Literatura Portuguesa do Século XX: A TRAGÉDIA DE D. RAMÓN

04-07-2009
marcar artigo


*3Ramon era argentino, de Buenos Aires. Tinha vindo à Europa numa orquestra de tangos, mas em Lisboa casou-se e ficou relojoeiro. Às vezes ainda suspirava: «Mi Buenos Aires!...» E aquela saudade matava-o. Nesta noite era uma dor fina, um sentimento mais vago, que ele não compreen­dia bem. Como costumava, foi a casa buscar a viola, para ir reunir-se com os amigos habituais, numa taberna próxima do Arco-das-Portas-do­-Mar, ali para os lados da Alfândega. Lá estavam todos. Quando entrou, aclamaram-no: - Eh!... Viva D. Ramon!...Sentou-se a uma mesa, ao fundo, e daí a pouco estava a tocar e a cantar. E tocou e cantou até que, sem voz, bêbado e rouco, caiu para um canto, a chorar, abraçado à viola. Então um amigo levantou-o como quem agarra num saco mal cheio e pô-lo outra vez em cima do banco: - Ramon!... - Ramon...?!... quê Ramon... ?!... - Anda! Levanta-te!...E, agarrando-o pelos braços, ergueu-o. Mas ele, invertebrado, deixou-se cair outra vez pesa­damente sobre o banco. E o amigo, com paciên­cia, tornou a erguê-lo: - Vá!... Vamos para casa... - Casa?... Qual... casa?! Mi casa... es en Buenos... Aires...E numa voz roufenha, mastigando as pala­vras quase ininteligíveis, começou com grande esforço a querer cantar:Mi... Buenos Aires...te... tiengo... en el... corazón...E o outro, que já o tinha levado até à porta, amparando-o com o braço, empurrava-o: - Vá... vê se caminhas... Ou deixo-te aqui e vais dormir à polícia. - Si también me dejas!... - Não... Vá.E lá foi indo, devagar, arrastado, aos tropeções... Sentia entrar no peito o ar fresco da noite, engolido às lufadas. E isto, a pouco e pouco, reanimava-o, enrijava-lhe as pernas moles. Ia calado, mas quando chegou à porta de casa começou a falar: - Mi hija Catarina... Conocias?... pobre­cita!... – E olhou para as janelas da casa. – Ya no está... non... - Deixa lá isso...Encostado ao amigo, soluçou: - Ya... La he dado a un hombre de barbi­cha...Parado na borda do passeio, diante da porta, com a voz entrecortada pelos soluços, gemia: - La outra... todavia... estará ou non... Es una, como te digo... sinverguenza... E ahora... que le farias?... Mi mujer – que paz!... estará dormindo. Te digo: Quando la tengo en frente de mis ojos, pienso: Ando en la gracia de Dias: si non, como poderia yo tolerar-la?O outro sorriu: - Acredito. Mas vá lá. Abre a porta.Tirou do bolso a chave e com lentidão cami­nhou para o degrau, estendeu o braço e a porta abriu--se. Depois voltou-se para o amigo: - E tu?... Te hace falta, la gracia?.. - Pois sim... Faz... Vá!Empurrou-o para dentro da escada e puxou a porta, já farto: - Boa noite.E desandou, apressado, pela rua abaixo. Mas Ramon tornou a abri-la, deitou a cabeça de fora e, fazendo uma vagarosa vénia para a parede fronteira, disse em voz cerimoniosa: - Buenas noches!E, recolhendo-se, fechou outra vez a porta. Mas como se esperasse uma resposta e ninguém lha tivesse dado, no mesmo instante tornou a abri-la, saltou à rua e atirou um berro: - Buenas noches!Caindo logo num tom choroso: - Hombre!... una morte inglória!... en mi sangre!Mas cambaleou e caiu no passeio, ficando sentado junto à parede da casa, com as mãos na cara.A rua estava deserta. No céu, com laivos brancos, a Lua corria por entre nuvens. Começa­ram a cair umas gotas de chuva. Ramon, imóvel, dobrado sobre os joelhos, parecia adormecido. Mas não. Tinha os olhos muito abertos, brilhantes, húmidos, fitos nas pedras da calçada, como numa ideia fixa. O casamento de Catarina tinha che­gado a realizar-se só porque ele nunca tivera a coragem de dizer o que pensava, de falar com sinceridade. Só porque tinha tido medo de tomar essa responsabilidade e um dia arrepender-se. Damião era rico. Pesava, portanto, na balança, uma coisa certa: o dinheiro. Isto era pouco, para ele. Mas do outro lado que pesava? Ah!, pesava tudo! Mas esse tudo num instante podia ser nada, porque era só o sonho... E dias e dias, ,e meses e meses, Ramon interrogara-se: «Antes poco que nada? Talvez... Pero... poco, si no llega! Ah! no! Antes nada que poco! O todo, ó nada! O todo, ó nada!» E estes gritos interiores davam-lhe uma repentina satisfação, uma íntima sensação de triunfo e de força. Mas, como um boneco de bor­racha que se enchesse de vento e logo se esva­ziasse, no mesmo momento amolecia, se defor­mava e então via debaixo daquela ideia apare­cer uma outra verdade persistente: porque na vida ninguém pode ter tudo, e viver é mesmo fal­tar sempre alguma coisa. «Alguna cosa». E diante de Catarina, numa inversão de raciocínio, era já só este pensamento que lhe vinha: «Al menos, de momento, ya tiene alguna cosa: dinero!» No fundo sentia a necessidade de gritar-lhe que não, que só dinheiro não valia nada. Mas tinha medo de um dia a ver ainda mais desgraçada, e só que­ria poder calcular qual seria a desgraça menor. Tudo o que dizia era duvidoso e vago. E os outros tinham aproveitado para convencer Catarina de que o pai queria que ela casasse com Damião e que se falava assim era só para lhe deixar liber­dade de escolha. E Ramon sabia tudo o que se passava, o cerco em que a fechavam, as lindas cores que lhe pintavam, a asfixia que a rodeava. E naquela angústia de não saber para que lado havia de ir, deixou que as coisas chegassem até ali. Agora estava tudo acabado! Tudo!... Sem re­médio. «Una morte inglória!» Cerrava os dentes: «Oh! que misero soi!...» A chuva começara a cair com força. As calças colavam-se-lhe às pernas e Ramon tremia de frio. Com o olhar espantado, revendo naquele momento tudo o que se tinha passado, desde os mais insignificantes pormeno­res, desde o princípio até hoje, tinha agora um espectro diante dos olhos: Damião, enorme e sô­frego, a babar-se de sensualidade. E sentiu, de repente, vontade de o matar. Foi um estremeção que lhe percorreu o corpo todo. Levantou-se e começou a correr pela rua abaixo. Mas logo domi­nou a fúria e seguiu a passo, num passo rápido, apertado e enérgico. Soprava, às rajadas, um vento frio que atirava a chuva de rastos pela rua. O chão rebrilhava como se fosse de vidro, e as cordas de água batiam nas manchas de luz e fugiam diante dele, que cambaleava, com as per­nas a dobrarem-se, moles. Até que estacou, olhou as casas em volta e reconheceu o local. Atraves­sou a rua e parou, examinando a frontaria da casa. Procurou a campainha. Não a viu. Tacteou com as mãos, na sombra da ombreira. E, não en­contrando nada, atirou-se contra a porta, a bater com os punhos