom que a Esquerda e os seus acérrimos representantes perdem-se a presunção e a arrogância de pensar que o mundo gira à volta dos seus modelos e que o resto é paisagem. Não é. As conquistas de que hoje as sociedades ocidentais usufruem - ao nível da liberdade individual, da democracia, da liberdade de expressão, da livre associação civil – nasceram da luta do homem «individual» contra o despotismo e tirania de regimes totalitários, quer à esquerda, quer à direita. Já era altura de os esquerdistas mais empedernidos perceberem que existem outras propostas, outras visões válidas, sendo certo que muitas delas se baseiam mais no pragmatismo do que na ideologia – o que, em meu entender, faz a diferença.E seria bom que o seu discurso fosse um discurso sério, não demagógico. Que fosse minimamente rigoroso do ponto de vista da política formal – mesmo que o da direita assim não seja. Que não tentasse criar fantasmas onde eles não existem. E que evitasse o facilitismo dos slogans generalistas. Ao contrário do que se possa pensar, a malta não é assim tão parva.

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