Luís Graça & Camaradas da Guiné: Guiné 63/74

30-06-2009
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VII parte do dossiê O massacre do chão manjaco > Ideia, pesquisa, compilação e edição de Afonso M. F. Sousa , ex-furriel miliciano de transmissões da CART 2412 (Bigene, Binta, Guidage e Barro, 1968/70) (1).Extractos da primeira entrevista que António dos Santos Ramalho Eanes concedeu - ao jornalista José Pedro Castanheira, do Expresso - depois de se doutorar, em Novembro passado, pela Universidade de Navarra. Hoje, com 72 anos, o ex-presidente da República, general e agora doutor, fala da Guiné e dos trágicos acontecimentos do dia 20 de Abril de 1970... Tomamos a liberdade de divulgar alguns extractos dessa longa conversa (Ramalho Eanes: "Os políticos desprezam os militares"), para conhecimento dos Amigos & Camaradas da Guiné.Fonte: Expresso, 27 de Janeiro de 2007 (com a devida vénia...)(...) Em 1970 vai para a Guiné. É uma quarta experiência.É realmente uma situação totalmente diferente, porque a colonização na Guiné não foi feita pelos portugueses - foi pelos cabo-verdianos. Era muito estranho que, sendo a colonização feita pelos cabo-verdianos, fossem estes os líderes políticos da guerrilha.Esteve em combate?Nunca estive propriamente numa unidade combatente. Estive em situações de combate várias vezes, acompanhando operações. Fui a convite de Spínola e fiquei na 5ª Repartição, no Departamento de Radiodifusão e Imprensa, que tinha a seu cargo, para simplificar, a propaganda e contra-propaganda. O que implicava, por vezes, a reportagem na própria acção militar, mas a minha missão não era combater. Depois, fui para Teixeira Pinto substituir o major Passos Ramos - um dos três majores assassinados pelo PAIGC. Spínola tinha tentado uma aproximação com o PAIGC militar. Os três majores envolvidos acabaram por ser mortos, naquela que seria a reunião decisiva.Esse episódio podia ter mudado o rumo da guerra?Acho que não. O que podia ter mudado era o entendimento de Spínola com o PAIGC, que chegou a esboçar-se através de Senghor - mas que Marcelo Caetano não sancionou.Foi um assassínio a sangue frio?Sim, sim. Na tradição da Guiné e daquela área dos manjacos. A unidade que assassinou os majores e os condutores das viaturas que os transportavam era comandada por André Pedro Gomes.Alguma vez se cruzou com ele?Não. Quando visitei a Guiné pela primeira vez, falaram-me dele, mas eu disse que não o queria ver. Se calhar sem razão, mas ainda hoje sinto uma certa repulsa pela sua atitude.Foi um golpe à traição. Uma traição. A guerra, hoje, não tem regras. A prova é a chamada justiça dos vencedores.Mas sempre houve!Nem sempre. Houve uma deriva que se manifesta, de maneira indiscutível, depois da II Guerra Mundial. Até aí, havia um certo respeito pelas regras e pela honra dos vencidos. Há aquele célebre quadro de Velázquez, "A Rendição de Breda", extremamente interessante: o vencedor, quando recebe a chave da cidade, faz uma vénia ao vencido.Mas essa era uma guerra de cavalheiros.Quando a guerra começa a ser total, deixa de ser de cavalheiros. Na II Guerra Mundial, o nazismo cometeu crimes hediondos, que não podem ter justificação nem atenuante. Mas os aliados também cometeram crimes: os bombardeamentos de Dresden e os bombardeamentos atómicos, por exemplo, não visaram objectivos militares. A guerra total visa a destruição do "inimigo", no qual se englobam o seu aparelho militar e a sua população.Os portugueses também cometeram os seus vandalismos.Não digo que não. A guerra é, por força da sua natureza, uma situação de excessos, em que o homem revela aquilo que tem de melhor e de pior. Isso muitas vezes nem depende propriamente de um comando incorrecto, mas de um medo incontrolável. O homem quando tem medo e quer sobreviver é capaz de tudo. Incluindo actos que são perfeitamente inaceitáveis. E nós, tal como o adversário - e não só na Guiné -, também tivemos actos reprováveis e condenáveis. (...)