fechados. - Eh! Eh! Que é isso aí?... correu aos gritos o guarda-nocturno.Ramon não ouvia e continuava a bater, até que o homem, chegando ao pé dele, o sacudiu pelos ombros: - Que é isso?!Como se o fulminassem, ficou suspenso, com as mãos no ar, contra a porta, atarantado, sem responder. Então o guarda gritou-lhe: - Que é que você quer!? - É... que mora aqui a minha filha... que casou... com o sinhor Damião... - E isto são maneiras? Vem bêbado?... ou quê?... - Faça o favor de desculpar. - Desculpar?!... - Era só um recado... - Embora, vamos embora daqui!...E Ramon, escorraçadamente, deu dois passos para obedecer. Mas de súbito parou e voltou-se com um assomo de revolta: - Peço desculpa! Mas tenho de ir lá acima falar. O sinhor non manda em mim.Então o guarda cresceu para ele ameaçado­ramente e Ramon, encolhendo-se contra a parede, mastigou, numa voz rastejante e chorosa: - Si o sinhor tivesse una filha, compreen­deria... que é una dor de pai...E, pondo as mãos a tapar a cara, começou a soluçar convulsivamente. O guarda impressio­nou-se: - Bom, bom...E sem dizer mais nada foi abrir a porta. Acendeu a luz. Ramon entrou e começou, deva­gar, pensativo, a subir a escada. A luz apagou­-se. Quando chegou ao primeiro patamar falta­ram-lhe os degraus e foi esbarrar contra a parede. Com um pé sondou em frente e encontrou o lance seguinte. Mas ficou encostado à cal fria. Toma­va-o um desfalecimento que lhe descia da cabeça até aos pés. Tinha vindo num ímpeto invencível. Ah! mas agora sentia-se já sem forças, sem con­vicção para nada. Afinal, para que ia ali? Sim, agora?! «Mi Dios!... Quien puede decir que fué mi culpa? Yo? Querida! Só por tu felicidade ei soñado siempre, y quando te vi de novia, tan linda! con el velo de paloma, te vi que ias desgra­ciada...» E apertava a cara nas mãos, num deses­pero grotesco e trágico quando ouviu, de cima, da escuridão, gritarem: - Quem está aí?!Ficou hirto e calado. No silêncio ouviam-se passos e acendeu-se outra vez a luz, que mostrou a escada toda até à rua. E a mesma voz insistiu, num tom áspero: - Quem é?Então respondeu timidamente: - O Sr. Damião está?Olhando para cima, viu um homem embru­lhado num sobretudo, com as calças do pijama aparecendo por debaixo, debruçar-se no corrimão da escada para o ver bem. - Damião?... É aí. A esta hora!... (E me­tendo-se para dentro): Animais!...Constrangido, balbuciou: - Muito obrigado.O homem desapareceu, bateu com a porta e apagou-se a luz. Ramon, de repente outra vez às escuras, como cego, estendeu as mãos a tac­tear. Sentiu-se ridículo, humilhado, atarantado como um idiota. E o que queria era sair dali sem ninguém o ver, sem fazer barulho, encontrar-se na rua e correr, meter-se em casa, fugir de tudo. Então começou a descer a escada, agarrado ao corrimão, pondo os pés a medo sobre os degraus, que rangiam. E no silêncio, na escuridão, aquele ranger era desconforme, parecia-lhe que devia ouvir-se por todos os andares e iam acender-se as luzes e a todas as portas apareciam muitas pes­soas admiradas, a olhá-lo. O gemer das tábuas era cada vez maior, devia ouvir-se já na rua. Em toda a cidade adormecida se ouvia agora aquele gemido sobrenatural que lhe fazia estalar a cabeça.. E o guarda-nocturno estaria lá ao fundo... De repente, sentiu debaixo da mão uma coisa mole, húmida e fria. Ficou hirto e suspenso, sem respirar. Mas compreendeu que era um pano mo­lhado que estava estendido no corrimão. Tinha acabado a escada. Com as mãos trémulas, a apal­par no escuro, procurou ansiosamente a porta. Um suor frio caía-lhe em bagas pela testa abaixo.Cego, aflito, tacteava as paredes. Até que encon­trou, e, arrastando as palmas das mãos pela ma­deira da porta, encontrou o fecho. Abriu. Entrou a luz do candeeiro da rua. Deu mais um passo e caiu, sentou-se no degrau. As sombras e clari­dades davam à rua a transfiguração de entre a realidade e o sonho, numa deformação em que já não havia, em nada, a nitidez das linhas. Estava ali bem.Tinha parado a chuva. Também já não so­prava o vento. Pôs-se em pé e foi andando deva­gar. E inconscientemente dirigia-se para casa. Quando dobrou a esquina da rua onde morava, viu que estava alguém à porta. Aproximou-se, reconheceu a filha mais nova, la cabra, e ouviu­-lhe a voz melíflua: -Ah!... o Papá!...Calado, procurava a chave nos bolsos. Pelo passeio oposto vinham a descer dois tipos afa­distados, de boné. Quando passaram em frente, um deles atirou-lhe: - Ó caguinchas, larga a ninfa!...A rapariga rosnou por entre dentes: - Bes­tas... -, sentindo-se insultada por a julgarem com um homem assim, ela que só era acompa­nhada pelos elegantes dos clubes. Mas Ramon, encontrando, enfim, a chave, escancarou a porta para a filha entrar e gargalhou um frouxo riso amargo e de desprezo: - Nínfia!...4Ficou parado, na rua, a olhar em volta, como se naquele momento tivesse acordado num sítio desconhecido. Ouvia vagamente os passos da filha a subir a escada, devagar, ralaça e mole da boé­mia. Uma rajada de vento bateu com a porta. Continuou, com o olhar lento, a percorrer as fachadas dos prédios, as janelas, as portas, os telhados, o céu, que já empalidecia da madru­gada... Sentia a cabeça tonta e encostou-se àparede. Lá no alto duma trapeira via uma enfiada de roupa branca, estendida num cordão, ao vento, como bandeiras dum navio em festa.O céu tinha começado a clarear. Eram cinco horas da manhã. De tempos a tempos soavam uns passos a martelar pela calçada abaixo. Ope­rários mais madrugadores, que tinham trabalho fora da cidade, e iam tomar o comboio, ou o barco para Cacilhas. Do outro lado rodou uma carroça a caminho da Praça da Figueira. Ramon conhecia bem todos aqueles ruídos da madrugada. O despertar da cidade... De repente, esta ideia fez-lhe um calafrio: Ontem?!... Tudo passado! Desencostou-se da parede e começou a descer a rua, curvado. A boca mastigava-lhe uns sons in­compreensíveis, de que se distinguiam umas pa­lavras repetidas: «Ayer, ayer... Responsabili­dad... No. Mi responsabilidad... E luego me van a decir... com cariño, Ramoncito, oye...» Por vezes apressava o passo. Mas logo descaía num divagar lasso, de passos ao acaso, andando para a frente sem saber para onde.E de repente um ronco de monstro gelou-o de terror. Mas era a sereia dum navio.Estava nas docas. Por cima dos telhados dos barracões do cais viam-se os mastros dos paque­tes e as chaminés. Só duma saía fumo. Os arma­zéns cinzentos ladeavam uma rua suja, ao fundo da qual começava a brilhar a fita lodosa do rio. Foi indo até um largo onde estavam