Ao político há que ouvi-lo

29-02-2008
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Ao político há que ouvi-lo

«Quantos não perguntarão se estiveram a falar para o boneco. Mas tu não.»

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Lisboa, 21/7/2003

Meu caro Eduardo Ferro Rodrigues

Meu caro Ferro, chegou a hora de te dizer, frontalmente, que não sei de que te queixas! Palavra de honra! Às vezes dou comigo a pensar que até parece que não foste tu que escolheste a carreira que ora trilhas com tanto sucesso e determinação. Não terás sido? Terás tu sido empurrado? Não posso ter a certeza, tanto mais que eu nunca te empurraria nem vejo alguém tão insano que se desse ao trabalho de o fazer. Mas, confesso-te, por vezes sinto que te sentes mal nesse papel.

Acaso se queixou Shakespeare de que o aplaudiam demasiado? Acaso protestou Liszt pelo facto de as donzelas desmaiarem ao som do seu virtuosismo? Terá Verdi argumentado que as suas óperas eram demasiado ouvidas? Orgulhar-se-ia Joyce de pouca gente o compreender e comprar o seu livro? Quero crer que não, meu caro Ferro. Diz o bom senso que, pelo contrário, a todos esses vultos da nossa cultura não lhes passaria pela cabeça queixarem-se do sucesso ou orgulharem-se da sua falta. Pelo contrário!

Por que hás-de tu fazer diferente?

Recapitulemos, pois, meu caro Ferro. Ao que tudo indica foste para a política por gosto e chegaste a líder do PS porque quiseste.

Ora, o que deve pretender um político? Que o temam? Não, isso seria próprio de políticos de outro quadrante, que não o teu.

Que o assobiem e lhe atirem talos de couve quando, por acaso, com ele se cruzam na rua? Que o enxovalhem? Que lhe manifestem desprezo? Que - talvez o pior dos insultos - nem sequer o reconheçam quando por ele passam?

Pensa, meu caro Ferro, pensa e verás que a resposta é supina e desconcertantemente simples e límpida.

O político, acima de tudo, almeja que o ouçam! Que escutem o que ele diz. Olha de que se queixa o Durão - que não o ouvem, que ele bem avisou! Vê o que diz o Portas - que não escutam, porque ele já sabia! O que diz o Carvalhas, que nem já nós sabemos porque já nem nós o ouvimos...

Pois tu, que és talvez o político mais escutado do mundo, daqueles que além de profusamente ouvido tem cada palavra, cada frase sem importância, devidamente gravada, transcrita e registada, queixas-te!

É boa!

Nunca, até hoje, um político se tinha queixado de ter sido demasiado ouvido! Nunca, até hoje, um político se queixara por lhe registarem todas as frases para uma posteridade imorredoira.

Para mim, o único mistério consista no facto de ainda haver quem te queira ouvir.

Meu caro Ferro, arrebita. Vê como há no país quem ainda tenha ânsia de saber o que dizes, e até o que pensas! Quantos políticos poderão orgulhar-se do mesmo? Quantos, na solidão do seu lar, não perguntarão a si mesmos se estiveram a falar para o boneco? Mas tu não, Ferro, tu não!

comendador@mail.expresso.pt

Ao político há que ouvi-lo

«Quantos não perguntarão se estiveram a falar para o boneco. Mas tu não.»

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Lisboa, 21/7/2003

Meu caro Eduardo Ferro Rodrigues

Meu caro Ferro, chegou a hora de te dizer, frontalmente, que não sei de que te queixas! Palavra de honra! Às vezes dou comigo a pensar que até parece que não foste tu que escolheste a carreira que ora trilhas com tanto sucesso e determinação. Não terás sido? Terás tu sido empurrado? Não posso ter a certeza, tanto mais que eu nunca te empurraria nem vejo alguém tão insano que se desse ao trabalho de o fazer. Mas, confesso-te, por vezes sinto que te sentes mal nesse papel.

Acaso se queixou Shakespeare de que o aplaudiam demasiado? Acaso protestou Liszt pelo facto de as donzelas desmaiarem ao som do seu virtuosismo? Terá Verdi argumentado que as suas óperas eram demasiado ouvidas? Orgulhar-se-ia Joyce de pouca gente o compreender e comprar o seu livro? Quero crer que não, meu caro Ferro. Diz o bom senso que, pelo contrário, a todos esses vultos da nossa cultura não lhes passaria pela cabeça queixarem-se do sucesso ou orgulharem-se da sua falta. Pelo contrário!

Por que hás-de tu fazer diferente?

Recapitulemos, pois, meu caro Ferro. Ao que tudo indica foste para a política por gosto e chegaste a líder do PS porque quiseste.

Ora, o que deve pretender um político? Que o temam? Não, isso seria próprio de políticos de outro quadrante, que não o teu.

Que o assobiem e lhe atirem talos de couve quando, por acaso, com ele se cruzam na rua? Que o enxovalhem? Que lhe manifestem desprezo? Que - talvez o pior dos insultos - nem sequer o reconheçam quando por ele passam?

Pensa, meu caro Ferro, pensa e verás que a resposta é supina e desconcertantemente simples e límpida.

O político, acima de tudo, almeja que o ouçam! Que escutem o que ele diz. Olha de que se queixa o Durão - que não o ouvem, que ele bem avisou! Vê o que diz o Portas - que não escutam, porque ele já sabia! O que diz o Carvalhas, que nem já nós sabemos porque já nem nós o ouvimos...

Pois tu, que és talvez o político mais escutado do mundo, daqueles que além de profusamente ouvido tem cada palavra, cada frase sem importância, devidamente gravada, transcrita e registada, queixas-te!

É boa!

Nunca, até hoje, um político se tinha queixado de ter sido demasiado ouvido! Nunca, até hoje, um político se queixara por lhe registarem todas as frases para uma posteridade imorredoira.

Para mim, o único mistério consista no facto de ainda haver quem te queira ouvir.

Meu caro Ferro, arrebita. Vê como há no país quem ainda tenha ânsia de saber o que dizes, e até o que pensas! Quantos políticos poderão orgulhar-se do mesmo? Quantos, na solidão do seu lar, não perguntarão a si mesmos se estiveram a falar para o boneco? Mas tu não, Ferro, tu não!

comendador@mail.expresso.pt

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