da politica: Virgens, avales e cinismo

05-10-2009
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Artigo de Opinião de José Miguel Júdice *(Público de 25.05.2007)* Acho que intervir na política da cidade é um dever de cidadania. Lisboa chegou ao grau zero da crise de auto-estimaUm dos temas mais clássicos da sociologia política e da história das ideologias é o da relação entre a acção crítica e a intervenção política ou cívica. A questão é complexa, mesmo que se não adira à tese do intelectual na sua torre de marfim, ao conceito de que se deve olhar para o nosso mundo do ponto de vista de Sírius ou a qualquer forma mais ou menos decadente de posicionamento nefelibata; e, por outro lado, sem que se tenha de recordar "la traison des clercs", o modelo do "intelectual engagé", a imersão no "prático-inerte" sartriano ou se opte pela tese do "intelectual orgânico".De um modo mais simples e menos teórico e radical, a questão pode ser vista deste modo: devem os que assumem publicamente posições críticas, e com isso ganham alguma respeitabilidade e credibilidade sociais, permanecer afastados do mundo real da acção cívica ou política, limitando-se a estigmatizar os vícios sociais, numa abordagem tendencialmente negativa (ainda que pontualmente com propostas de mudança do statu quo) ou devem - pelo menos em certas situações-limite - arriscar assumir uma opção cívica interventiva, descendo ao mundo das impurezas e dos homens?Não tenho dúvidas de que a solução mais cómoda ou prudente (ninguém podendo saber a priori qual a mais eficaz) é nunca descer do "plano etéreo", seja ou não Cassandra a figura inspiradora para essa (in)acção. Esta opção permite sempre usar a clássica frase "não é isto", manter a pureza bacteriológica que os menos informados confundem com um estado de saúde, denunciar os erros e os pecados, rasgar vestes e distribuir anátemas. Esse é um papel essencial nas sociedades democráticas e pluralistas, agora que acabaram os bobos da corte (ou melhor, até eles perderam a coragem para dizer as verdades aos poderosos) e que os Césares deixaram de se deslocar acompanhados de um acólito que lhes lembra que são humanos. E é um papel de que gosto e que, sinceramente, prefiro a qualquer outro. Mas a outra face desta moeda (da, pelo menos aparente, comodidade) é que algumas vezes se começa a sentir um difuso mal-estar, uma espécie de vergonha cívica, e a nossa alma é invadida por uma estranha espécie de urticária moral e de eczemas de responsabilidade social. Não resistir a esta pulsão ou comichão é, então, uma tentação e um desafio, que as mais das vezes acaba mal, com a sensação de que não valia a pena, que era inútil ou impossível, pelo caminho se sacrificando algum prestígio e alguma influência, ainda por cima num altar que se revelou ser de ídolos e não de deuses.Eu sei que às vezes é assim, que também já mordi o chão e berrei para dentro, pela estupidez de ir atrás do que julgava ser o meu dever, como as crianças vão atrás do choro. Mas, apesar disso, continuo a achar que fiz bem em arriscar o que tinha, em nome das minhas convicções, do meu mal-estar, do meu sentido de responsabilidade ou, ainda mais simplesmente, daquilo para onde me puxava o coração. Vem isto a propósito da opção que tomei de apoiar a candidatura de António Costa e de ter aceitado convite para ser seu mandatário. Não o fiz por causa de ele ser um vencedor provável, mesmo que o seja, o que resta provar. Fi-lo pela mesmíssima razão que apoiei Maria José Nogueira Pinto, há dois anos, e aceitei também o convite para ser o seu mandatário, apesar de ela ser uma vencedora totalmente improvável. Não o fiz - então ou agora - por qualquer (aliás legítima) vontade de assumir uma militância política para o futuro e muito menos ainda por ter subitamente descoberto - numa espécie de Estrada de Damasco com néones e estrelinhas de várias cores e feitios - que o CDS/PP, então, e o PS, agora, são a panaceia para os males universais ou por neles ter encontrado a paz para repousar o meu pobre coração ideológico.Tudo é mais prosaico, mas nem por isso menos urgente. Acho que intervir na política da cidade é um dever de cidadania. Que Lisboa chegou ao grau zero da crise de auto-estima, ao mais rasteiro caos e à degradação financeira mais horrenda. Que é preciso que alguém assuma - com ousadia e com sentido de risco - a tentativa de salvar, para a relançar, esta belíssima cidade. Que não faz nenhum sentido votar a nível local com base em emblemas partidários (e que, hoje em dia, para além de memórias e de paixões clubistas, nada de relevante separa o PS e o PSD, e isso é aliás lamentável) e que a escolha de uma personalidade que nos dê garantias é o melhor critério para decidir.António Costa arriscou o que tinha - um capital político construído em mais de 20 anos e o estatuto político de n.º 2 do Governo - para tentar ganhar Lisboa. Constituiu uma lista de vereadores que corta com as clientelas locais, como espero que Fernando Negrão também consiga fazer. E é um "fazedor", alguém que se tiver as condições que decorrem de uma votação clara que lhe dê maioria vai mudar Lisboa. Não arriscar o apoio e, com pudores de falsa virgem, recusar o convite para mandatário seria um acto de deserção cívica nesta conjuntura. É possível que este meu gesto (e o de Saldanha Sanches) signifique um aval pessoal que permita melhorar as condições de vitória de Costa. Ficaria honrado que assim fosse e agradeço a quem pense (todos gostamos que nos façam festinhas, gosta de dizer Miguel Veiga, com razão) que assim é. Mas prefiro ter de honrar o aval e pagar por isso do que lamentar não o ter dado e Lisboa pagar por isso.


