Não Esperem Nada De Mim: RUBRICAS ANTIGAS (republicação)

23-03-2005
marcar artigo


LEITURAS(03 de Maio)"Quase Gosto da Vida Que Tenho". De Pedro Paixão. Contos. Quetzal. – Já o compararam a Ravel, autor de Bolero, e de facto há algo de sensualmente repetitivo ao longo da sua obra. Depois de uma série de livros de enorme êxito, cujos títulos entraram para a linguagem corrente quase como provérbios (Viver Todos os Dias Cansa) ou frases feitas (Nos Teus Braços Morreríamos ou Cala a Minha Boca com a Tua), Pedro Paixão muda de editora mas mantém o registo. Em Quase Gosto da Vida Que Tenho, publicado agora pela Quetzal, reúne 36 pequenos textos que podiam muito bem ter sido reunidos em Amor Portátil, A Noiva Judia ou Vida de Adulto. E é daí, na verdade, que vem grande parte do fascínio do autor.Pedro Paixão é um dos últimos artistas – um dos derradeiros escritores portugueses a insistirem nos mesmos temas e no mesmo estilo com que começaram, recusando fazer mais concessões do que aquelas que fizeram quando começaram e resistindo às mesmas pressões que lhes apareceram quando começaram. Com o tempo perdeu parte da sedução que durante os anos 90 exercia sobre as jovens à procura de um príncipe encantado, mas ganhou o respeito de muitos dos seus pares. E hoje é um autor a que é difícil ficar-se indiferente – tem um projecto literário próprio, o que não é dizer pouco.Escritos em três cidades diferentes (Lisboa, Jerusalém e Nova Iorque), os fragmentos de Quase Gosto da Vida Que Tenho misturam imagens de grande arrebatamento com pequenos registos do quotidiano, obsessões maiores-do-que-a-vida com receios de trazer por casa. «São estilhaços de um mundo em fogo», como diz o próprio autor – e são sobretudo momentos de todo o tipo, experimentados numa existência pessoal que se mistura com a arte ao ponto de, muitas vezes, as duas parecerem uma só. Os responsáveis da Quetzal, que roubaram Pedro Paixão à Cotovia, dizem-se «muito contentes» por o terem no catálogo. E têm razão para isso – falta ver se podem repetir-se os best sellers do passado.LEITURAS (03 de Maio)"Mala de Senhora e Outras Histórias". De Clara Ferreira Alves. Contos. Publicações Dom Quixote. – Talvez seja um cliché dizê-lo, mas é absolutamente verdade: o conto é uma arte maior. E é perante o anunciado declínio da tradição da short story que Clara Ferreira Alves, uma das mais ecléticas autoras e certamente uma das mais atentas leitoras do universo literário português, colige em Mala de Senhora e Outras Histórias uma série de textos inéditos ou publicados no Expresso, na Egoísta e na Tabacaria. Está lá tudo o que é generalista no melhor conto (a técnica precisa, o ritmo coerente, a narração fulminante) com o que há de específico no melhor conto de uma autora cosmopolita do século XXI. Chamam-lhe realismo urbano total, e com isso pretendem denegri-lo. Vá lá perceber-se porquê.LEITURAS (27 de Abril)"Lembro-me que..." De Ferreira Fernandes. Memórias. Oficina do Livro. – É um dos autores que Crónica Jornalística – Século XX preteriu. Para assinalar o 30º aniversário da Revolução, Ferreira Fernandes vai buscar um método a George Perec (Je me Souviens) – que por sua vez se inspirara em Joe Brainard (I Remember) – e escreve 327 textos telegráficos que, juntos, retratam os últimos quatro meses (1 de Janeiro-25 de Abril de 1974) do regime salazarista. Não são aforismos: são pequenos retratos dispersos. Também não é a história do nascimento de uma democracia: é uma sucessão de histórias de uma ditadura que não se apercebera da sua própria agonia. Jornalista, Ferreira Fernandes combina os quatro factores presentes nos maiores cronistas: o género humano como matéria-prima, a actualidade como referência, a memória como ferramenta e a intertexualidade como receita. É um autor de todos os tempos, na verdade. «Eu lembro-me que no ano anterior, 1973, Angola foi o segundo "país" (o primeiro foi Singapura) a dar o maior salto económico, de um ano para o outro, desde o fim da Segunda Guerra Mundial», recorda um dos textos.LEITURAS (27 de Abril)"Crónica Jornalística - Século XX". De Fernando Venâncio. Antologia de crónicas. Círcuo de Leitores. – O problema das antologias – de todas as antologias – nem sempre é o que se inclui: é muitas vezes o que se deixa de fora. A Crónica Jornalística – Século XX (Círculo de Leitores), do ensaísta e ficcionista Fernando Venâncio, podia por isso fazer-se várias críticas, entre os quais a das ausências de António Barreto, Victor Cunha Rego, Vicente Jorge Silva, João César das Neves ou José Manuel Fernandes. Mais: faltam lá Carlos Pinhão (o genial colunista desportivo), Fernando Alves (único na crónica radiofónica contemporânea), José Eduardo Agualusa (uma referência para a nova geração) e, sobretudo, Ferreira Fernandes (talvez o mais claro, coerente e regular cronista português da actualidade). Mas uma antologia, como o próprio autor assume no prefácio, é isso mesmo: uma selecção subjectiva e limitada – limitada pelos conhecimentos do(s) antologiador(es), limitada pelos prazos de execução da recolha, limitada pelo número de textos previstos e limitada, mesmo, pela disponibilidade dos autores escolhidos (Lobo Antunes recusou entrar neste livro, por exemplo,). O essencial é, por isso, haver critério. E, porque tem critérios (um retrato transversal do séxulo XX português, a inclusão de exemplos de todos os tipos de crónica, a escolha de um texto «representativo» de cada autor), Crónica Jornalística resulta numa importante ferramenta para compreender o género que, como diz Venâncio, «traz para o jornal e para a revista uma qualidade, a de prosa excelentemente cuidada, que nenhum outro sector, neles, atinge» (a excepção será, quando muito, a boa reportagem). Política, literatura, acasos do quotidiano, crítica de costumes – tudo se encontra neste volume. Porque, como diz Manuel António Pina numa epígrafe, «as coisas (a barriga, as unhas, a crónica) servem para usos que escapam a grandes reflexões e o que são furta-se sempre àquilo que se sabe delas». Ao todo são cem crónicas, publicadas em 25 jornais, 16 revistas, duas rádios e um site. Como bónus há um extraordinário texto de Mário Castrim, publicado no Diário de Lisboa nos anos 80, que o antologiador inclui no prefácio. E, para os que aproveitam a quadra para reflectir sobre a História recente de Portugal, lá está incluído um texto exemplar de António José Saraiva («O 25 de Abril e a História»), que aos