automóveis parados, em fila. À volta dum quiosque, conver­savam sete ou oito homens, chauffeurs e carre­gadores, que fumavam e tomavam café. Um deles disse com a voz vagarosa: - Está a chegar.Ramon, com um cigarro na mão, dirigiu-se ao quiosque para comprar uma caixa de fósforos, mas um dos carregadores ofereceu-lhe lume. «Faz favor»... Era um homem alto, gordo, ves­tido de ganga azul, um desses tipos intrometidos e faladores. Encostou o cigarro ao dele e chupou, logo interrompido pela informação amável: - Olhe! Aí vem ele.Era um transatlântico que subia o rio e se aproximava do cais. Olhou: o coração bateu-lhe com força. Queria falar, mas tinha um vazio na cabeça, como se não conseguisse compreender nada. Tossiu para sentir algum som da garganta.O outro, como quem recebe um hóspede nos seus domínios, dizia-lhe: - Bem... vamos lá... Espera alguém de fa­mília, não? Ramon respondeu engasgadamente: - Eu?... Sim, sim... espero... Mas não sei se virá... - Já se vê. Tem bilhete? - Não; bilhete não. - Então compre ali. O belo do vigário... Pa­ciência! Tudo a caroço. E é para quem quer; e no fim muito obrigado... Ali...Apontou-lhe uma bilheteira ao pé dum por­tão gradeado. Ramon estava congestionado, sen­tia o calor subir às orelhas e ,as veias latejarem na testa como se fossem estalar. E o outro excla­mava: - É um belo barco! O senhor devia mas era ter trazido um bilhete da Companhia para ir lá ver aquilo por dentro. Mete respeito!...Do meio do nevoeiro que se esfumava por cima das águas do rio, veio outro ronco de sereia, um som profundo e volumoso. Ramon caminhava ao lado do carregador, inconsciente, como se fosse hipnotizado. Sentia, através dum vago sonambu­lismo, a necessidade de fingir que, na verdade, ia esperar alguém. Não tinha coragem de dizer esta coisa tão simples: «Não, não venho esperarninguém. Andava por aqui só a passear. Mais nada». O outro havia de olhá-lo sem compreender. Não, não se sentia com forças para explicações, nem para suportar olhares de espanto. Era esta a des­graça de Ramon: a falta de coragem para escla­recer as situações equívocas, fossem elas as mais fáceis, as mais simples. No íntimo pensava: «Não vale a pena... O principal é autra coisa. Isto tanto faz. Ousta-me menos fingir que sim». Aquilo de ir ver a chegada dos barcos até podia distraí-lo. Tinha gostado sempre daquela vida agitada e romântica dos cais, donde, sobre ondas e ventos, se vem e vai para todo o mundo. - É aí... - e o carregador apontou-lhe, outra vez, o buraco da bilheteira. - São dez tostões.Ramon procurou o dinheiro no bolso e foi comprar o bilhete. Sem dizer nada pousou a moeda diante do empregado e recebeu um qua­dradito de papel. Um longo gradeamento de ferro fazia a separação entre o cais, o armazém da Al­fândega e aquela rua de barracões baixos e com­pridos. O carregador estava à espera dele, ao pé dum portão vigiado por dois guardas-fiscais. Um empregado, silencioso e grave, estendeu a mão para receber o bilhete de que Ramon se esquecia, a caminhar ao lado do companheiro, que recome­çara a falar: - Então, o senhor é espanhol? - Non... argentino... - Argentino?!. .. Grande terra!... - Ah!, sim.Para chegar ao cais atravessava-se o barracão da Alfândega, uma espécie de armazém, que tinha ao centro um balcão baixo, em quadrilátero, dentro do qual estavam os guardas-fiscais. Ali se abrem as malas e se lhes põe a cruz de giz: visto. Um portal largo dava para o rio, sobre a mura­lha alta. E para os dois lados, ao longo da mar­gem, uma estrada de pedra, entre os armazéns e a água que desliza lá em baixo, viscosa e turva. Uma multidão compacta e imóvel olhava para o rio e erguia no ar um coro difuso de falaça. O barco manobrava ao longe, esfumado na névoa, perto da outra margem, para dar a volta ao jeito da corrente. Tinha subido o rio até um pouco acima e agora descia enviesado na direcção do molhe.A neblina da madrugada desfazia-se a pouco e pouco sobre as águas cinzentas, e o céu tomava um tom cor-de-rosa. O Sol surgiu no horizonte, como um disco em brasa. E 0 barco, lentamente, aproximava-se. Já havia manchas de sol na Outra-Banda, em Almada, nas casitas brancas espalhadas sobre as arribas altas, cortadas a pique sobre o rio. E o carregador falava, mas Ramon não o ouvia. Doía-lhe a cabeça, enchia-se­-lhe a boca duma aguadilha, como se estivesse para vomitar, e tinha vertigens súbitas. Fechando os olhos, sentia o corpo oscilar lentamente paraum lado e para outro. E 0 companheiro soprou­-lhe de repente ao ouvido: - Olhe!, aquele é o ministro, o seu ministro. Vem aqui muita vez. (Mas reparou em Ramon). Que é isso? Está incomodado? - Não... Ah! Sim, é aquele, é... - Mas veja lá;,... se não está bem... Sente-se aqui. -Não... isto passa. Foi qualquer coisa que comi.O outro, agarrando-o por um braço, olha­va-o confrangido. - Até está amarelo. Sente-se neste caixote.Ramon sentou-se. E vagamente via o grande transatlântico deslizar sobre as águas negras, avançar como um grande gume, a proa alta, uma fantástica casa branca, de janelinhas abertas, os mastros finos, as chaminés azuis e um emara­nhado de fios por cima de tudo. Como se fosse uma alucinação, era agora monstruoso e vinha a cair para cima dele. Então o paquete virou sua­vemente e viu-se o tombadilho cheio de gente.De súbito começaram a gritar-lhe aos ouvi­dos: - Pablo! Pablo!! Pablo!!!... Mira! Pablo! Pablito! Pablo!...Era uma vozearia infernal. Ramon quis fu­gir dali; ergueu-se, tonto, como se estivesse ainda embriagado, e foi pelo cais adiante, no meio dum burburinho de gritos alegres, de bocados de fra­ses atiradas ao ar. E o navio estava sobre o cais.Lento, muito lento, ainda deslizava, quase a roçar as pedras, a encostar-se melhor. E lá em cima, no tombadilho, debruçavam-se centenas de pessoas. Cá em baixo a multidão caminhava pela muralha, acompanhando o andamento do barco e berrando para os conhecidos que, debruçados na amurada, gritavam também. E ninguém entendia nada. Ramon, que tinha fugido, foi outra vez en­volvido por aquela onda humana. O paquete estava agora parado, mas a força da corrente retesava o cabo que o prendia a um cabeço de ferro, e que rangia, a esticar. A escada de rodas avançava para o costado. Ramon bateu com os joelhos contra o cabo de aço e caiu à água, entre o barco e o cais. Foi um momento de pânico, de gritos e correrias. Caíra lá em baixo, de chapão, na água suja, oleosa, e desaparecera. Tinha feito uma pequena roda de espuma que ia levada na corrente. Do alto do navio atiraram uma bóia para o sítio onde