Literatura Portuguesa do Século XX: MÁRIO CESARINY

04-07-2009
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** *NICOLAU CANSADO ESCRITOR** *NOTA AO PROJECTO DE EDIÇÃO ARARUTA PROVÍNCIA (1945)Perdida, entre tanta outra coisa que em Portugal se perdeu, à roda de 1944, a «Biografia de Nicolau Cansado» moldada em verso jâmbico por Papuça de Arrebol; desaparecida com esta, nas ruas de Constantina, toda a possível documen­tação para a descascagem ôntica de um ser a todos os títulos raro, na literatura e na vida; ingloriamente perdida também a obra em prosa do autor do «A Ti» – a qual não vi mas disseram, em 1944, ser ainda melhor do que os poemas: restam os versos que ora se publicam antecedidos de nótula crítica da incansável polígrafa e grande amiga do poeta Professora Doutora Marília Palhinha.Nas mãos de Crocodilo, pseudónimo literário do Ex.mo Sr. Luís de Oliveira Guimarães, lembra-me ter visto um fólio rabiscado pelo poeta a quando da sua viagem a Espanha, país onde, premido pela sua bem conhecida fome de autenticidade, Cansado fora colher em 1943 e o mais possível in loco alguns quadros multímodos da guerra civil espanhola. Tanto quanto me lembro, tratava-se de um feixe de ditirambos «ao pobre Frederico» claramente datados Agosto-Setembro de 1943. Esta peregrinagem terá dado a Cansado a possibilidade de uma destilação clarificadora de quanto ali se passou nos anos 1936-39, ao mesmo tempo que havia de preservá-lo de contactos directos com tiros, granadas e outras relações de incerteza como as então ali vividas por Hemingway, Malraux, Péret, Paz, Vallejo, Gascoyne, Penrose, Orwel e outros excessivos sequiosos de tiros nos cornos.Araruta Província** *EM TORNO DA POESIA DE CANSADONótula Crítica de Marília PalhinhaLisboa, 1945 – Os fortes laços de amizade que desde cedo me ligaram a Nicolau Cansado fazem com que seja a expensas de uma profunda mágoa que eu deva pôr aqui uma por assim dizer restrição aos inéditos vindos agora a lume: eles não serão compreendidos por toda a gente.Com efeito, só uma escassa roda de iniciados na última fenomenologia poética portuguesa (futurismo, sobrerrealismo, nervosismo, etc.) poderá acolher sem surpresa toda a sua mensagem. Uma vez mais, digamo-lo sem disfarce, a contradição fez a obra. E nisto como em tudo, apesar dumas coisas esquisitas, dumas audácias mais brilhantes que fecundas, o poeta seguiu a tradição. Tive oportunidade de verificá-lo ante o desprendimento que muitos homens da rua (eu buscava Cansado nas suas incursões aos habitáculos do povo) manifes­taram pela «Fantasia Gramática e Fuga», por exemplo*. Alguns chegaram mesmo a interromper nestes termos (tentava eu explicar a grandeza humanista que ia de par com a função social do poema): «Ó doutor dê cinco tostões para uma sopa, que ainda lá não fui hoje!». Em contrapartida, os literatos terão com que regozijar-se. Esses e mais quem anda a par sagrarão o poeta Cansado como um grande incompreendido, uma genial vítima de um meio estupefacto.Falar do substrato da sua obra – para quê? De certo modo, a poesia é o real absoluto, já o disse um editor que também escreve. Atravancador se torna pois qualquer didactismo, e ainda mais no caso de Cansado. Este homem, que abandonou as concepções burguesas sem por isso ter mudado de vida, é um artista muito complexo. Formalmente, não é raro vê-lo brincar com as subtis experiências