Artigo de Opinião de José Miguel Júdice *(Público de 25.05.2007)* Acho que intervir na política da cidade é um dever de cidadania. Lisboa chegou ao grau zero da crise de auto-estimaUm dos temas mais clássicos da sociologia política e da história das ideologias é o da relação entre a acção crítica e a intervenção política ou cívica. A questão é complexa, mesmo que se não adira à tese do intelectual na sua torre de marfim, ao conceito de que se deve olhar para o nosso mundo do ponto de vista de Sírius ou a qualquer forma mais ou menos decadente de posicionamento nefelibata; e, por outro lado, sem que se tenha de recordar "la traison des clercs", o modelo do "intelectual engagé", a imersão no "prático-inerte" sartriano ou se opte pela tese do "intelectual orgânico".De um modo mais simples e menos teórico e radical, a questão pode ser vista deste modo: devem os que assumem publicamente posições críticas, e com isso ganham alguma respeitabilidade e credibilidade sociais, permanecer afastados do mundo real da acção cívica ou política, limitando-se a estigmatizar os vícios sociais, numa abordagem tendencialmente negativa (ainda que pontualmente com propostas de mudança do statu quo) ou devem - pelo menos em certas situações-limite - arriscar assumir uma opção cívica interventiva, descendo ao mundo das impurezas e dos homens?Não tenho dúvidas de que a solução mais cómoda ou prudente (ninguém podendo saber a priori qual a mais eficaz) é nunca descer do "plano etéreo", seja ou não Cassandra a figura inspiradora para essa (in)acção. Esta opção permite sempre usar a clássica frase "não é isto", manter a pureza bacteriológica que os menos informados confundem com um estado de saúde, denunciar os erros e os pecados, rasgar vestes e distribuir anátemas. Esse é um papel essencial nas sociedades democráticas e pluralistas, agora que acabaram os bobos da corte (ou melhor, até eles perderam a coragem para dizer as verdades aos poderosos) e que os Césares deixaram de se deslocar acompanhados de um acólito que lhes lembra que são humanos. E é um papel de que gosto e que, sinceramente, prefiro a qualquer outro. Mas a outra face desta moeda (da, pelo menos aparente, comodidade) é que algumas vezes se começa a sentir um difuso mal-estar, uma espécie de vergonha cívica, e a nossa alma é invadida por uma estranha espécie de urticária moral e de eczemas de responsabilidade social. Não resistir a esta pulsão ou comichão é, então, uma tentação e um desafio, que as mais das vezes acaba mal, com a sensação de que não valia a pena, que era inútil ou impossível, pelo caminho se sacrificando algum prestígio e alguma influência, ainda por cima num altar que se revelou ser de ídolos e não de deuses.Eu sei que às vezes é assim, que também já mordi o chão e berrei para dentro, pela estupidez de ir atrás do que julgava ser o meu dever, como as crianças vão atrás do choro. Mas, apesar disso, continuo a achar que fiz bem em arriscar o que tinha, em nome das minhas convicções, do meu mal-estar, do meu sentido de responsabilidade ou, ainda mais simplesmente, daquilo para onde me puxava o coração. Vem isto a propósito da opção que tomei de apoiar a candidatura de António Costa e de ter aceitado convite para ser seu mandatário. Não o fiz por causa de ele ser um vencedor provável, mesmo que o seja, o que resta provar. Fi-lo pela mesmíssima razão que apoiei Maria José Nogueira Pinto, há dois anos, e aceitei também o convite para ser o seu mandatário, apesar de ela ser uma vencedora totalmente improvável. Não o fiz - então ou agora - por qualquer (aliás legítima) vontade de assumir uma militância política para o futuro e muito menos ainda por ter subitamente descoberto - numa espécie de Estrada de Damasco com néones e estrelinhas de várias cores e feitios - que o CDS/PP, então, e o PS, agora, são a panaceia para os males universais ou por neles ter encontrado a paz para repousar o meu pobre coração ideológico.Tudo é mais prosaico, mas nem por isso menos urgente. Acho que intervir na política da cidade é um dever de cidadania. Que Lisboa chegou ao grau zero da crise de auto-estima, ao mais rasteiro caos e à degradação financeira mais horrenda. Que é preciso que alguém assuma - com ousadia e com sentido de risco - a tentativa de salvar, para a relançar, esta belíssima cidade. Que não faz nenhum sentido votar a nível local com base em emblemas partidários (e que, hoje em dia, para além de memórias e de paixões clubistas, nada de relevante separa o PS e o PSD, e isso é aliás lamentável) e que a escolha de uma personalidade que nos dê garantias é o melhor critério para decidir.António Costa arriscou o que tinha - um capital político construído em mais de 20 anos e o estatuto político de n.º 2 do Governo - para tentar ganhar Lisboa. Constituiu uma lista de vereadores que corta com as clientelas locais, como espero que Fernando Negrão também consiga fazer. E é um "fazedor", alguém que se tiver as condições que decorrem de uma votação clara que lhe dê maioria vai mudar Lisboa. Não arriscar o apoio e, com pudores de falsa virgem, recusar o convite para mandatário seria um acto de deserção cívica nesta conjuntura. É possível que este meu gesto (e o de Saldanha Sanches) signifique um aval pessoal que permita melhorar as condições de vitória de Costa. Ficaria honrado que assim fosse e agradeço a quem pense (todos gostamos que nos façam festinhas, gosta de dizer Miguel Veiga, com razão) que assim é. Mas prefiro ter de honrar o aval e pagar por isso do que lamentar não o ter dado e Lisboa pagar por isso.

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