ele mergulhara. Mas o revolver das águas trouxe o corpo ao de cima, já pela proa do paquete, e bateu com ele no costado do rebocador. Um dos marítimos lançou-lhe a mão. Puxaram-no para cima, mole, dobrado em dois, como um farrapo. Mas ainda respirava. Trazia a boca muito aberta e dava um rouquido baixo. Estenderam-no no chão e começaram a gingar­-lhe com os pés e com os braços. Principiava a respirar melhor. Por fim abriu os olhos e viu lá em cima uma roda de cabeças, como se estivesse no fundo dum poço. - Ah! Ladrão! Que és um homem de sorte! - exclamou um deles. Teve vómitos e deitaram-no de borco. Aos uivos, lan­çou espuma, água e bocados de palha. - Já tinha almoçado - murmurou a mesma voz irónica. E foi uma gargalhada geral. Estenderam-no outra vez de costas e ficou amodorrado. Despiram-no da cinta para cima e um marinheiro, de joelhos, começou a friccioná-lo com as mãos, no peito e nos braços, como quem lava o chão.Por fim enfiaram-lhe pela cabeça abaixo uma velha blusa de marujo. Dobrava-se para um lado e para o outro, como se fosse de borracha. Cal­ças é que não havia. - Já apanhas só meia pneu­monia. - O rebocador subia o rio.No paredão, cercado de gente, o carregador barafustava, tomando ares de importância, por­que afinal ninguém sabia quem é que tinha caído à água: - Argentino, pois! Sim, senhor! argentino! Disse-mo ele a mim, quando entrou!... Que vinha esperar uma pessoa de família, sim, pois!? Quem? Sei lá quem!... Larguem-me o casaco! Ó minha senhora, deixe-me! Qual loiro!... Chama­va-se... larguem-me! Já o pescaram: vá ver, que traz o nome na coleira! Eu vi lá o homem mais gordo?...Porém, a pouco e pouco, tudo serenou. Já tinham verificado que, afinal, não faltava nin­guém, nem os parentes, nem os amigos. Na ver­dade tinha sido só «um tipo qualquer»...Desembarcaram-no na doca. Entregaram-no, mais o embrulho do casaco molhado, a um polí­cia, que o amparou pelo braço. Dobravam-se-lhe as pernas, amolecidas, coladas às calças. Sem chapéu, com o cabelo caído para cima das ore­lhas, todo a escorrer e a tremer de frio, lá ia caminhando, pendurado na mão do cívico, dei­xando atrás um rasto de água. Ia trágico e ridí­culo, com a blusa de gola decotada, como vestido de menino, à maruja.Custou-lhe a pronunciar o nome da rua onde morava: Madalena. O representante da autori­dade chamou um táxi. Nenhum queria vir. - Quem é que paga o estofo? Pendura-o aí a secar e depois fala comigo. . .Ramon tremia dos pés à cabeça, com os bra­ços caídos, a bater os dentes, mas tentando sor­rir. - Queres que te tire o número?E o polícia, abrindo a porta do primeiro táxi, atirou Ramon lá para dentro, entrando a seguir. - Vamos lá embora. Para a Rua da Madalena.O táxi roncou e andou. Agora notava-se um cheiro desagradável, que vinha das roupas mo­lhadas. - Que diabo é isso! Ó homem, então você está a chorar?! Olhe que não vai prà esquadra, vai para sua casa!Ramon passou a mão pelos olhos, enxugando uma lágrima rebelde. E sorriu. - Sim, sinhor... - Atirou-se de propósito! - Nan... - Então não o entendo. - Peço desculpa... - Que diabo! Então você é um homem de sorte, salva-se por um cabelinho, e agora põe-se­-me pra aqui com uma cara de enterro... Que diabo!...Estavam a chegar. O polícia perguntou-lhe o número da porta. Ficou a pensar, como quem não se lembra. «É um homem de sorte...» Mas pensava noutra coisa. E por fim respondeu: - 42. - Pararam. Entrou para a escada e disse que ia buscar dinheiro. Subiu no vão escuro, ainda a chapinhar nos degraus. Quando chegou lá acima, ao 4.° andar, escutou à porta. Não ouviu nada. Deviam estar ainda a dormir. - Quem é?A voz da mulher, na cozinha. Ficou estacado. - Quem é?! - Repetiu a mesma voz. E apa­receu a cabeça cheia de papelotes. Ramon, então, avançou, indiferente, no escuro do corredor. E ela disse: -Ah!, és tu!... Vens fartinho? Foi d'ar­romba!... Não te chegava uma festa como a dos outros!... Foi a noite toda, seu... Mas... Oh!... Oh!... Estás no entrudo, bebedana? Oh!...E tirou-se da frente da porta, para a luz dar melhor no pobre de Cristo, que avançava, vestido de marinheiro, todo pingão. E repetiu com maior espanto:- Oh!... Oh!...- Ohl... Oh!... Merda!- Pára aí!... Uns raios te partam! que me sujas a casa!... Vai-te despir à cozinha!...E saiu-lhe à frente, a cortar o caminho. Apa­receu a criada a espreitar. Ramon sentiu-se um animal cercado. E ao mesmo tempo que a empur­rou para o lado, teve uma quebra de ânimo e ex­plicou: - Vou buscar dinheiro para o táxi... - Ah!, de táxi!... Mas donde é que tu vens, ó lord sopa?... - Caí ao rio... - murmurou com uma voz de quem ia começar a chorar. Então ela atirou uma gargalhada estridente e desatou a rir, em coro com a criada. - Caiu ao rio... Lolita, anda cá ver o teu pai! . .. Lolita!...E guinchavam às gargalhadas, enquanto Ra­mon entrava no quarto e se dirigia à cómoda para abrir a gaveta. A filha correu estremunhada, em camisa. E ao entrar no quarto casquinou um riso seco e ia dizer qualquer coisa quando o pai lhe atirou um berro: - Fora daqui!Mas as gargalhadas redobraram. A mulher aproximara-se, para o ver bem, e ria com sufo­cação, engasgada, enquanto Ramon, com esforço, metia a mão no bolso da calça para tirar as cha­ves. Mas o bolso estava colado. Com dificuldade conseguiu arrancar a mão lá de dentro. E elas rebolavam-se sobre a cama, uivavam. Sentindo uma coisa volumosa no bolso do casaco, que ainda tinha debaixo do braço, tirou uma laranja podre, que atirou para o chão. A filha, espojando-se, ganiu: -E pescou!...A mãe já tinha uma dor do lado, «ai que morro hoje!», e no ataque de gargalhadas lim­pava à fralda as lágrimas do riso.Ramon, a tiritar, roxo de frio, com os dentes a chocalharem, puxava a gaveta e tirava o di­nheiro. Embrulhou-se num cobertor da cama e os queixos batiam de tal maneira que lhe custou a dizer à criada: - En... tregue lá em baixo. E saiu para o corredor.Foi à sala de jantar, tirou do armário a gar­rafa da aguardente, meteu à boca e bebeu a fartar. Depois voltou para o quarto. Elas ainda tossiam uns restos soltos da risota. Como se não estivesse ali ninguém, sentou-se numa cadeira e desapertou os sapatos. Desabotoou as calças... - Lembra-te que está aqui a tua filha. Indiferente, deu um jeito para acabar de as despir. A mulher pegou na mão da menina e pu­xou-a para fora. - Indecente!...E saíram. Acabou de se despir. Meteu-se na cama, aconchegou a roupa ao pescoço e fechou os olhos, sentindo-se descer, afundar no seu abis­mo de escuridão e quase de paz, onde não che­gava ao fundo.


