cavaco precisa de si: ESCONDA-SE! ! !
Artigo de Fernando Rosas no Público de 2 de Novembro (extracto).
Não creio que a verdadeira entronização antecipada de Cavaco Silva como futuro Presidente da República lavada a cabo, quase sem pudor, por parte da comunicação social, com destaque para o eixo Expresso (transformando em oficioso do PSD e do seu candidato), SIC e demais adjacências jornalísticas do grupo Balsemão, não creio que essa ofensiva manipulatória nos deva impedir de porfiar no debate acerca da natureza política e ideológica do neocavaquismo que aí está. Debate em torno da memória do que foi, debate sobre o que é, pois esses são os dois tempos da mistificação em curso.O cavaquismo, naquilo que teve de essencial para o futuro do país, foi, sobretudo, a década da oportunidade perdida. Historicamente houve poucos momentos como esse, em que por razões que não decorriam da performance interna da sua economia, dos sucessos do seu modelo de desenvolvimento, o país se visse beneficiado por extraordinários rendimentos essencialmente gerados no exterior e postos à sua disposição. Talvez só tenha acontecido, com essa excepcional dimensão, com os réditos das especiarias das Índias no século XVI; com o ouro e os diamantes do Brasil no século XVIII, e na primeira década (e um pouco para além dela) após a adesão de Portugal à então CEE por via dos fundos estruturais, no século XX. A década do cavaquismo.O que aconteceu, tal como nas duas ocasiões desperdiçadas do passado, é que todo esse imenso fluxo de capital correndo pelos fundos estruturais, ainda que tenha deixado marcas positivas nas infra-estruturas e nas obras públicas, não mudou estruturalmente o país no sentido da modernidade. Isto é, permitiu certo desafogo momentâneo, mas não mudou nada de essencial no que era essencial mudar: na educação, na qualificação profissional, na investigação científica, na melhoria duradoura e sustentada do Estado social. Pelo contrário, em todos estes domínios foi o fiasco, quando não a regressão. O cavaquismo terá sido uma década de ouro para os grandes interesses da construção civil e do imobiliário, para a banca e a especulação, para os grandes grupos financeiros, para os que enriqueceram fraudulentamente com os fundos estruturais, para a elite do regime que promiscuamente circulava (e circula) entre os negócios, as sinecuras e a administração pública - mas para a modernização económica social do país foi a terceira grande oportunidade perdida. E convém lembrá-lo, quando a solitária mais- valia com que o candidato Cavaco Silva se apresenta é a da economia.O cavaquismo foi a arrogância política em estado puro: "não tenho dúvidas e raramente me engano", lembram-se? A denúncia das "forças de bloqueio" lançada contra todas as instituições (desde o PR ao Tribunal de Contas) que diligenciavam exercer com seriedade a missão (constitucional, diga-se) de vigiar institucionalmente os excessos e arbítrios da governação. Foi a fuga sistemática de Cavaco Silva aos debates parlamentares (o chefe de governo constitucional com menos comparência na Assembleia da República) e ao contraditório público com as oposições. A empáfia bacoca de um primeiro-ministro que se vangloriava de não ter tempo para ler os jornais. Ei-lo de volta, transformado em bom samaritano.O cavaquismo foi, não o esqueçamos, a deriva autoritária sem precedentes, desde o "25 de Abril". Foi a polícia de choque de rédea livre: largada contra os trabalhadores vidreiros perseguidos pelas ruas da Marinha Grande, carregando sobre as manifestações dos estudantes do ensino superior, atacando, no célebre quadro dos "secos e molhados", os seus colegas da PSP em luta pelos direitos de todos eles; procurando abafar pela força a indignação popular no buzinão da ponte sobre o Tejo. Foi a década em que o diálogo social e político deu lugar ao músculo e ao Diktat unilateral do poder. Foi por tudo isto que Cavaco perdeu: pela profunda impopularidade em que os seus fracassos, e os seus excessos acabaram por se atolar. E não foi uma saída brilhante. Cavaco Silva abandonou o governo a Fernando Nogueira, em 1995, para fugir à inevitável derrota eleitoral do PSD, nesse ano, e seria derrotado, logo à primeira volta, nas eleições presidenciais de 1996. É, pois, um duplo derrotado que regressa à disputa eleitoral para Presidente da República.Bem sei que ele vem agora solenemente embalado, com pompa e circunstância, num registo centrista de respeito pelas instituições, de moderação, de fixação do discurso nos lugares-comuns do situacionismo politicamente correcto, respaldado no apoio dos banqueiros, dos oligarcas, da elite da direita política e dos interesses, daquilo que é o núcleo duro da sua base de apoio.Não há, todavia, que ter ilusões: o neocavaquismo é o cavaquismo mais as suas circunstâncias.