de um Paulo Neruda. Noutros passos, chama a si Majakovsky, e, então, que esplendor épico! Noutros ainda, deita um olhar amigo a, por assim dizer, Fernando Pessoa. E ao Camões­ – um Camões que tivesse lido Afonso Duarte! Conhece a fase íntima. Atravessa a fronteira do religioso. E quando já desistíamos de ver nele mais do que um jogral de prodigiosos recursos, eis que nos atira com as iluminações do «Herói», do «Raio de Luz», do «A Ti»!Obra pequena, sim, mas de tentado alcance e forte significado, eu quero repeti-lo: ainda é cedo para falar de Nicolau. Não faltará porém gente disposta a acusá-lo de ter chateado meio mundo e vivido, como dizer?, assim. ASSIM! Eternos incompreensivos! Das vossas impotentes instâncias hão-de altear-se sempre a dedicação funda e o labor sem mácula de Prof. Araruta Província, que, no seu regresso de Las Palmas, logo meteu ombros ao conhecimento do valor dos textos e à sua pronta edição.Outra coisa: Cansado nunca versou o tema do amor. lnapetência? Excesso de ombridade? Penso que não. O amor é, para muitos poetas de hoje, um tema de segunda ou terceira categoria.Novos luzeiros brilham no estelar do mundo, como Cansado, certa vez, me disse. E todos compreendemos.* «Fantasia Gramática e Fuga, Com Eco». Nota do Dr. Araruta Província: O poema deste título foi perdido pela própria Marília Palhinha durante a última das manifestações de rua que entre nós assinalaram o fim da segunda guerra mundial. Tendo sido, como se sabe, particularmente dura essa manifestação, quase se aceita tão infeliz descuido – levar um poema daqueles para o meio da rua!** *NOTA À SEGUNDA EDIÇÃO(Jan. 1976)Tão cedo pude desocupar-me das investigações e desaterros da obra de Fernando Pessoa (baús do Castelo de S. Jorge, muros de Penalva e Aljustrel, celhas da Ordem Terceira de S. Francisco e Mineiros Associados (Mafamede» logo acorri de novo ao meu querido Nicolau. E hoje, finalmente, comovidamente, até às lágrimas, posso anunciar: a «Fantasia Gramática e Fuga», obra-prima da gesta de Cansado, indevidamente considerada perdida à data da primeira edição dos poemas, estava depositada num gaveto da Sociedade Portuguesa de Escritores pouco antes desta ter sido fechada pelo Governo. Alguém, que não sabemos quem, a enviou para ali. Chamada eu própria, logo reconheci o fólio, que não conduz, como abusiva e fantasiosamente Araruta Província algures aventou, a série alguma de versos escritos em Espanha, mas, além da finalmente recuperada «Fantasia Gramática» apresenta ainda uma contribuição de primeira plana: os poemas surgem dedicados pelo punho do poeta a todos quantos, mestres ou amigos, o inspiraram. Achamos esta acha muito importante pois a quando da primeira publicação, 1961, estabeleceu-se dúvida quanto a certas atribuições.Agora, de acordo com o canhenho original, indica-se como segue - e não repetimos na portada dos poemas, para não desfear – :«MIGRAÇÃO» – Ao Ex.mo Sr. Dr. Poeta Adolfo Casais Monteiro.«A TI» – Ao Sr. Dr. Poeta Ruy Cinatti.«HERÓI» – Ao Poeta Dr. Joaquim Namorado.«REABASTECIMENTO» – Ao Poeta Dr. D. Pedro I«BRASILEIRA» – Correcção ao Poeta Decadentista Manuel Bandeira..«POEMA BÃO» – A Poeta Dr. Francisco José Tenreiro.«RURAL» – Ao Poeta Escritor Dr. Fernando Namora.«FANTASIA GRAMÁTICA E FUGA COM ECO» – APoeta Dr. Mário Dionísio.