*3Ramon era argentino, de Buenos Aires. Tinha vindo à Europa numa orquestra de tangos, mas em Lisboa casou-se e ficou relojoeiro. Às vezes ainda suspirava: «Mi Buenos Aires!...» E aquela saudade matava-o. Nesta noite era uma dor fina, um sentimento mais vago, que ele não compreen­dia bem. Como costumava, foi a casa buscar a viola, para ir reunir-se com os amigos habituais, numa taberna próxima do Arco-das-Portas-do­-Mar, ali para os lados da Alfândega. Lá estavam todos. Quando entrou, aclamaram-no: - Eh!... Viva D. Ramon!...Sentou-se a uma mesa, ao fundo, e daí a pouco estava a tocar e a cantar. E tocou e cantou até que, sem voz, bêbado e rouco, caiu para um canto, a chorar, abraçado à viola. Então um amigo levantou-o como quem agarra num saco mal cheio e pô-lo outra vez em cima do banco: - Ramon!... - Ramon...?!... quê Ramon... ?!... - Anda! Levanta-te!...E, agarrando-o pelos braços, ergueu-o. Mas ele, invertebrado, deixou-se cair outra vez pesa­damente sobre o banco. E o amigo, com paciên­cia, tornou a erguê-lo: - Vá!... Vamos para casa... - Casa?... Qual... casa?! Mi casa... es en Buenos... Aires...E numa voz roufenha, mastigando as pala­vras quase ininteligíveis, começou com grande esforço a querer cantar:Mi... Buenos Aires...te... tiengo... en el... corazón...E o outro, que já o tinha levado até à porta, amparando-o com o braço, empurrava-o: - Vá... vê se caminhas... Ou deixo-te aqui e vais dormir à polícia. - Si también me dejas!... - Não... Vá.E lá foi indo, devagar, arrastado, aos tropeções... Sentia entrar no peito o ar fresco da noite, engolido às lufadas. E isto, a pouco e pouco, reanimava-o, enrijava-lhe as pernas moles. Ia calado, mas quando chegou à porta de casa começou a falar: - Mi hija Catarina... Conocias?... pobre­cita!... – E olhou para as janelas da casa. – Ya no está... non... - Deixa lá isso...Encostado ao amigo, soluçou: - Ya... La he dado a un hombre de barbi­cha...Parado na borda do passeio, diante da porta, com a voz entrecortada pelos soluços, gemia: - La outra... todavia... estará ou non... Es una, como te digo... sinverguenza... E ahora... que le farias?... Mi mujer – que paz!... estará dormindo. Te digo: Quando la tengo en frente de mis ojos, pienso: Ando en la gracia de Dias: si non, como poderia yo tolerar-la?O outro sorriu: - Acredito. Mas vá lá. Abre a porta.Tirou do bolso a chave e com lentidão cami­nhou para o degrau, estendeu o braço e a porta abriu--se. Depois voltou-se para o amigo: - E tu?... Te hace falta, la gracia?.. - Pois sim... Faz... Vá!Empurrou-o para dentro da escada e puxou a porta, já farto: - Boa noite.E desandou, apressado, pela rua abaixo. Mas Ramon tornou a abri-la, deitou a cabeça de fora e, fazendo uma vagarosa vénia para a parede fronteira, disse em voz cerimoniosa: - Buenas noches!E, recolhendo-se, fechou outra vez a porta. Mas como se esperasse uma resposta e ninguém lha tivesse dado, no mesmo instante tornou a abri-la, saltou à rua e atirou um berro: - Buenas noches!Caindo logo num tom choroso: - Hombre!... una morte inglória!... en mi sangre!Mas cambaleou e caiu no passeio, ficando sentado junto à parede da casa, com as mãos na cara.A rua estava deserta. No céu, com laivos brancos, a Lua corria por entre nuvens. Começa­ram a cair umas gotas de chuva. Ramon, imóvel, dobrado sobre os joelhos, parecia adormecido. Mas não. Tinha os olhos muito abertos, brilhantes, húmidos, fitos nas pedras da calçada, como numa ideia fixa. O casamento de Catarina tinha che­gado a realizar-se só porque ele nunca tivera a coragem de dizer o que pensava, de falar com sinceridade. Só porque tinha tido medo de tomar essa responsabilidade e um dia arrepender-se. Damião era rico. Pesava, portanto, na balança, uma coisa certa: o dinheiro. Isto era pouco, para ele. Mas do outro lado que pesava? Ah!, pesava tudo! Mas esse tudo num instante podia ser nada, porque era só o sonho... E dias e dias, ,e meses e meses, Ramon interrogara-se: «Antes poco que nada? Talvez... Pero... poco, si no llega! Ah! no! Antes nada que poco! O todo, ó nada! O todo, ó nada!» E estes gritos interiores davam-lhe uma repentina satisfação, uma íntima sensação de triunfo e de força. Mas, como um boneco de bor­racha que se enchesse de vento e logo se esva­ziasse, no mesmo momento amolecia, se defor­mava e então via debaixo daquela ideia apare­cer uma outra verdade persistente: porque na vida ninguém pode ter tudo, e viver é mesmo fal­tar sempre alguma coisa. «Alguna cosa». E diante de Catarina, numa inversão de raciocínio, era já só este pensamento que lhe vinha: «Al menos, de momento, ya tiene alguna cosa: dinero!» No fundo sentia a necessidade de gritar-lhe que não, que só dinheiro não valia nada. Mas tinha medo de um dia a ver ainda mais desgraçada, e só que­ria poder calcular qual seria a desgraça menor. Tudo o que dizia era duvidoso e vago. E os outros tinham aproveitado para convencer Catarina de que o pai queria que ela casasse com Damião e que se falava assim era só para lhe deixar liber­dade de escolha. E Ramon sabia tudo o que se passava, o cerco em que a fechavam, as lindas cores que lhe pintavam, a asfixia que a rodeava. E naquela angústia de não saber para que lado havia de ir, deixou que as coisas chegassem até ali. Agora estava tudo acabado! Tudo!... Sem re­médio. «Una morte inglória!» Cerrava os dentes: «Oh! que misero soi!...» A chuva começara a cair com força. As calças colavam-se-lhe às pernas e Ramon tremia de frio. Com o olhar espantado, revendo naquele momento tudo o que se tinha passado, desde os mais insignificantes pormeno­res, desde o princípio até hoje, tinha agora um espectro diante dos olhos: Damião, enorme e sô­frego, a babar-se de sensualidade. E sentiu, de repente, vontade de o matar. Foi um estremeção que lhe percorreu o corpo todo. Levantou-se e começou a correr pela rua abaixo. Mas logo domi­nou a fúria e seguiu a passo, num passo rápido, apertado e enérgico. Soprava, às rajadas, um vento frio que atirava a chuva de rastos pela rua. O chão rebrilhava como se fosse de vidro, e as cordas de água batiam nas manchas de luz e fugiam diante dele, que cambaleava, com as per­nas a dobrarem-se, moles. Até que estacou, olhou as casas em volta e reconheceu o local. Atraves­sou a rua e parou, examinando a frontaria da casa. Procurou a campainha. Não a viu. Tacteou com as mãos, na sombra da ombreira. E, não en­contrando nada, atirou-se contra a porta, a bater com os punhos fechados. - Eh! Eh! Que é isso aí?... correu aos gritos o guarda-nocturno.Ramon