revolucionários chama «um bando de lebres espantadas».BOM DIA A TODO O AUDITÓRIO (27 de Abril)Televisões – Cabeleireiros ao serviço do público, tendas para a recepção dos convidados vip, aspectos da vida privada dos jogadores. A cobertura mediática do Estoril Open atingiu este ano uma dimensão risível (para dizer o menos), com lampejos de nonsense no que diz respeito às televisões. O ténis propriamente dito – medíocre, aliás – foi o menos importante. João Lagos há-de pensar que se tratou de uma excelente propaganda para a modalidade. Mas, do ponto de vista jornalístico, a única coisa mais imbecil tem sido a insistência dos diversos canais nas notícias-catástrofe sobre cidadãos que morrem de ataque cardíaco a fazer desporto.CHECK YOUR SMILE (27 de Abril)Figueiredo Lopes – José Luiz Zapatero não podia ter feito outra coisa. Os espanhóis elegeram-no com o pressuposto da retirada dos militares do Iraque, e a partir daí nem o bom senso podia valer-lhe: havia que retirar. No pólo oposto, o reconhecimento do regresso dos soldados portugueses como uma «hipótese académica», feito pelo ministro da Administração Interna, foi um momento de fragilidade – que, ainda por cima, dá do Governo uma imagem de seguidismo em relação a Madrid. Valeram as explicações de Durão Barroso.CHECK YOUR SMILE (19 de Abril)Hamid Karzai – Propor uma jihad contra à droga, mesmo tendo em conta o flagelo que o ópio e a heroína se tornaram no Afeganistão, é mais do que politicamente incorrecto: é civilizacionalmente estúpido. Bem vistas as coisas, o presidente afegão não fez melhor do que Bush quando este usou a palavra «cruzada» para anunciar o combate ao terrorismo – ou do que Churchill teria feito se um dia houvesse pedido a Hitler que, caso ele pretendesse mesmo um genocídio, então que o aplicasse às SS. Até porque o derradeiro argumento de Karzai foi religioso: «A droga e as papoilas (…) são contra a nossa religião.» Muito perigoso.LEITURAS (19 de Abril)"À Mesa com a Nossa Selecção". De Hélio Lourenço e Luís Lavrador. Livro de receitas. Bertrand Editora. – Comer um peito de pato com Luís Figo, dividir um cabrito assado com Rui Costa ou acompanhar Pauleta num bife de vitela açoriana. Os próximos meses prometem ser aborrecidos: a publicidade continuará a centrar-se no futebol, os noticiários dedicarão cada vez mais espaço ao Euro 2004 e as glorificações nacionais invadirão cada conversa de café. Tudo o que se pode pedir é que nos surpreendam o menos mal que conseguirem, e a verdade é que colocar um pouco de imaginação nas diferentes abordagens a este autêntico frenesi pode ser um caminho. Viajar pela selecção nacional de futebol através dos pratos habitualmente cozinhados para os jogadores é isso: um mal menor. É pena as gralhas e a inutilidade de algumas notas de rodapé. A comida até parece boa, na verdade. E quem disse que futebolista só comia pizza e hamburguer?LEITURAS (19 de Abril)"O Belo Adormecido". De Lídia Jorge. Contos. Publicações Dom Quixote. – Parece táctica: depois da vitória no Grande Prémio Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores com O Vento Assobiando nas Gruas, Lídia Jorge aposta nos contos e, com isso, baixa as sempre constrangedoras expectativas geradas em torno do primeiro-livro-depois-da-consagração. Mas não é isso – ou não é só isso. O Belo Adormecido, reunião de três contos inéditos e três contos anteriormente publicados em revistas e/ou jornais, enferma de um defeito transversal a todos os livros do género: tem algumas histórias melhores e outras piores. Mas o pior, em Lídia Jorge, é mesmo assim acima da média – e com isso a autora algarvia oferece um contributo bastante positivo a essa tão injustamente negligenciada arte da short story. Sob o epíteto «seis contos sobre o desejo», O Belo Adormecido divide-se em duas histórias de amor, uma história de conquista, uma história de caça, uma história de fanatismo religioso e uma história sobre a descoberta do próximo. É o que dizem os folhetos de promoção – na verdade Lídia Jorge não exclui o amor, a conquista, a caça, o fanatismo ou a descoberta de nenhuma das suas histórias, e é de diferentes combinações de todos esses factores que resulta cada um dos contos deste livro. Não é apenas a paisagem urbana o que une todas estas personagens: é a angústia de todas em relação a si próprias e ao que as rodeia – em relação à vida. Diz-se em Leão Velho: «Este é um conto para ser lido numa tarde de Verão, quando as sombras ainda mal gatinham pelo pavimento do pátio, e o coração se desprende do interior da carne, dirige-se para lá do horizonte, e ao regressar, o coração, ele mesmo, volta em seu estado puro e selvagem trazendo consigo a síntese de todas as coisas.» É um bom conselho. Mas há corações que já o experimentaram noutras estações – vá por nós. E, pelo sim, pelo não, leia-o já nesta Primavera.CHECK YOUR SMILE (12 de Abril)Poder perpétuo – O universo associativo do FC Porto continua sem encontrar um candidato disposto a enfrentar Pinto da Costa nas urnas. A oposição existe, as discórdias são públicas, as críticas acontece – mas quando toca a eleições não aparece ninguém. É como se estivessem todos à espera da abdicação de um vice-rei. E isso não é bom para ninguém – nem sequer para o próprio Pinto da Costa.CHECK YOUR SMILE (12 de Abril)Mea culpa – Vão longe os tempos em que Colin Powell parecia uma reserva de solidez na administração Bush. Meses depois de a existência de armas de destruição maciça no Iraque ter sido afastada, o secretário de Estado americano admite que as bases do seu mais polémico discurso na ONU «não eram sólidas», mas passou as culpas para cima de terceiros. «Eu não sou a comunidade de espionagem», disse, rechaçando responsabilidades no processo que o levou às Nações Unidas, em 2003, para defender a extinção do regime de Saddam. Se os serviços secretos que o informam não mereciam a sua confiança, Powell devia demitir-se. Se o mereciam e foi ele quem cometeu um erro de tal magnitude – então Powell devia «mesmo» demitir-se. E isso não tem nada a ver com as opiniões sobre se a vida dos iraquianos está melhor hoje em dia.CHECK YOUR SMILE (12 de Abril)Amigos, amigos – Foi Durão Barroso quem ajudou os portugueses a perceber porque é que os responsáveis da Echelon pegaram em gorilas e foram às instalações da Valentim de Carvalho, em Paço D’Arcos confiscar material. Em viagem a Moçambique, o primeiro-ministro anunciou com pompa e orgulho o pagamento à Televisão de Moçambique de uma dívida da RTP que remontava a 1997. Atenção: com pompa, com orgulho e exigindo cobertura mediática. Porque é assim que os portugueses pagam as suas dívidas – como um favor que se faz ao credor.