Da Literatura: ALMADA NEGREIROS

21-05-2009
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Hoje no Público:O que é que as pessoas comuns retêm de Almada Negreiros? A imagem de um artista excêntrico que em 1969 foi entrevistado por Solnado para o programa de televisão Zip-Zip, e que é autor de obras emblemáticas de Lisboa: os vitrais da Igreja de Nossa Senhora de Fátima, os frescos das gares marítimas de Alcântara e da Rocha do Conde de Óbidos, inúmeros detalhes ornamentais da Cidade Universitária e, naturalmente, o enorme painel que domina o átrio da Fundação Calouste Gulbenkian. De um modo geral, poucos têm consciência do lugar de Almada na literatura portuguesa. E, no entanto, como muito bem observou Fernando Cabral Martins, «Almada tem uma dimensão como artista no século XX português que só é comparável à de Pessoa.» (cf. Poemas, 2001) A edição das suas obras completas, em curso de publicação há cinco anos, deve contribuir para o reposicionar no cânone. Embora Manifestos e Conferências seja o número cinco, apenas estão publicados quatro volumes, uma vez que o dedicado ao teatro ainda se encontra no prelo. A este podemos lê-lo como sinopse do modernismo português. Coube a sua edição a uma equipa formada por Fernando Cabral Martins, Luis Manuel Gaspar, Mariana Pinto dos Santos e Sara Afonso Ferreira. O que são manifestos? São «rasgos de efusão teatral [...] metonímias de um gesto total, que pela sua leitura se desencadeia.» E conferências? Havendo as «que têm as duas formas escrita e oral, outras que apenas revestiram a forma oral e outras ainda que não tiveram senão a forma escrita [...] conferência é um nome de género com grau único de singularidade [...] ligado ao processo da modernidade.» Este volume colige uns e outras. Manifestos, propriamente, são os quatro primeiros textos da colecção, abrindo com o Manifesto anti-Dantas e por extenso, escrito em 1915, lido pelo autor no dia 22 de Outubro desse ano (como reacção à estreia, na véspera, de uma peça de Júlio Dantas), e publicado em 1916. Em 1965 foi efectuado um registo sonoro da sua releitura. O famoso Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas do Século XX, datado de Dezembro de 1917, constitui, como hoje se diz, uma inscrição. No seu caso, desassombrada: «Eu não pertenço a nenhuma das gerações revolucionárias. Eu pertenço a uma geração construtiva. [...] Eu não tenho culpa nenhuma de ser português, mas sinto a força para não ter, como vós outros, a cobardia de deixar apodrecer a pátria. Nós vivemos numa pátria onde a tentativa democrática se compromete quotidianamente. [...] Foi sem dúvida a República portuguesa que provou conscientemente a todos os cérebros a ruína da nossa raça, mas o dever revolucionário da República portuguesa teve o seu limite na impotência da criação.» Adiante, para explicar a natureza fraca dos indígenas e a decadência do país, alinha uma série de conclusões: «[...] porque Portugal quando não é um país de vadios é um país de amadores. [...] E a Literatura com todo o seu gramatical piegas e salista, diverte mais as visitas do que a necessidade de não ser ignorante.» A catilinária termina com uma exortação: «O povo completo será aquele que tiver reunido no seu máximo todas as qualidades e todos os defeitos. Coragem, portugueses, só vos faltam as qualidades.» Não admira o manto de silêncio. As conferências incluem A Invenção do Dia Claro, realizada e publicada em 1921, de ordinário considerada (erradamente) poesia em prosa, e como tal integrando anteriores recolhas da obra poética. O caso de Pierrot e Arlequim, Personagens de Teatro, conferência publicada em 1924 sem nunca antes ter sido realizada, é um bom exemplo das dificuldades, ou ambiguidades de género com que se defrontaram os editores. Uma conferência sobre Walt Disney, Desenhos Animados / Realidade Imaginada, de 1938, realizada no cinema Tivoli por ocasião da estreia do filme Branca de Neve e os Sete Anões, provocou (nas palavras de Luiz Forjaz Trigueiros, que fez o relato da sessão) «uma