VII parte do dossiê O massacre do chão manjaco > Ideia, pesquisa, compilação e edição de Afonso M. F. Sousa , ex-furriel miliciano de transmissões da CART 2412 (Bigene, Binta, Guidage e Barro, 1968/70) (1).Extractos da primeira entrevista que António dos Santos Ramalho Eanes concedeu - ao jornalista José Pedro Castanheira, do Expresso - depois de se doutorar, em Novembro passado, pela Universidade de Navarra. Hoje, com 72 anos, o ex-presidente da República, general e agora doutor, fala da Guiné e dos trágicos acontecimentos do dia 20 de Abril de 1970... Tomamos a liberdade de divulgar alguns extractos dessa longa conversa (Ramalho Eanes: "Os políticos desprezam os militares"), para conhecimento dos Amigos & Camaradas da Guiné.Fonte: Expresso, 27 de Janeiro de 2007 (com a devida vénia...)(...) Em 1970 vai para a Guiné. É uma quarta experiência.É realmente uma situação totalmente diferente, porque a colonização na Guiné não foi feita pelos portugueses - foi pelos cabo-verdianos. Era muito estranho que, sendo a colonização feita pelos cabo-verdianos, fossem estes os líderes políticos da guerrilha.Esteve em combate?Nunca estive propriamente numa unidade combatente. Estive em situações de combate várias vezes, acompanhando operações. Fui a convite de Spínola e fiquei na 5ª Repartição, no Departamento de Radiodifusão e Imprensa, que tinha a seu cargo, para simplificar, a propaganda e contra-propaganda. O que implicava, por vezes, a reportagem na própria acção militar, mas a minha missão não era combater. Depois, fui para Teixeira Pinto substituir o major Passos Ramos - um dos três majores assassinados pelo PAIGC. Spínola tinha tentado uma aproximação com o PAIGC militar. Os três majores envolvidos acabaram por ser mortos, naquela que seria a reunião decisiva.Esse episódio podia ter mudado o rumo da guerra?Acho que não. O que podia ter mudado era o entendimento de Spínola com o PAIGC, que chegou a esboçar-se através de Senghor - mas que Marcelo Caetano não sancionou.Foi um assassínio a sangue frio?Sim, sim. Na tradição da Guiné e daquela área dos manjacos. A unidade que assassinou os majores e os condutores das viaturas que os transportavam era comandada por André Pedro Gomes.Alguma vez se cruzou com ele?Não. Quando visitei a Guiné pela primeira vez, falaram-me dele, mas eu disse que não o queria ver. Se calhar sem razão, mas ainda hoje sinto uma certa repulsa pela sua atitude.Foi um golpe à traição. Uma traição. A guerra, hoje, não tem regras. A prova é a chamada justiça dos vencedores.Mas sempre houve!Nem sempre. Houve uma deriva que se manifesta, de maneira indiscutível, depois da II Guerra Mundial. Até aí, havia um certo respeito pelas regras e pela honra dos vencidos. Há aquele célebre quadro de Velázquez, "A Rendição de Breda", extremamente interessante: o vencedor, quando recebe a chave da cidade, faz uma vénia ao vencido.Mas essa era uma guerra de cavalheiros.Quando a guerra começa a ser total, deixa de ser de cavalheiros. Na II Guerra Mundial, o nazismo cometeu crimes hediondos, que não podem ter justificação nem atenuante. Mas os aliados também cometeram crimes: os bombardeamentos de Dresden e os bombardeamentos atómicos, por exemplo, não visaram objectivos militares. A guerra total visa a destruição do "inimigo", no qual se englobam o seu aparelho militar e a sua população.Os portugueses também cometeram os seus vandalismos.Não digo que não. A guerra é, por força da sua natureza, uma situação de excessos, em que o homem revela aquilo que tem de melhor e de pior. Isso muitas vezes nem depende propriamente de um comando incorrecto, mas de um medo incontrolável. O homem quando tem medo e quer sobreviver é capaz de tudo. Incluindo actos que são perfeitamente inaceitáveis. E nós, tal como o adversário - e não só na Guiné -, também tivemos actos reprováveis e condenáveis. (...)

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