<BOM DIA A TODO O AUDITÓRIO (12 de Abril)Dinamite – «Estejam atentos aos vossos vizinhos, colegas e amigos.» Preocupada com a ameaça de atentados, a esquadra anti-terrorismo da Grã-Btretanha lança a campanha Life Savers, em que desafia os ingleses a denunciarem qualquer comportamento suspeito dos concidadãos. É pior do que as praças públicas televisivas, os fóruns radiofónios ou os inquéritos vox populi dos jornais: não tarda estamos a denunciar o vizinho da mercearia porque ele anda a preparar um «atentado terrorista» com a mulher do dono da loja de fazendas.LEITURAS (12 de Abril)Lisbon Killer – uma de cada vez. Policial. De Rui Araújo. (Oficina do Livro). – Está bem, percorre muitos dos clichés do género: o investigador e o seu parceiro, a linguagem amarga a la Robert Mitchum, o poker como metáfora, a esposa falecida, a amante, a jornalista, os gémeos. Mas, porque se baseia numa história verídica – passada em Lisboa e investigada pela Polícia Judiciária, cujos inspectores o autor acompanhou no terreno –, resulta também num manual sobre as polícias portuguesas e a sua actuação. Está lá tudo: o desdém da PJ em relação à PSP, o calão utilizado na investigação, os processos de um interrogatório – tudo acompanhado com notas de rodapé, como se de um ensaio (ou de uma reportagem) se tratasse. Rui Araújo, jornalista multipremiado e autor de À Queima-Roupa (edição Terramar), parte de um homicídio em Pedrouços para mergulhar no universo da criminalidade do sexo lisboeta. Cita Horácio e Jorge de Sena, «ensina» a escrever um auto de inquirição e leva-nos numa curta viagem aos nomes dos crimonosos míticos da capital. Interessante.LEITURAS (12 de Abril)Nova História Militar de Portugal (Volume 2). História. De vários (direcção de Manuel Themudo Barata e Nuno Severiano Teixeira). Círculo de Leitores. – O desafio é uma abordagem diferente a temas diferentes, e só isso – sobretudo quando feito sob a direcção de historiadores respeitados em todos os quadrantes, como é o caso – já era suficiente para dar-lhe um lugar em qualquer biblioteca. Mas a Nova História Militar de Portugal, cujo segundo volume chega agora ao mercado, não se fica pelo repto inicial: articula rigor científico com sensibilidade humana, combina métodos pormenorizados de investigação com enquadramento socio-cultural – e resulta, tudo somado, numa obra obrigatória. Numa tentativa de não projectar conceitos actuais sobre o passado, os autores recuperam termos como os de «guerra justa» ou «vossa mercê», analisam conceitos datados de disciplina hierárquica e chegam à conclusão, no fundo, de que,tal como o país não foi sempre o mesmo, também a ideia portuguesa de conflito também foi mudando. O ponto de vista é o conceito de «revolução militar», lançado em 1956 por Michael Roberts e hoje mais actual do que nunca. Com uma grande preocupação na contextualização sociológica da História, os autores debruçam-se sobre o desenvolvimento tecnológico, as deontologias vigentes, as referências geográficas e políticas e a situação económica (e, portanto, às fontes de financiamento) que preside a cada época. São centenas de fontes combinadas, a que acresce uma pormenorizada cronologia militar sobre mais de três séculos de História de Portugal (1476 a 1821), uma criteriosa selecção de imagens e um especial cuidado na elaboração da bibliografia e dos índices. A edição distribuída aos sócios do Círculo de Leitores vem acompanhada de uma reprodução em porcelana de uma belíssima tapeçaria de D. João de Castro (1550) dedicada cortejo triunfal em Goa. Parece de somenos, mas não é: enquanto esta peça é gratuita, as restantes quatro da série custam quase 25 euros cada uma. Para quem não chegue o brinde, porém, chegará talvez o currículo dos directores e do coordenador: Manuel Themudo Barata, general e antigo Governador de Cabinda; Nuno Severiano Teixeira, doutor em História e Civilização e ex-ministro dos Negócios Estrangeiros, e António Manuel Hspanha, historiador e ex-comissário-geral da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses.LEITURAS (12 de Abril)O Livro das Conversões. De Clara Pinto Correia (texto) e João Francisco Vilhena (fotografia). Álbum. Círculo de Leitores. – Uma viagem pela fé através das histórias de dois bispos (São Nicolau de Bari e Santo Agostinho), dois mártires (Santa Blandina e Beato Ramom Llul), uma virgem (Santa Genoveva), uma pecadora (Santa Maria Egipsíaca) e um herege (Cosmas Indicopleustes). O texto de Clara Pinto Correia coloca os mitos a par da humanidade, e nessa abordagem ambígua de semi-deuses que nunca deixaram de ser homens (ou ao contrário) situam-se também as belíssimas fotografias de João Francisco Vilhena. O prefácio é de Frei Bento Domingues e os modelos são «lisboetas fashion» das mais diversas proveniências artísticas: Lena Aires, Eduardo Marques ou Inês Fonseca Santos, entre outros. Traz um capítulo com «instruções de utilização», onde quase se pede desculpa pelo incómodo: «(…) No limite, estaríamos a pedir-vos não mais que seis minutos e meio de atenção.» Vale-os bem.LEITURAS (12 de Abril)Sete Mares e Treze Rios. De Monica Ali. Romance. Publicações Dom Quixote. – Sete Mares e Treze Rios, primeiro romance de Monica Ali, cresce dentro de nós. Arranca devagar (a caracterização previsível da vida no Bangladesh, a sucessão de lugares-comuns, os aforismos naïve), mas mais tarde perceber-se-á que existe uma razão por detrás disso: Nazneen, a protagonista, é ainda uma pessoa incompleta quando chega a Londres, mas por está ansiosa por crescer – e é com ela que a prosa crescerá, ganhando maturidade e solidez. Então, um mundo inteiro desabrocha ao longo 300 páginas. É um livro sobre tudo e sobre nada – um livro sobre política, sobre a forma como a liberdade de um actua sobre a liberdade de outro, matéria de que é feita a melhor literatura. Saga de uma família oriunda do Bangladesh fazendo pela vida em Inglaterra, centra-se na história de uma mulher (Nazneen) que chega ao Ocidente para consumar um casamento arranjado com um homem gordo e sem expectativas (Chanu) e se apaixona adulteramente por um extremista islâmico disposto a fazer explodir o barril de pólvora em que está transformado o East End londrino (Karim). Do outro lado