não ouvia e continuava a bater, até que o homem, chegando ao pé dele, o sacudiu pelos ombros: - Que é isso?!Como se o fulminassem, ficou suspenso, com as mãos no ar, contra a porta, atarantado, sem responder. Então o guarda gritou-lhe: - Que é que você quer!? - É... que mora aqui a minha filha... que casou... com o sinhor Damião... - E isto são maneiras? Vem bêbado?... ou quê?... - Faça o favor de desculpar. - Desculpar?!... - Era só um recado... - Embora, vamos embora daqui!...E Ramon, escorraçadamente, deu dois passos para obedecer. Mas de súbito parou e voltou-se com um assomo de revolta: - Peço desculpa! Mas tenho de ir lá acima falar. O sinhor non manda em mim.Então o guarda cresceu para ele ameaçado­ramente e Ramon, encolhendo-se contra a parede, mastigou, numa voz rastejante e chorosa: - Si o sinhor tivesse una filha, compreen­deria... que é una dor de pai...E, pondo as mãos a tapar a cara, começou a soluçar convulsivamente. O guarda impressio­nou-se: - Bom, bom...E sem dizer mais nada foi abrir a porta. Acendeu a luz. Ramon entrou e começou, deva­gar, pensativo, a subir a escada. A luz apagou­-se. Quando chegou ao primeiro patamar falta­ram-lhe os degraus e foi esbarrar contra a parede. Com um pé sondou em frente e encontrou o lance seguinte. Mas ficou encostado à cal fria. Toma­va-o um desfalecimento que lhe descia da cabeça até aos pés. Tinha vindo num ímpeto invencível. Ah! mas agora sentia-se já sem forças, sem con­vicção para nada. Afinal, para que ia ali? Sim, agora?! «Mi Dios!... Quien puede decir que fué mi culpa? Yo? Querida! Só por tu felicidade ei soñado siempre, y quando te vi de novia, tan linda! con el velo de paloma, te vi que ias desgra­ciada...» E apertava a cara nas mãos, num deses­pero grotesco e trágico quando ouviu, de cima, da escuridão, gritarem: - Quem está aí?!Ficou hirto e calado. No silêncio ouviam-se passos e acendeu-se outra vez a luz, que mostrou a escada toda até à rua. E a mesma voz insistiu, num tom áspero: - Quem é?Então respondeu timidamente: - O Sr. Damião está?Olhando para cima, viu um homem embru­lhado num sobretudo, com as calças do pijama aparecendo por debaixo, debruçar-se no corrimão da escada para o ver bem. - Damião?... É aí. A esta hora!... (E me­tendo-se para dentro): Animais!...Constrangido, balbuciou: - Muito obrigado.O homem desapareceu, bateu com a porta e apagou-se a luz. Ramon, de repente outra vez às escuras, como cego, estendeu as mãos a tac­tear. Sentiu-se ridículo, humilhado, atarantado como um idiota. E o que queria era sair dali sem ninguém o ver, sem fazer barulho, encontrar-se na rua e correr, meter-se em casa, fugir de tudo. Então começou a descer a escada, agarrado ao corrimão, pondo os pés a medo sobre os degraus, que rangiam. E no silêncio, na escuridão, aquele ranger era desconforme, parecia-lhe que devia ouvir-se por todos os andares e iam acender-se as luzes e a todas as portas apareciam muitas pes­soas admiradas, a olhá-lo. O gemer das tábuas era cada vez maior, devia ouvir-se já na rua. Em toda a cidade adormecida se ouvia agora aquele gemido sobrenatural que lhe fazia estalar a cabeça.. E o guarda-nocturno estaria lá ao fundo... De repente, sentiu debaixo da mão uma coisa mole, húmida e fria. Ficou hirto e suspenso, sem respirar. Mas compreendeu que era um pano mo­lhado que estava estendido no corrimão. Tinha acabado a escada. Com as mãos trémulas, a apal­par no escuro, procurou ansiosamente a porta. Um suor frio caía-lhe em bagas pela testa abaixo.Cego, aflito, tacteava as paredes. Até que encon­trou, e, arrastando as palmas das mãos pela ma­deira da porta, encontrou o fecho. Abriu. Entrou a luz do candeeiro da rua. Deu mais um passo e caiu, sentou-se no degrau. As sombras e clari­dades davam à rua a transfiguração de entre a realidade e o sonho, numa deformação em que já não havia, em nada, a nitidez das linhas. Estava ali bem.Tinha parado a chuva. Também já não so­prava o vento. Pôs-se em pé e foi andando deva­gar. E inconscientemente dirigia-se para casa. Quando dobrou a esquina da rua onde morava, viu que estava alguém à porta. Aproximou-se, reconheceu a filha mais nova, la cabra, e ouviu­-lhe a voz melíflua: -Ah!... o Papá!...Calado, procurava a chave nos bolsos. Pelo passeio oposto vinham a descer dois tipos afa­distados, de boné. Quando passaram em frente, um deles atirou-lhe: - Ó caguinchas, larga a ninfa!...A rapariga rosnou por entre dentes: - Bes­tas... -, sentindo-se insultada por a julgarem com um homem assim, ela que só era acompa­nhada pelos elegantes dos clubes. Mas Ramon, encontrando, enfim, a chave, escancarou a porta para a filha entrar e gargalhou um frouxo riso amargo e de desprezo: - Nínfia!...4Ficou parado, na rua, a olhar em volta, como se naquele momento tivesse acordado num sítio desconhecido. Ouvia vagamente os passos da filha a subir a escada, devagar, ralaça e mole da boé­mia. Uma rajada de vento bateu com a porta. Continuou, com o olhar lento, a percorrer as fachadas dos prédios, as janelas, as portas, os telhados, o céu, que já empalidecia da madru­gada... Sentia a cabeça tonta e encostou-se àparede. Lá no alto duma trapeira via uma enfiada de roupa branca, estendida num cordão, ao vento, como bandeiras dum navio em festa.O céu tinha começado a clarear. Eram cinco horas da manhã. De tempos a tempos soavam uns passos a martelar pela calçada abaixo. Ope­rários mais madrugadores, que tinham trabalho fora da cidade, e iam tomar o comboio, ou o barco para Cacilhas. Do outro lado rodou uma carroça a caminho da Praça da Figueira. Ramon conhecia bem todos aqueles ruídos da madrugada. O despertar da cidade... De repente, esta ideia fez-lhe um calafrio: Ontem?!... Tudo passado! Desencostou-se da parede e começou a descer a rua, curvado. A boca mastigava-lhe uns sons in­compreensíveis, de que se distinguiam umas pa­lavras repetidas: «Ayer, ayer... Responsabili­dad... No. Mi responsabilidad... E luego me van a decir... com cariño, Ramoncito, oye...» Por vezes apressava o passo. Mas logo descaía num divagar lasso, de passos ao acaso, andando para a frente sem saber para onde.E de repente um ronco de monstro gelou-o de terror. Mas era a sereia dum navio.Estava nas docas. Por cima dos telhados dos barracões do cais viam-se os mastros dos paque­tes e as chaminés. Só duma saía fumo. Os arma­zéns cinzentos ladeavam uma rua suja, ao fundo da qual começava a brilhar a fita lodosa do rio. Foi indo até um largo onde estavam automóveis parados, em fila. À volta dum