tossezinha irritante» que alastrou da plateia ao tecto, levando o autor a despedir-se e abandonar a sala. Almada nunca foi uma figura consensual. Foi uma espécie de artista total: poeta, pintor, conferencista, actor e performer. Natural da Roça da Saudade (São Tomé), onde nasceu a 7 de Abril de 1893, veio para Portugal em 1900 para ser internado num colégio de jesuítas. Estudou pintura em Paris e tornou-se colaborador das revistas que marcaram a agenda do seu tempo: o Orpheu, a Contemporânea e o Portugal Futurista. Em 1917 publicou duas obras singulares: o panfleto K4 O Quadrado Azul e a novela A Engomadeira. Fez coreografias para bailados e tapeçarias para o Ritz. Além do romance Nome de Guerra, escrito em 1925 e publicado em 1938, escreveu poemas, manifestos, artigos, contos e peças de teatro. Publicou desenhos em jornais e revistas. Viveu cinco anos em Madrid (1927-32), privando com toda a intelectualidade daquele tempo. Em 1934, casou com a pintora Sarah Affonso, mãe dos seus dois filhos. A revista Sudoeste, lançada em 1935, foi uma das muitas aventuras que arriscou. Em 1954, imortalizou Pessoa num retrato a óleo que esteve exposto durante mais de vinte anos na Brasileira do Chiado. Um dos seus conseguimentos mais controvertidos é a descoberta e defesa teórica da perspectiva dos ladrilhos nos painéis atribuídos a Nuno Gonçalves. Por último mas não em último, os poemas que deixou persistem exemplarmente modernos: A Cena do Ódio, de 1915, ou Aconteceu-me, escrito cerca de 1940, são textos que continuam centrais à poesia portuguesa de Novecentos. Quando, a 15 de Junho de 1970, morreu em Lisboa, tinha 77 anos. O facto de ter assinado intervenções marcantes em edifícios paradigmáticos do Estado Novo (conforme descrito no primeiro parágrafo), conotou-o, talvez injustamente, com regime deposto em 1974. Uma coisa é certa: ninguém apaga uma obra múltipla, de que estes manifestos e conferências são parte não negligenciável.O Artista Total, in MIL FOLHAS, 22-12-2006, p. 6.Etiquetas: Crítica literária

Hoje no Público:O que é que as pessoas comuns retêm de Almada Negreiros? A imagem de um artista excêntrico que em 1969 foi entrevistado por Solnado para o programa de televisão Zip-Zip, e que é autor de obras emblemáticas de Lisboa: os vitrais da Igreja de Nossa Senhora de Fátima, os frescos das gares marítimas de Alcântara e da Rocha do Conde de Óbidos, inúmeros detalhes ornamentais da Cidade Universitária e, naturalmente, o enorme painel que domina o átrio da Fundação Calouste Gulbenkian. De um modo geral, poucos têm consciência do lugar de Almada na literatura portuguesa. E, no entanto, como muito bem observou Fernando Cabral Martins, «Almada tem uma dimensão como artista no século XX português que só é comparável à de Pessoa.» (cf. Poemas, 2001) A edição das suas obras completas, em curso de publicação há cinco anos, deve contribuir para o reposicionar no cânone. Embora Manifestos e Conferências seja o número cinco, apenas estão publicados quatro volumes, uma vez que o dedicado ao teatro ainda se encontra no prelo. A este podemos lê-lo como sinopse do modernismo português. Coube a sua edição a uma equipa formada por Fernando Cabral Martins, Luis Manuel Gaspar, Mariana Pinto dos Santos e Sara Afonso Ferreira. O que são manifestos? São «rasgos de efusão teatral [...] metonímias de um gesto total, que pela sua leitura se desencadeia.» E conferências? Havendo as «que têm as duas formas escrita e oral, outras que apenas revestiram a forma oral e outras ainda que não tiveram senão a forma escrita [...] conferência é um nome de género com grau único de singularidade [...] ligado ao processo da modernidade.» Este volume colige uns e outras. Manifestos, propriamente, são os quatro primeiros textos da colecção, abrindo com o Manifesto anti-Dantas e por extenso, escrito em 1915, lido pelo autor no dia 22 de Outubro desse ano (como reacção à estreia, na véspera, de uma peça de Júlio Dantas), e publicado em 1916. Em 1965 foi efectuado um registo sonoro da sua