do mundo, para além de sete mares e treze rios, está a irmã e correspondente da protagonista (Hasina), mulher que casou por amor, se divorciou do marido e se sentiu na necessidade de sobreviver como operária, prostituta e criada. São as cartas trocadas entre as duas mulheres que as revelam como duas faces da mesma moeda – e a mesma sensibilidade que percorre essas cartas acaba por contaminar todo o romance. Nascida em Dhaka em 1967, filha de mãe britânica e pai bengali, Monica Ali emigrou para Inglaterra aos três anos. Viveu no seio de várias comunidades imigrantes, estudou ciência política, filosofia e economia, trabalhou em edição, design e marketing, casou, teve dois filhos – e só então se dedicou à escrita. Sete Mares e Treze Rios, publicado no Verão passado pela Doubleday sob o título Brick Lane (que podia traduzir-se Estrada de Tijolo), foi finalista do Man Booker Prize For Fiction e colocou-a, ainda antes de ser publicado, na lista da Granta dedicada aos vinte melhores jovens autores britânicos.EDITORIAL (2 de Abril)Até já – Tinha 27 posts para escrever, relativos a todo o tipo de assuntos, mas não conseguirei fazê-lo. Vou uns dias para casa, a pretexto de uma convenção e com o fito numa semana de férias. Não se prevêem actualizações a este blog. Levo o meu Prémio Jornalístico Cadbury, que me deu o Miguel do Origem do Amor, e espero ser recebido no palácio presidencial. Depois volto à vidinha. Um abraço.DOS JORNAIS (30 de Março)José Manuel Fernandes – De acordo com o texto de José Manuel Fernandes (JMF): Jacques Chirac é o maior de todos os derrotados das eleições regionais francesas de domingo passado, e na verdade mereceu o castigo devido à «sua imensa habilidade e nenhuns princípios». Mas ainda esta noite corrigi, aqui neste blog, um texto sobre Fernando Santos – dizia-me um amigo que eu parecia acusá-lo de corrupção, quando de facto apenas pretendia acusá-lo de ser influenciável e basicamente fraco –, e tenho dúvidas sobre uma outra coisa que escreve JMF: «[Chirac] Encarna alguns dos piores hábitos do nepotismo à francesa, para não falar da mais crua corrupção.» Ou seja, pergunto-me: se estivesse a falar de um político português, daqueles que lêem o Público todos os dias, JMF podia dizer isto assim?CHECK YOUR SMILE(30 de Março)Tráfico de órgãos – A polícia moçambicana anunciou a detenção de seis indivíduos alegadamente envolvidos no rapto e assassinato de duas pessoas (uma mulher e um bebé), cujos órgãos terão sido extraídos para o exercício de feitiçarias. No mesmo dia, e perante Durão Barroso, Joaquim Chissano garantiu não existirem indícios seguros de tráfico de órgãos humanos em Nampula ou em Moçambique. Passámos a fase em que a tentação era a de dizer que a extracção de órgãos para a feitiçaria não era tráfico. Entrámos na fase da simples mentira deslavada – será porque um dos detidos é dirigente da Renamo?.LEITURAS(30 de Março)«Palestina» (2 volumes). Banda desenhada. De Joe Sacco. Prefácios de Mário Soares e Edward W. Said. (Mundo Fantasma) – Jean-Marie Le Pen também tem uma biografia autorizada em quadradinhos, e por isso não se pode dizer que a BD, sendo geralmente «alternativa», seja própria da esquerda ou da direita, das tendências autoritaristas ou dos manifestos libertários. Joe Sacco não esconde, por isso, a sua origem política e ideológica: no prefácio de Na Faixa de Gaza, o segundo volume deste Palestina, chama aos colonos israelitas «adjuntos armados do exército ocupador», identifica nos territórios árabe-israelitas uma «estrangulação a longo prazo da economia palestiniana por Israel» e coloca aspas em cada uma das extremidades da expressão «processo de paz». Todos os méritos desta obra se situam, portanto, à margem disso. Publicado pela primeira vez em 1995, nos Estados Unidos, Palestina é o resultado de dois meses de viagem a Israel e aos territórios árabes durante o Inverno de 1991-92 – no rescaldo da Guerra do Golfo e antes do Nobel da Paz para Ytzhak Rabin,. Shimon Peres e Yasser Arafat. Acaba de sair em Portugal, com a chancela da Mundo Fantasma e os prefácios de Mário Soares (primeiro volume) e Edward W. Said (segundo), mas entretanto ganhara os mais diversos prémios internacionais, incluindo o extremamente prestigiado American Book Award (1996). Jornalista e cartoonista, Joe Sacco nasceu em Malta mas vive em Portland (estado do Oregon, EUA). Desenhou capas de CD, andou em tournée com bandas rock e foi, pelo meio, depurando um desenho de tom negro, terno quando quer e violento quando sente que a situação o exige. Desde que publicou Palestina, o autor tem sido convidado a colaborar em quase todas as grandes revistas de BD ao redor do mundo, o que já levou a revista Time ou ojornal The New York Times a dedicarem-lhe extensas reportagens. A edição portuguesa da sua obra-prima deixa sobretudo a desejar no campo da tradução, que é medíocre – mas tem lugar cativo em qualquer estante com espaço para a banda desenhada. Um documento.LEITURAS(30 de Março)«Pensamento e Acção Política, Portugal Século XX (1890-1976)». Ensaio histórico. De Fernando Rosas. (Editorial Notícias) – A Monarquia Liberal, o Estado Novo, o PREC – uma viagem a 86 anos de História de Portugal, vistos sob os pontos de vista do crescimento económico e da acentuação das clivagens entre ricos e pobres, entre oligarquias e massas. Fernando Rosas já trabalhou com Joel Serrão, Oliveira Marques e José Mattoso, é director da revista História e tem uma série de obras publicadas sobre o Portugal do século XX, centradas sobretudo no Estado Novo. As suas críticas são, até certo ponto, transversais: as rupturas democráticas faliram sempre, ou abrindo caminho ao fascismo ou desaguando numa modernização efectiva mas tardia. Não é um Portugal feliz, o de Rosas: há ao longo de quase todo o livro uma «grande crise identitária, crise política, ideológica, económico-financeira, social»… CHECK YOUR SMILE (29 de Março)E passa factura? – É mais uma revés para a imagem da classe política: Rui Canas, o principal arguido do megaprocesso de corrupção gerado em torno da Administração Fiscal, tinha como clientes vários cidadãos eleitos na urnas, aos quais tratava das declarações de IRS. A rede, que incluía funcionários do Estado e escritórios de advogados, dedicava-se à magia: fazia «desaparecer» dívidas ao Fisco. Depois dos abusos de poder, das gestões danosas, do nepotismo e da pedofilia, novas acusações rodeiam os políticos portugueses. Terrível.