quiosque, conver­savam sete ou oito homens, chauffeurs e carre­gadores, que fumavam e tomavam café. Um deles disse com a voz vagarosa: - Está a chegar.Ramon, com um cigarro na mão, dirigiu-se ao quiosque para comprar uma caixa de fósforos, mas um dos carregadores ofereceu-lhe lume. «Faz favor»... Era um homem alto, gordo, ves­tido de ganga azul, um desses tipos intrometidos e faladores. Encostou o cigarro ao dele e chupou, logo interrompido pela informação amável: - Olhe! Aí vem ele.Era um transatlântico que subia o rio e se aproximava do cais. Olhou: o coração bateu-lhe com força. Queria falar, mas tinha um vazio na cabeça, como se não conseguisse compreender nada. Tossiu para sentir algum som da garganta.O outro, como quem recebe um hóspede nos seus domínios, dizia-lhe: - Bem... vamos lá... Espera alguém de fa­mília, não? Ramon respondeu engasgadamente: - Eu?... Sim, sim... espero... Mas não sei se virá... - Já se vê. Tem bilhete? - Não; bilhete não. - Então compre ali. O belo do vigário... Pa­ciência! Tudo a caroço. E é para quem quer; e no fim muito obrigado... Ali...Apontou-lhe uma bilheteira ao pé dum por­tão gradeado. Ramon estava congestionado, sen­tia o calor subir às orelhas e ,as veias latejarem na testa como se fossem estalar. E o outro excla­mava: - É um belo barco! O senhor devia mas era ter trazido um bilhete da Companhia para ir lá ver aquilo por dentro. Mete respeito!...Do meio do nevoeiro que se esfumava por cima das águas do rio, veio outro ronco de sereia, um som profundo e volumoso. Ramon caminhava ao lado do carregador, inconsciente, como se fosse hipnotizado. Sentia, através dum vago sonambu­lismo, a necessidade de fingir que, na verdade, ia esperar alguém. Não tinha coragem de dizer esta coisa tão simples: «Não, não venho esperarninguém. Andava por aqui só a passear. Mais nada». O outro havia de olhá-lo sem compreender. Não, não se sentia com forças para explicações, nem para suportar olhares de espanto. Era esta a des­graça de Ramon: a falta de coragem para escla­recer as situações equívocas, fossem elas as mais fáceis, as mais simples. No íntimo pensava: «Não vale a pena... O principal é autra coisa. Isto tanto faz. Ousta-me menos fingir que sim». Aquilo de ir ver a chegada dos barcos até podia distraí-lo. Tinha gostado sempre daquela vida agitada e romântica dos cais, donde, sobre ondas e ventos, se vem e vai para todo o mundo. - É aí... - e o carregador apontou-lhe, outra vez, o buraco da bilheteira. - São dez tostões.Ramon procurou o dinheiro no bolso e foi comprar o bilhete. Sem dizer nada pousou a moeda diante do empregado e recebeu um qua­dradito de papel. Um longo gradeamento de ferro fazia a separação entre o cais, o armazém da Al­fândega e aquela rua de barracões baixos e com­pridos. O carregador estava à espera dele, ao pé dum portão vigiado por dois guardas-fiscais. Um empregado, silencioso e grave, estendeu a mão para receber o bilhete de que Ramon se esquecia, a caminhar ao lado do companheiro, que recome­çara a falar: - Então, o senhor é espanhol? - Non... argentino... - Argentino?!. .. Grande terra!... - Ah!, sim.Para chegar ao cais atravessava-se o barracão da Alfândega, uma espécie de armazém, que tinha ao centro um balcão baixo, em quadrilátero, dentro do qual estavam os guardas-fiscais. Ali se abrem as malas e se lhes põe a cruz de giz: visto. Um portal largo dava para o rio, sobre a mura­lha alta. E para os dois lados, ao longo da mar­gem, uma estrada de pedra, entre os armazéns e a água que desliza lá em baixo, viscosa e turva. Uma multidão compacta e imóvel olhava para o rio e erguia no ar um coro difuso de falaça. O barco manobrava ao longe, esfumado na névoa, perto da outra margem, para dar a volta ao jeito da corrente. Tinha subido o rio até um pouco acima e agora descia enviesado na direcção do molhe.A neblina da madrugada desfazia-se a pouco e pouco sobre as águas cinzentas, e o céu tomava um tom cor-de-rosa. O Sol surgiu no horizonte, como um disco em brasa. E 0 barco, lentamente, aproximava-se. Já havia manchas de sol na Outra-Banda, em Almada, nas casitas brancas espalhadas sobre as arribas altas, cortadas a pique sobre o rio. E o carregador falava, mas Ramon não o ouvia. Doía-lhe a cabeça, enchia-se­-lhe a boca duma aguadilha, como se estivesse para vomitar, e tinha vertigens súbitas. Fechando os olhos, sentia o corpo oscilar lentamente paraum lado e para outro. E 0 companheiro soprou­-lhe de repente ao ouvido: - Olhe!, aquele é o ministro, o seu ministro. Vem aqui muita vez. (Mas reparou em Ramon). Que é isso? Está incomodado? - Não... Ah! Sim, é aquele, é... - Mas veja lá;,... se não está bem... Sente-se aqui. -Não... isto passa. Foi qualquer coisa que comi.O outro, agarrando-o por um braço, olha­va-o confrangido. - Até está amarelo. Sente-se neste caixote.Ramon sentou-se. E vagamente via o grande transatlântico deslizar sobre as águas negras, avançar como um grande gume, a proa alta, uma fantástica casa branca, de janelinhas abertas, os mastros finos, as chaminés azuis e um emara­nhado de fios por cima de tudo. Como se fosse uma alucinação, era agora monstruoso e vinha a cair para cima dele. Então o paquete virou sua­vemente e viu-se o tombadilho cheio de gente.De súbito começaram a gritar-lhe aos ouvi­dos: - Pablo! Pablo!! Pablo!!!... Mira! Pablo! Pablito! Pablo!...Era uma vozearia infernal. Ramon quis fu­gir dali; ergueu-se, tonto, como se estivesse ainda embriagado, e foi pelo cais adiante, no meio dum burburinho de gritos alegres, de bocados de fra­ses atiradas ao ar. E o navio estava sobre o cais.Lento, muito lento, ainda deslizava, quase a roçar as pedras, a encostar-se melhor. E lá em cima, no tombadilho, debruçavam-se centenas de pessoas. Cá em baixo a multidão caminhava pela muralha, acompanhando o andamento do barco e berrando para os conhecidos que, debruçados na amurada, gritavam também. E ninguém entendia nada. Ramon, que tinha fugido, foi outra vez en­volvido por aquela onda humana. O paquete estava agora parado, mas a força da corrente retesava o cabo que o prendia a um cabeço de ferro, e que rangia, a esticar. A escada de rodas avançava para o costado. Ramon bateu com os joelhos contra o cabo de aço e caiu à água, entre o barco e o cais. Foi um momento de pânico, de gritos e correrias. Caíra lá em baixo, de chapão, na água suja, oleosa, e desaparecera. Tinha feito uma pequena roda de espuma que ia levada na corrente. Do alto do navio atiraram uma bóia para o sítio onde ele mergulhara. Mas o revolver