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cavaco precisa de si: ESCONDA-SE! ! !
Artigo de Fernando Rosas no Público de 2 de Novembro (extracto).
Não creio que a verdadeira entronização antecipada de Cavaco Silva como futuro Presidente da República lavada a cabo, quase sem pudor, por parte da comunicação social, com destaque para o eixo Expresso (transformando em oficioso do PSD e do seu candidato), SIC e demais adjacências jornalísticas do grupo Balsemão, não creio que essa ofensiva manipulatória nos deva impedir de porfiar no debate acerca da natureza política e ideológica do neocavaquismo que aí está. Debate em torno da memória do que foi, debate sobre o que é, pois esses são os dois tempos da mistificação em curso.O cavaquismo, naquilo que teve de essencial para o futuro do país, foi, sobretudo, a década da oportunidade perdida. Historicamente houve poucos momentos como esse, em que por razões que não decorriam da performance interna da sua economia, dos sucessos do seu modelo de desenvolvimento, o país se visse beneficiado por extraordinários rendimentos essencialmente gerados no exterior e postos à sua disposição. Talvez só tenha acontecido, com essa excepcional dimensão, com os réditos das especiarias das Índias no século XVI; com o ouro e os diamantes do Brasil no século XVIII, e na primeira década (e um pouco para além dela) após a adesão de Portugal à então CEE por via dos fundos estruturais, no século XX. A década do cavaquismo.O que aconteceu, tal como nas duas ocasiões desperdiçadas do passado, é que todo esse imenso fluxo de capital correndo pelos fundos estruturais, ainda que tenha deixado marcas positivas nas infra-estruturas e nas obras públicas, não mudou estruturalmente o país no sentido da modernidade. Isto é, permitiu certo desafogo momentâneo, mas não mudou nada de essencial no que era essencial mudar: na educação, na qualificação profissional, na investigação científica, na melhoria duradoura e sustentada do Estado social. Pelo contrário, em todos estes domínios foi o fiasco, quando não a regressão. O cavaquismo terá sido uma década de ouro para os grandes interesses da construção civil e do imobiliário, para a banca e a especulação, para os grandes grupos financeiros, para os que enriqueceram fraudulentamente com os fundos estruturais, para a elite do regime que promiscuamente circulava (e circula) entre os negócios, as sinecuras e a administração pública - mas para a modernização económica social do país foi a terceira grande oportunidade perdida. E convém lembrá-lo, quando a solitária mais- valia com que o candidato Cavaco Silva se apresenta é a da economia.O cavaquismo foi a arrogância política em estado puro: "não tenho dúvidas e raramente me engano", lembram-se? A denúncia das "forças de bloqueio" lançada contra todas as instituições (desde o PR ao Tribunal de Contas) que diligenciavam exercer com seriedade a missão (constitucional, diga-se) de vigiar institucionalmente os excessos e arbítrios da governação. Foi a fuga sistemática de Cavaco Silva aos debates parlamentares (o chefe de governo constitucional com menos comparência na Assembleia da República) e ao contraditório público com as oposições. A empáfia bacoca de um primeiro-ministro que se vangloriava de não ter tempo para ler os jornais. Ei-lo de volta, transformado em bom samaritano.O cavaquismo foi, não o esqueçamos, a deriva autoritária sem precedentes, desde o "25 de Abril". Foi a polícia de choque de rédea livre: largada contra os trabalhadores vidreiros perseguidos pelas ruas da Marinha Grande, carregando sobre as manifestações dos estudantes do ensino superior, atacando, no célebre quadro dos "secos e molhados", os seus colegas da PSP em luta pelos direitos de todos eles; procurando abafar pela força a indignação popular no buzinão da ponte sobre o Tejo. Foi a década em que o diálogo social e político deu lugar ao músculo e ao Diktat unilateral do poder. Foi por tudo isto que Cavaco perdeu: pela profunda impopularidade em que os seus fracassos, e os seus excessos acabaram por se atolar. E não foi uma saída brilhante. Cavaco Silva abandonou o governo a Fernando Nogueira, em 1995, para fugir à inevitável derrota eleitoral do PSD, nesse ano, e seria derrotado, logo à primeira volta, nas eleições presidenciais de 1996. É, pois, um duplo derrotado que regressa à disputa eleitoral para Presidente da República.Bem sei que ele vem agora solenemente embalado, com pompa e circunstância, num registo centrista de respeito pelas instituições, de moderação, de fixação do discurso nos lugares-comuns do situacionismo politicamente correcto, respaldado no apoio dos banqueiros, dos oligarcas, da elite da direita política e dos interesses, daquilo que é o núcleo duro da sua base de apoio.Não há, todavia, que ter ilusões: o neocavaquismo é o cavaquismo mais as suas circunstâncias.