LEITURAS(03 de Maio)"Quase Gosto da Vida Que Tenho". De Pedro Paixão. Contos. Quetzal. – Já o compararam a Ravel, autor de Bolero, e de facto há algo de sensualmente repetitivo ao longo da sua obra. Depois de uma série de livros de enorme êxito, cujos títulos entraram para a linguagem corrente quase como provérbios (Viver Todos os Dias Cansa) ou frases feitas (Nos Teus Braços Morreríamos ou Cala a Minha Boca com a Tua), Pedro Paixão muda de editora mas mantém o registo. Em Quase Gosto da Vida Que Tenho, publicado agora pela Quetzal, reúne 36 pequenos textos que podiam muito bem ter sido reunidos em Amor Portátil, A Noiva Judia ou Vida de Adulto. E é daí, na verdade, que vem grande parte do fascínio do autor.Pedro Paixão é um dos últimos artistas – um dos derradeiros escritores portugueses a insistirem nos mesmos temas e no mesmo estilo com que começaram, recusando fazer mais concessões do que aquelas que fizeram quando começaram e resistindo às mesmas pressões que lhes apareceram quando começaram. Com o tempo perdeu parte da sedução que durante os anos 90 exercia sobre as jovens à procura de um príncipe encantado, mas ganhou o respeito de muitos dos seus pares. E hoje é um autor a que é difícil ficar-se indiferente – tem um projecto literário próprio, o que não é dizer pouco.Escritos em três cidades diferentes (Lisboa, Jerusalém e Nova Iorque), os fragmentos de Quase Gosto da Vida Que Tenho misturam imagens de grande arrebatamento com pequenos registos do quotidiano, obsessões maiores-do-que-a-vida com receios de trazer por casa. «São estilhaços de um mundo em fogo», como diz o próprio autor – e são sobretudo momentos de todo o tipo, experimentados numa existência pessoal que se mistura com a arte ao ponto de, muitas vezes, as duas parecerem uma só. Os responsáveis da Quetzal, que roubaram Pedro Paixão à Cotovia, dizem-se «muito contentes» por o terem no catálogo. E têm razão para isso – falta ver se podem repetir-se os best sellers do passado.LEITURAS (03 de Maio)"Mala de Senhora e Outras Histórias". De Clara Ferreira Alves. Contos. Publicações Dom Quixote. – Talvez seja um cliché dizê-lo, mas é absolutamente verdade: o conto é uma arte maior. E é perante o anunciado declínio da tradição da short story que Clara Ferreira Alves, uma das mais ecléticas autoras e certamente uma das mais atentas leitoras do universo literário português, colige em Mala de Senhora e Outras Histórias uma série de textos inéditos ou publicados no Expresso, na Egoísta e na Tabacaria. Está lá tudo o que é generalista no melhor conto (a técnica precisa, o ritmo coerente, a narração fulminante) com o que há de específico no melhor conto de uma autora cosmopolita do século XXI. Chamam-lhe realismo urbano total, e com isso pretendem denegri-lo. Vá lá perceber-se porquê.LEITURAS (27 de Abril)"Lembro-me que..." De Ferreira Fernandes. Memórias. Oficina do Livro. – É um dos autores que Crónica Jornalística – Século XX preteriu. Para assinalar o 30º aniversário da Revolução, Ferreira Fernandes vai buscar um método a George Perec (Je me Souviens) – que por sua vez se inspirara em Joe Brainard (I Remember) – e escreve 327 textos telegráficos que, juntos, retratam os últimos quatro meses (1 de Janeiro-25 de Abril de 1974) do regime salazarista. Não são aforismos: são pequenos retratos dispersos. Também não é a história do nascimento de uma democracia: é uma sucessão de histórias de uma ditadura que não se apercebera da sua própria agonia. Jornalista, Ferreira Fernandes combina os quatro factores presentes nos maiores cronistas: o género humano como matéria-prima, a actualidade como referência, a memória como ferramenta e a intertexualidade como receita. É um autor de todos os tempos, na verdade. «Eu lembro-me que no ano anterior, 1973, Angola foi o segundo "país" (o primeiro foi Singapura) a dar o maior salto económico, de um ano para o outro, desde o fim da Segunda Guerra Mundial», recorda um dos textos.LEITURAS (27 de Abril)"Crónica Jornalística - Século XX". De Fernando Venâncio. Antologia de crónicas. Círcuo de Leitores. – O problema das antologias – de todas as antologias – nem sempre é o que se inclui: é muitas vezes o que se deixa de fora. A Crónica Jornalística – Século XX (Círculo de Leitores), do ensaísta e ficcionista Fernando Venâncio, podia por isso fazer-se várias críticas, entre os quais a das ausências de António Barreto, Victor Cunha Rego, Vicente Jorge Silva, João César das Neves ou José Manuel Fernandes. Mais: faltam lá Carlos Pinhão (o genial colunista desportivo), Fernando Alves (único na crónica radiofónica contemporânea), José Eduardo Agualusa (uma referência para a nova geração) e, sobretudo, Ferreira Fernandes (talvez o mais claro, coerente e regular cronista português da actualidade). Mas uma antologia, como o próprio autor assume no prefácio, é isso mesmo: uma selecção subjectiva e limitada – limitada pelos conhecimentos do(s) antologiador(es), limitada pelos prazos de execução da recolha, limitada pelo número de textos previstos e limitada, mesmo, pela disponibilidade dos autores escolhidos (Lobo Antunes recusou entrar neste livro, por exemplo,). O essencial é, por isso, haver critério. E, porque tem critérios (um retrato transversal do séxulo XX português, a inclusão de exemplos de todos os tipos de crónica, a escolha de um texto «representativo» de cada autor), Crónica Jornalística resulta numa importante ferramenta para compreender o género que, como diz Venâncio, «traz para o jornal e para a revista uma qualidade, a de prosa excelentemente cuidada, que nenhum outro sector, neles, atinge» (a excepção será, quando muito, a boa reportagem). Política, literatura, acasos do quotidiano, crítica de costumes – tudo se encontra neste volume. Porque, como diz Manuel António Pina numa epígrafe, «as coisas (a barriga, as unhas, a crónica) servem para usos que escapam a grandes reflexões e o que são furta-se sempre àquilo que se sabe delas». Ao todo são cem crónicas, publicadas em 25 jornais, 16 revistas, duas rádios e um site. Como bónus há um extraordinário texto de Mário Castrim, publicado no Diário de Lisboa nos anos 80, que o antologiador inclui no prefácio. E, para os que aproveitam a quadra para reflectir sobre a História recente de Portugal, lá está incluído um texto exemplar de António José Saraiva («O 25 de Abril e a História»), que aos revolucionários chama «um bando de lebres espantadas».BOM DIA A TODO