Em 2004, Fernando Cabral Martins publicou, na & Etc, um pequeno volume de ficções intitulado Viagem ao Interior. Foi o seu regresso ao universo das descontinuidades narrativas em que parece sentir‑se tão bem. Autor de um ensaio fundamental sobre Mário de Sá‑Carneiro (O Modernismo em Mário de Sá‑Carneiro, Estampa, 1997) e de títulos de poesia e de prosa ficcional, responsável ou co‑responsável pela edição cuidada e rigorosa das obras dos mais importantes modernistas portugueses, publicara, em 2002, O Deceptista, um livro de características similares ao de que agora falo. O que esta prosa nos vem revelar é uma voz capaz de invocar e de associar elementos aparentemente díspares, formando conjuntos cuja dimensão insólita é acentuada pelas interrupções ou mesmo quebras nas sequências narrativas. É nesse sentido que se pode dizer que a ficção de Cabral Martins procura a decepção do leitor, isto é, ela obriga‑o a suspender a expectativa de encontrar um discurso marcado pela linearidade e pela subordinação. Aqui, como em toda a prosa digna de registo que a modernidade literária produziu, a construção do mundo revela uma dimensão aleatória e instaura uma sensação de incompletude. Saliente‑se que duas das ficções, ou fragmentos ficcionais, se chamam precisamente «Por Instinto» e «Jogo de Acaso», terminando, esta última, com a seguinte frase: «Não somos nada, não fazemos nada, apenas continuamos» (p. 84). A expressão deste movimento esvaziado de sentido é abruptamente interrompida, como se as luzes do palco se apagassem sem transição, instalando o leitor no desconforto inquietante que a literatura deve ser capaz de produzir, pelo menos se pretender recusar o papel de mero objecto de consumo da indústria cultural.
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Em 2004, Fernando Cabral Martins publicou, na & Etc, um pequeno volume de ficções intitulado Viagem ao Interior. Foi o seu regresso ao universo das descontinuidades narrativas em que parece sentir‑se tão bem. Autor de um ensaio fundamental sobre Mário de Sá‑Carneiro (O Modernismo em Mário de Sá‑Carneiro, Estampa, 1997) e de títulos de poesia e de prosa ficcional, responsável ou co‑responsável pela edição cuidada e rigorosa das obras dos mais importantes modernistas portugueses, publicara, em 2002, O Deceptista, um livro de características similares ao de que agora falo. O que esta prosa nos vem revelar é uma voz capaz de invocar e de associar elementos aparentemente díspares, formando conjuntos cuja dimensão insólita é acentuada pelas interrupções ou mesmo quebras nas sequências narrativas. É nesse sentido que se pode dizer que a ficção de Cabral Martins procura a decepção do leitor, isto é, ela obriga‑o a suspender a expectativa de encontrar um discurso marcado pela linearidade e pela subordinação. Aqui, como em toda a prosa digna de registo que a modernidade literária produziu, a construção do mundo revela uma dimensão aleatória e instaura uma sensação de incompletude. Saliente‑se que duas das ficções, ou fragmentos ficcionais, se chamam precisamente «Por Instinto» e «Jogo de Acaso», terminando, esta última, com a seguinte frase: «Não somos nada, não fazemos nada, apenas continuamos» (p. 84). A expressão deste movimento esvaziado de sentido é abruptamente interrompida, como se as luzes do palco se apagassem sem transição, instalando o leitor no desconforto inquietante que a literatura deve ser capaz de produzir, pelo menos se pretender recusar o papel de mero objecto de consumo da indústria cultural.