releitura. O famoso Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas do Século XX, datado de Dezembro de 1917, constitui, como hoje se diz, uma inscrição. No seu caso, desassombrada: «Eu não pertenço a nenhuma das gerações revolucionárias. Eu pertenço a uma geração construtiva. [...] Eu não tenho culpa nenhuma de ser português, mas sinto a força para não ter, como vós outros, a cobardia de deixar apodrecer a pátria. Nós vivemos numa pátria onde a tentativa democrática se compromete quotidianamente. [...] Foi sem dúvida a República portuguesa que provou conscientemente a todos os cérebros a ruína da nossa raça, mas o dever revolucionário da República portuguesa teve o seu limite na impotência da criação.» Adiante, para explicar a natureza fraca dos indígenas e a decadência do país, alinha uma série de conclusões: «[...] porque Portugal quando não é um país de vadios é um país de amadores. [...] E a Literatura com todo o seu gramatical piegas e salista, diverte mais as visitas do que a necessidade de não ser ignorante.» A catilinária termina com uma exortação: «O povo completo será aquele que tiver reunido no seu máximo todas as qualidades e todos os defeitos. Coragem, portugueses, só vos faltam as qualidades.» Não admira o manto de silêncio. As conferências incluem A Invenção do Dia Claro, realizada e publicada em 1921, de ordinário considerada (erradamente) poesia em prosa, e como tal integrando anteriores recolhas da obra poética. O caso de Pierrot e Arlequim, Personagens de Teatro, conferência publicada em 1924 sem nunca antes ter sido realizada, é um bom exemplo das dificuldades, ou ambiguidades de género com que se defrontaram os editores. Uma conferência sobre Walt Disney, Desenhos Animados / Realidade Imaginada, de 1938, realizada no cinema Tivoli por ocasião da estreia do filme Branca de Neve e os Sete Anões, provocou (nas palavras de Luiz Forjaz Trigueiros, que fez o relato da sessão) «uma tossezinha irritante» que alastrou da plateia ao tecto, levando o autor a despedir-se e abandonar a sala. Almada nunca foi uma figura consensual. Foi uma espécie de artista total: poeta, pintor, conferencista, actor e performer. Natural da Roça da Saudade (São Tomé), onde nasceu a 7 de Abril de 1893, veio para Portugal em 1900 para ser internado num colégio de jesuítas. Estudou pintura em Paris e tornou-se colaborador das revistas que marcaram a agenda do seu tempo: o Orpheu, a Contemporânea e o Portugal Futurista. Em 1917 publicou duas obras singulares: o panfleto K4 O Quadrado Azul e a novela A Engomadeira. Fez coreografias para bailados e tapeçarias para o Ritz. Além do romance Nome de Guerra, escrito em 1925 e publicado em 1938, escreveu poemas, manifestos, artigos, contos e peças de teatro. Publicou desenhos em jornais e revistas. Viveu cinco anos em Madrid (1927-32), privando com toda a intelectualidade daquele tempo. Em 1934, casou com a pintora Sarah Affonso, mãe dos seus dois filhos. A revista Sudoeste, lançada em 1935, foi uma das muitas aventuras que arriscou. Em 1954, imortalizou Pessoa num retrato a óleo que esteve exposto durante mais de vinte anos na Brasileira do Chiado. Um dos seus conseguimentos mais controvertidos é a descoberta e defesa teórica da perspectiva dos ladrilhos nos painéis atribuídos a Nuno Gonçalves. Por último mas não em último, os poemas que deixou persistem exemplarmente modernos: A Cena do Ódio, de 1915, ou Aconteceu-me, escrito cerca de 1940, são textos que continuam centrais à poesia portuguesa de Novecentos. Quando, a 15 de Junho de 1970, morreu em Lisboa, tinha 77 anos. O facto de ter assinado intervenções marcantes em edifícios paradigmáticos do Estado Novo (conforme descrito no primeiro parágrafo), conotou-o, talvez injustamente, com regime deposto em 1974. Uma coisa é certa: ninguém apaga uma obra múltipla, de que estes manifestos e conferências são parte não negligenciável.O Artista Total, in MIL FOLHAS, 22-12-2006, p. 6.Etiquetas: Crítica literária

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