O AUDITÓRIO (27 de Abril)Televisões – Cabeleireiros ao serviço do público, tendas para a recepção dos convidados vip, aspectos da vida privada dos jogadores. A cobertura mediática do Estoril Open atingiu este ano uma dimensão risível (para dizer o menos), com lampejos de nonsense no que diz respeito às televisões. O ténis propriamente dito – medíocre, aliás – foi o menos importante. João Lagos há-de pensar que se tratou de uma excelente propaganda para a modalidade. Mas, do ponto de vista jornalístico, a única coisa mais imbecil tem sido a insistência dos diversos canais nas notícias-catástrofe sobre cidadãos que morrem de ataque cardíaco a fazer desporto.CHECK YOUR SMILE (27 de Abril)Figueiredo Lopes – José Luiz Zapatero não podia ter feito outra coisa. Os espanhóis elegeram-no com o pressuposto da retirada dos militares do Iraque, e a partir daí nem o bom senso podia valer-lhe: havia que retirar. No pólo oposto, o reconhecimento do regresso dos soldados portugueses como uma «hipótese académica», feito pelo ministro da Administração Interna, foi um momento de fragilidade – que, ainda por cima, dá do Governo uma imagem de seguidismo em relação a Madrid. Valeram as explicações de Durão Barroso.CHECK YOUR SMILE (19 de Abril)Hamid Karzai – Propor uma jihad contra à droga, mesmo tendo em conta o flagelo que o ópio e a heroína se tornaram no Afeganistão, é mais do que politicamente incorrecto: é civilizacionalmente estúpido. Bem vistas as coisas, o presidente afegão não fez melhor do que Bush quando este usou a palavra «cruzada» para anunciar o combate ao terrorismo – ou do que Churchill teria feito se um dia houvesse pedido a Hitler que, caso ele pretendesse mesmo um genocídio, então que o aplicasse às SS. Até porque o derradeiro argumento de Karzai foi religioso: «A droga e as papoilas (…) são contra a nossa religião.» Muito perigoso.LEITURAS (19 de Abril)"À Mesa com a Nossa Selecção". De Hélio Lourenço e Luís Lavrador. Livro de receitas. Bertrand Editora. – Comer um peito de pato com Luís Figo, dividir um cabrito assado com Rui Costa ou acompanhar Pauleta num bife de vitela açoriana. Os próximos meses prometem ser aborrecidos: a publicidade continuará a centrar-se no futebol, os noticiários dedicarão cada vez mais espaço ao Euro 2004 e as glorificações nacionais invadirão cada conversa de café. Tudo o que se pode pedir é que nos surpreendam o menos mal que conseguirem, e a verdade é que colocar um pouco de imaginação nas diferentes abordagens a este autêntico frenesi pode ser um caminho. Viajar pela selecção nacional de futebol através dos pratos habitualmente cozinhados para os jogadores é isso: um mal menor. É pena as gralhas e a inutilidade de algumas notas de rodapé. A comida até parece boa, na verdade. E quem disse que futebolista só comia pizza e hamburguer?LEITURAS (19 de Abril)"O Belo Adormecido". De Lídia Jorge. Contos. Publicações Dom Quixote. – Parece táctica: depois da vitória no Grande Prémio Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores com O Vento Assobiando nas Gruas, Lídia Jorge aposta nos contos e, com isso, baixa as sempre constrangedoras expectativas geradas em torno do primeiro-livro-depois-da-consagração. Mas não é isso – ou não é só isso. O Belo Adormecido, reunião de três contos inéditos e três contos anteriormente publicados em revistas e/ou jornais, enferma de um defeito transversal a todos os livros do género: tem algumas histórias melhores e outras piores. Mas o pior, em Lídia Jorge, é mesmo assim acima da média – e com isso a autora algarvia oferece um contributo bastante positivo a essa tão injustamente negligenciada arte da short story. Sob o epíteto «seis contos sobre o desejo», O Belo Adormecido divide-se em duas histórias de amor, uma história de conquista, uma história de caça, uma história de fanatismo religioso e uma história sobre a descoberta do próximo. É o que dizem os folhetos de promoção – na verdade Lídia Jorge não exclui o amor, a conquista, a caça, o fanatismo ou a descoberta de nenhuma das suas histórias, e é de diferentes combinações de todos esses factores que resulta cada um dos contos deste livro. Não é apenas a paisagem urbana o que une todas estas personagens: é a angústia de todas em relação a si próprias e ao que as rodeia – em relação à vida. Diz-se em Leão Velho: «Este é um conto para ser lido numa tarde de Verão, quando as sombras ainda mal gatinham pelo pavimento do pátio, e o coração se desprende do interior da carne, dirige-se para lá do horizonte, e ao regressar, o coração, ele mesmo, volta em seu estado puro e selvagem trazendo consigo a síntese de todas as coisas.» É um bom conselho. Mas há corações que já o experimentaram noutras estações – vá por nós. E, pelo sim, pelo não, leia-o já nesta Primavera.CHECK YOUR SMILE (12 de Abril)Poder perpétuo – O universo associativo do FC Porto continua sem encontrar um candidato disposto a enfrentar Pinto da Costa nas urnas. A oposição existe, as discórdias são públicas, as críticas acontece – mas quando toca a eleições não aparece ninguém. É como se estivessem todos à espera da abdicação de um vice-rei. E isso não é bom para ninguém – nem sequer para o próprio Pinto da Costa.CHECK YOUR SMILE (12 de Abril)Mea culpa – Vão longe os tempos em que Colin Powell parecia uma reserva de solidez na administração Bush. Meses depois de a existência de armas de destruição maciça no Iraque ter sido afastada, o secretário de Estado americano admite que as bases do seu mais polémico discurso na ONU «não eram sólidas», mas passou as culpas para cima de terceiros. «Eu não sou a comunidade de espionagem», disse, rechaçando responsabilidades no processo que o levou às Nações Unidas, em 2003, para defender a extinção do regime de Saddam. Se os serviços secretos que o informam não mereciam a sua confiança, Powell devia demitir-se. Se o mereciam e foi ele quem cometeu um erro de tal magnitude – então Powell devia «mesmo» demitir-se. E isso não tem nada a ver com as opiniões sobre se a vida dos iraquianos está melhor hoje em dia.CHECK YOUR SMILE (12 de Abril)Amigos, amigos – Foi Durão Barroso quem ajudou os portugueses a perceber porque é que os responsáveis da Echelon pegaram em gorilas e foram às instalações da Valentim de Carvalho, em Paço D’Arcos confiscar material. Em viagem a Moçambique, o primeiro-ministro anunciou com pompa e orgulho o pagamento à Televisão de Moçambique de uma dívida da RTP que remontava a 1997. Atenção: com pompa, com orgulho e exigindo cobertura mediática. Porque é assim que os portugueses pagam as suas dívidas – como um favor que se faz ao credor.