das águas trouxe o corpo ao de cima, já pela proa do paquete, e bateu com ele no costado do rebocador. Um dos marítimos lançou-lhe a mão. Puxaram-no para cima, mole, dobrado em dois, como um farrapo. Mas ainda respirava. Trazia a boca muito aberta e dava um rouquido baixo. Estenderam-no no chão e começaram a gingar­-lhe com os pés e com os braços. Principiava a respirar melhor. Por fim abriu os olhos e viu lá em cima uma roda de cabeças, como se estivesse no fundo dum poço. - Ah! Ladrão! Que és um homem de sorte! - exclamou um deles. Teve vómitos e deitaram-no de borco. Aos uivos, lan­çou espuma, água e bocados de palha. - Já tinha almoçado - murmurou a mesma voz irónica. E foi uma gargalhada geral. Estenderam-no outra vez de costas e ficou amodorrado. Despiram-no da cinta para cima e um marinheiro, de joelhos, começou a friccioná-lo com as mãos, no peito e nos braços, como quem lava o chão.Por fim enfiaram-lhe pela cabeça abaixo uma velha blusa de marujo. Dobrava-se para um lado e para o outro, como se fosse de borracha. Cal­ças é que não havia. - Já apanhas só meia pneu­monia. - O rebocador subia o rio.No paredão, cercado de gente, o carregador barafustava, tomando ares de importância, por­que afinal ninguém sabia quem é que tinha caído à água: - Argentino, pois! Sim, senhor! argentino! Disse-mo ele a mim, quando entrou!... Que vinha esperar uma pessoa de família, sim, pois!? Quem? Sei lá quem!... Larguem-me o casaco! Ó minha senhora, deixe-me! Qual loiro!... Chama­va-se... larguem-me! Já o pescaram: vá ver, que traz o nome na coleira! Eu vi lá o homem mais gordo?...Porém, a pouco e pouco, tudo serenou. Já tinham verificado que, afinal, não faltava nin­guém, nem os parentes, nem os amigos. Na ver­dade tinha sido só «um tipo qualquer»...Desembarcaram-no na doca. Entregaram-no, mais o embrulho do casaco molhado, a um polí­cia, que o amparou pelo braço. Dobravam-se-lhe as pernas, amolecidas, coladas às calças. Sem chapéu, com o cabelo caído para cima das ore­lhas, todo a escorrer e a tremer de frio, lá ia caminhando, pendurado na mão do cívico, dei­xando atrás um rasto de água. Ia trágico e ridí­culo, com a blusa de gola decotada, como vestido de menino, à maruja.Custou-lhe a pronunciar o nome da rua onde morava: Madalena. O representante da autori­dade chamou um táxi. Nenhum queria vir. - Quem é que paga o estofo? Pendura-o aí a secar e depois fala comigo. . .Ramon tremia dos pés à cabeça, com os bra­ços caídos, a bater os dentes, mas tentando sor­rir. - Queres que te tire o número?E o polícia, abrindo a porta do primeiro táxi, atirou Ramon lá para dentro, entrando a seguir. - Vamos lá embora. Para a Rua da Madalena.O táxi roncou e andou. Agora notava-se um cheiro desagradável, que vinha das roupas mo­lhadas. - Que diabo é isso! Ó homem, então você está a chorar?! Olhe que não vai prà esquadra, vai para sua casa!Ramon passou a mão pelos olhos, enxugando uma lágrima rebelde. E sorriu. - Sim, sinhor... - Atirou-se de propósito! - Nan... - Então não o entendo. - Peço desculpa... - Que diabo! Então você é um homem de sorte, salva-se por um cabelinho, e agora põe-se­-me pra aqui com uma cara de enterro... Que diabo!...Estavam a chegar. O polícia perguntou-lhe o número da porta. Ficou a pensar, como quem não se lembra. «É um homem de sorte...» Mas pensava noutra coisa. E por fim respondeu: - 42. - Pararam. Entrou para a escada e disse que ia buscar dinheiro. Subiu no vão escuro, ainda a chapinhar nos degraus. Quando chegou lá acima, ao 4.° andar, escutou à porta. Não ouviu nada. Deviam estar ainda a dormir. - Quem é?A voz da mulher, na cozinha. Ficou estacado. - Quem é?! - Repetiu a mesma voz. E apa­receu a cabeça cheia de papelotes. Ramon, então, avançou, indiferente, no escuro do corredor. E ela disse: -Ah!, és tu!... Vens fartinho? Foi d'ar­romba!... Não te chegava uma festa como a dos outros!... Foi a noite toda, seu... Mas... Oh!... Oh!... Estás no entrudo, bebedana? Oh!...E tirou-se da frente da porta, para a luz dar melhor no pobre de Cristo, que avançava, vestido de marinheiro, todo pingão. E repetiu com maior espanto:- Oh!... Oh!...- Ohl... Oh!... Merda!- Pára aí!... Uns raios te partam! que me sujas a casa!... Vai-te despir à cozinha!...E saiu-lhe à frente, a cortar o caminho. Apa­receu a criada a espreitar. Ramon sentiu-se um animal cercado. E ao mesmo tempo que a empur­rou para o lado, teve uma quebra de ânimo e ex­plicou: - Vou buscar dinheiro para o táxi... - Ah!, de táxi!... Mas donde é que tu vens, ó lord sopa?... - Caí ao rio... - murmurou com uma voz de quem ia começar a chorar. Então ela atirou uma gargalhada estridente e desatou a rir, em coro com a criada. - Caiu ao rio... Lolita, anda cá ver o teu pai! . .. Lolita!...E guinchavam às gargalhadas, enquanto Ra­mon entrava no quarto e se dirigia à cómoda para abrir a gaveta. A filha correu estremunhada, em camisa. E ao entrar no quarto casquinou um riso seco e ia dizer qualquer coisa quando o pai lhe atirou um berro: - Fora daqui!Mas as gargalhadas redobraram. A mulher aproximara-se, para o ver bem, e ria com sufo­cação, engasgada, enquanto Ramon, com esforço, metia a mão no bolso da calça para tirar as cha­ves. Mas o bolso estava colado. Com dificuldade conseguiu arrancar a mão lá de dentro. E elas rebolavam-se sobre a cama, uivavam. Sentindo uma coisa volumosa no bolso do casaco, que ainda tinha debaixo do braço, tirou uma laranja podre, que atirou para o chão. A filha, espojando-se, ganiu: -E pescou!...A mãe já tinha uma dor do lado, «ai que morro hoje!», e no ataque de gargalhadas lim­pava à fralda as lágrimas do riso.Ramon, a tiritar, roxo de frio, com os dentes a chocalharem, puxava a gaveta e tirava o di­nheiro. Embrulhou-se num cobertor da cama e os queixos batiam de tal maneira que lhe custou a dizer à criada: - En... tregue lá em baixo. E saiu para o corredor.Foi à sala de jantar, tirou do armário a gar­rafa da aguardente, meteu à boca e bebeu a fartar. Depois voltou para o quarto. Elas ainda tossiam uns restos soltos da risota. Como se não estivesse ali ninguém, sentou-se numa cadeira e desapertou os sapatos. Desabotoou as calças... - Lembra-te que está aqui a tua filha. Indiferente, deu um jeito para acabar de as despir. A mulher pegou na mão da menina e pu­xou-a para fora. - Indecente!...E saíram. Acabou de se despir. Meteu-se na cama, aconchegou a roupa ao pescoço e fechou os olhos, sentindo-se descer, afundar no seu abis­mo de escuridão e quase de paz, onde não che­gava ao fundo.

marcar artigo