<BOM DIA A TODO O AUDITÓRIO (12 de Abril)Dinamite – «Estejam atentos aos vossos vizinhos, colegas e amigos.» Preocupada com a ameaça de atentados, a esquadra anti-terrorismo da Grã-Btretanha lança a campanha Life Savers, em que desafia os ingleses a denunciarem qualquer comportamento suspeito dos concidadãos. É pior do que as praças públicas televisivas, os fóruns radiofónios ou os inquéritos vox populi dos jornais: não tarda estamos a denunciar o vizinho da mercearia porque ele anda a preparar um «atentado terrorista» com a mulher do dono da loja de fazendas.LEITURAS (12 de Abril)Lisbon Killer – uma de cada vez. Policial. De Rui Araújo. (Oficina do Livro). – Está bem, percorre muitos dos clichés do género: o investigador e o seu parceiro, a linguagem amarga a la Robert Mitchum, o poker como metáfora, a esposa falecida, a amante, a jornalista, os gémeos. Mas, porque se baseia numa história verídica – passada em Lisboa e investigada pela Polícia Judiciária, cujos inspectores o autor acompanhou no terreno –, resulta também num manual sobre as polícias portuguesas e a sua actuação. Está lá tudo: o desdém da PJ em relação à PSP, o calão utilizado na investigação, os processos de um interrogatório – tudo acompanhado com notas de rodapé, como se de um ensaio (ou de uma reportagem) se tratasse. Rui Araújo, jornalista multipremiado e autor de À Queima-Roupa (edição Terramar), parte de um homicídio em Pedrouços para mergulhar no universo da criminalidade do sexo lisboeta. Cita Horácio e Jorge de Sena, «ensina» a escrever um auto de inquirição e leva-nos numa curta viagem aos nomes dos crimonosos míticos da capital. Interessante.LEITURAS (12 de Abril)Nova História Militar de Portugal (Volume 2). História. De vários (direcção de Manuel Themudo Barata e Nuno Severiano Teixeira). Círculo de Leitores. – O desafio é uma abordagem diferente a temas diferentes, e só isso – sobretudo quando feito sob a direcção de historiadores respeitados em todos os quadrantes, como é o caso – já era suficiente para dar-lhe um lugar em qualquer biblioteca. Mas a Nova História Militar de Portugal, cujo segundo volume chega agora ao mercado, não se fica pelo repto inicial: articula rigor científico com sensibilidade humana, combina métodos pormenorizados de investigação com enquadramento socio-cultural – e resulta, tudo somado, numa obra obrigatória. Numa tentativa de não projectar conceitos actuais sobre o passado, os autores recuperam termos como os de «guerra justa» ou «vossa mercê», analisam conceitos datados de disciplina hierárquica e chegam à conclusão, no fundo, de que,tal como o país não foi sempre o mesmo, também a ideia portuguesa de conflito também foi mudando. O ponto de vista é o conceito de «revolução militar», lançado em 1956 por Michael Roberts e hoje mais actual do que nunca. Com uma grande preocupação na contextualização sociológica da História, os autores debruçam-se sobre o desenvolvimento tecnológico, as deontologias vigentes, as referências geográficas e políticas e a situação económica (e, portanto, às fontes de financiamento) que preside a cada época. São centenas de fontes combinadas, a que acresce uma pormenorizada cronologia militar sobre mais de três séculos de História de Portugal (1476 a 1821), uma criteriosa selecção de imagens e um especial cuidado na elaboração da bibliografia e dos índices. A edição distribuída aos sócios do Círculo de Leitores vem acompanhada de uma reprodução em porcelana de uma belíssima tapeçaria de D. João de Castro (1550) dedicada cortejo triunfal em Goa. Parece de somenos, mas não é: enquanto esta peça é gratuita, as restantes quatro da série custam quase 25 euros cada uma. Para quem não chegue o brinde, porém, chegará talvez o currículo dos directores e do coordenador: Manuel Themudo Barata, general e antigo Governador de Cabinda; Nuno Severiano Teixeira, doutor em História e Civilização e ex-ministro dos Negócios Estrangeiros, e António Manuel Hspanha, historiador e ex-comissário-geral da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses.LEITURAS (12 de Abril)O Livro das Conversões. De Clara Pinto Correia (texto) e João Francisco Vilhena (fotografia). Álbum. Círculo de Leitores. – Uma viagem pela fé através das histórias de dois bispos (São Nicolau de Bari e Santo Agostinho), dois mártires (Santa Blandina e Beato Ramom Llul), uma virgem (Santa Genoveva), uma pecadora (Santa Maria Egipsíaca) e um herege (Cosmas Indicopleustes). O texto de Clara Pinto Correia coloca os mitos a par da humanidade, e nessa abordagem ambígua de semi-deuses que nunca deixaram de ser homens (ou ao contrário) situam-se também as belíssimas fotografias de João Francisco Vilhena. O prefácio é de Frei Bento Domingues e os modelos são «lisboetas fashion» das mais diversas proveniências artísticas: Lena Aires, Eduardo Marques ou Inês Fonseca Santos, entre outros. Traz um capítulo com «instruções de utilização», onde quase se pede desculpa pelo incómodo: «(…) No limite, estaríamos a pedir-vos não mais que seis minutos e meio de atenção.» Vale-os bem.LEITURAS (12 de Abril)Sete Mares e Treze Rios. De Monica Ali. Romance. Publicações Dom Quixote. – Sete Mares e Treze Rios, primeiro romance de Monica Ali, cresce dentro de nós. Arranca devagar (a caracterização previsível da vida no Bangladesh, a sucessão de lugares-comuns, os aforismos naïve), mas mais tarde perceber-se-á que existe uma razão por detrás disso: Nazneen, a protagonista, é ainda uma pessoa incompleta quando chega a Londres, mas por está ansiosa por crescer – e é com ela que a prosa crescerá, ganhando maturidade e solidez. Então, um mundo inteiro desabrocha ao longo 300 páginas. É um livro sobre tudo e sobre nada – um livro sobre política, sobre a forma como a liberdade de um actua sobre a liberdade de outro, matéria de que é feita a melhor literatura. Saga de uma família oriunda do Bangladesh fazendo pela vida em Inglaterra, centra-se na história de uma mulher (Nazneen) que chega ao Ocidente para consumar um casamento arranjado com um homem gordo e sem expectativas (Chanu) e se apaixona adulteramente por um extremista islâmico disposto a fazer explodir o barril de pólvora em que está transformado o East End londrino (Karim). Do outro lado do mundo, para além de sete mares e treze rios, está a irmã e correspondente da protagonista (Hasina), mulher que casou por amor, se divorciou do marido e se sentiu na necessidade de sobreviver como operária, prostituta e criada. São as cartas trocadas entre as duas mulheres que as revelam como duas faces da mesma moeda – e a mesma sensibilidade que percorre essas cartas acaba por contaminar todo o romance. Nascida em Dhaka em 1967, filha de mãe britânica e pai bengali, Monica Ali emigrou para Inglaterra aos três anos. Viveu no seio de várias comunidades imigrantes, estudou ciência política, filosofia e economia, trabalhou em edição, design e marketing, casou, teve dois filhos – e só então se dedicou à escrita. Sete Mares e Treze Rios, publicado no Verão passado pela Doubleday sob o título Brick Lane (que podia traduzir-se Estrada de Tijolo), foi finalista do Man Booker Prize For Fiction e colocou-a, ainda antes de ser publicado, na lista da Granta dedicada aos vinte melhores jovens autores britânicos.EDITORIAL (2 de Abril)Até já – Tinha 27 posts para escrever, relativos a todo o tipo de assuntos, mas não conseguirei fazê-lo. Vou uns dias para casa, a pretexto de uma convenção e com o fito numa semana de férias. Não se prevêem actualizações a este blog. Levo o meu Prémio Jornalístico Cadbury, que me deu o Miguel do Origem do Amor, e espero ser recebido no palácio presidencial. Depois volto à vidinha. Um abraço.DOS JORNAIS (30 de Março)José Manuel Fernandes – De acordo com o texto de José Manuel Fernandes (JMF): Jacques Chirac é o maior de todos os derrotados das eleições regionais francesas de domingo passado, e na verdade mereceu o castigo devido à «sua imensa habilidade e nenhuns princípios». Mas ainda esta noite corrigi, aqui neste blog, um texto sobre Fernando Santos – dizia-me um amigo que eu parecia acusá-lo de corrupção, quando de facto apenas pretendia acusá-lo de ser influenciável e basicamente fraco –, e tenho dúvidas sobre uma outra coisa que escreve JMF: «[Chirac] Encarna alguns dos piores hábitos do nepotismo à francesa, para não falar da mais crua corrupção.» Ou seja, pergunto-me: se estivesse a falar de um político português, daqueles que lêem o Público todos os dias, JMF podia dizer isto assim?CHECK YOUR SMILE(30 de Março)Tráfico de órgãos – A polícia moçambicana anunciou a detenção de seis indivíduos alegadamente envolvidos no rapto e assassinato de duas pessoas (uma mulher e um bebé), cujos órgãos terão sido extraídos para o exercício de feitiçarias. No mesmo dia, e perante Durão Barroso, Joaquim Chissano garantiu não existirem indícios seguros de tráfico de órgãos humanos em Nampula ou em Moçambique. Passámos a fase em que a tentação era a de dizer que a extracção de órgãos para a feitiçaria não era tráfico. Entrámos na fase da simples mentira deslavada – será porque um dos detidos é dirigente da Renamo?.LEITURAS(30 de Março)«Palestina» (2 volumes). Banda desenhada. De Joe Sacco. Prefácios de Mário Soares e Edward W. Said. (Mundo Fantasma) – Jean-Marie Le Pen também tem uma biografia autorizada em quadradinhos, e por isso não se pode dizer que a BD, sendo geralmente «alternativa», seja própria da esquerda ou da direita, das tendências autoritaristas ou dos manifestos libertários. Joe Sacco não esconde, por isso, a sua origem política e ideológica: no prefácio de Na Faixa de Gaza, o segundo volume deste Palestina, chama aos colonos israelitas «adjuntos armados do exército ocupador», identifica nos territórios árabe-israelitas uma «estrangulação a longo prazo da economia palestiniana por Israel» e coloca aspas em cada uma das extremidades da expressão «processo de paz». Todos os méritos desta obra se situam, portanto, à margem disso. Publicado pela primeira vez em 1995, nos Estados Unidos, Palestina é o resultado de dois meses de viagem a Israel e aos territórios árabes durante o Inverno de 1991-92 – no rescaldo da Guerra do Golfo e antes do Nobel da Paz para Ytzhak Rabin,. Shimon Peres e Yasser Arafat. Acaba de sair em Portugal, com a chancela da Mundo Fantasma e os prefácios de Mário Soares (primeiro volume) e Edward W. Said (segundo), mas entretanto ganhara os mais diversos prémios internacionais, incluindo o extremamente prestigiado American Book Award (1996). Jornalista e cartoonista, Joe Sacco nasceu em Malta mas vive em Portland (estado do Oregon, EUA). Desenhou capas de CD, andou em tournée com bandas rock e foi, pelo meio, depurando um desenho de tom negro, terno quando quer e violento quando sente que a situação o exige. Desde que publicou Palestina, o autor tem sido convidado a colaborar em quase todas as grandes revistas de BD ao redor do mundo, o que já levou a revista Time ou ojornal The New York Times a dedicarem-lhe extensas reportagens. A edição portuguesa da sua obra-prima deixa sobretudo a desejar no campo da tradução, que é medíocre – mas tem lugar cativo em qualquer estante com espaço para a banda desenhada. Um documento.LEITURAS(30 de Março)«Pensamento e Acção Política, Portugal Século XX (1890-1976)». Ensaio histórico. De Fernando Rosas. (Editorial Notícias) – A Monarquia Liberal, o Estado Novo, o PREC – uma viagem a 86 anos de História de Portugal, vistos sob os pontos de vista do crescimento económico e da acentuação das clivagens entre ricos e pobres, entre oligarquias e massas. Fernando Rosas já trabalhou com Joel Serrão, Oliveira Marques e José Mattoso, é director da revista História e tem uma série de obras publicadas sobre o Portugal do século XX, centradas sobretudo no Estado Novo. As suas críticas são, até certo ponto, transversais: as rupturas democráticas faliram sempre, ou abrindo caminho ao fascismo ou desaguando numa modernização efectiva mas tardia. Não é um Portugal feliz, o de Rosas: há ao longo de quase todo o livro uma «grande crise identitária, crise política, ideológica, económico-financeira, social»… CHECK YOUR SMILE (29 de Março)E passa factura? – É mais uma revés para a imagem da classe política: Rui Canas, o principal arguido do megaprocesso de corrupção gerado em torno da Administração Fiscal, tinha como clientes vários cidadãos eleitos na urnas, aos quais tratava das declarações de IRS. A rede, que incluía funcionários do Estado e escritórios de advogados, dedicava-se à magia: fazia «desaparecer» dívidas ao Fisco. Depois dos abusos de poder, das gestões danosas, do nepotismo e da pedofilia, novas acusações rodeiam os políticos portugueses. Terrível.

marcar artigo