«RAIO DE LUZ» – ­«O ÚLTIMO POEMA» – Ao Paulo Éluard.Note-se como, apesar do crescente à vontade com que Cansado dedica, o tom é sempre forte, claro, VESPERAL!Quanto ao belíssimo «Poema Bão», também aqui produzido pela primeira vez, recebi-o em correio registado, sem qualquer palavra de companhia, cinco dias antes do falecimento do Poeta Dr. Francisco José Tenreiro.Bem hajam, todas e todos!Palhinha, 1970** *ADENDA CORRIGENDANem a infausta morte de Marília Palhinha nem a admiração respeitosa em que tenho a sua memória podem inibir-me de taxar de aleivosas algumas declarações que faz da minha pessoa. Eu vi, de facto, nas mãos de Crocodilo, pseudónimo literário do Ex. mo Sr. Luís de Oliveira Guimarães, um caderno de versos de Cansado, firmados e datados: Talavera de La Reina e Buçaco, 1944, que todavia não li. O facto de tais poemas não estarem na Sociedade Portuguesa de Escritores quando esta foi fechada pelo Governo nada demonstra contra a existência do caderno. E sendo D. Marília useira e vezeira em deixar cair mais me inclino, a contra gosto o digo, para um novo descuido da morta. O que apenas sugiro e faço publicar para que de todo em todo não se perca de virmos a encontrar («não procuro, encontro» dizia Kandinski) os «Ditirambos Hispânicos» de Nicolau Rosendo Gastendo Cansado.Araruta Província** *MIGRAÇÃOAhnão me venham dizerohnão quero saberahquem me dera esquecerSó e incerto é que o poema é abertoe a Palavra flui inesgotável!** *A TIÓ minha casta esposavais sofrendo... E eu sofrode ver-te sofrer!Espera um pouco! Façamoscomo o caule da rosades­-fo-­lhada.Nosso convívio é triste. A vida, errada.Só a tortura existe e o poema é.AhTENHO A ALMA CHEIA DE GAROTOS.Não queiras ah não queiras vir comigopara esta atmosfera de chimpòzé. ** «Chimpòzé» não existe em língua oficial portuguesa, sequer nos pàlóps.Parece ser corrUptela de «chimpanzé». «Garoto» é nome dado na capital doImpério (Lisboa) ao café com leite servido em chávena.** *HERÓIDo claro sol e de hum teatro cheoSeriam dignas tão notáveis obras...Ó noite que em teu seio tenebrosoTão grandes feitos d'armas escondeste!TORQUATO TASSO - Jerusalém LibertadaHerói é o meu nome.Meu olhar frio, arguto,Não vê coisa que o dome.Meu esforço rudo e sanoNão desmaia um minuto.Sou herói todo o ano.Quando passar por vós, naturalmente,Com este meu ar simples e no entanto diferenteE no entanto diferente do ar do resto da gente,Não digais: é fulano.Dizei: é o Herói.O herói, simplesmente.** *BRASILEIRAO vento não varria as folhasO vento não varria os frutosO vento não varria as flores...E a minha vida não ficavaCada vez mais cheiaDe frutos, de flores, de folhas...O vento não varria as luzesO vento não varria as músicasO vento não varria os aromasE a minha vida não ficavaCada vez mais cheiaDe aromas, de estrelas, de cânticos...O vento não varria os sonhosE não varria as amizades...O vento não varria as mulheres...E a minha vida não ficavaCada vez mais cheiaDe afectos e de mulheres...O vento não varria os mesesE não varria os teus sorrisos...O vento não varria tudo!E a minha vida não ficavaCada vez mais cheiaDe tudo.** *REABASTECIMENTOVamos ver o povoQue lindo éVamos ver o povo.Dá cá o pé.Vamos ver o povo.Hop-Iá!Vamos ver o povo.Já está.** *RURALComo chove, Cacilda!Como vem ai o inverno, Cacilda!Como tu estás, Cacilda!Da janela da choça o verde é um pratoQue deve ser lavado, Cacilda!E o boi, Cacilda!E o ancinho, Cacilda!E o arroz, a batata, o agrião, Cacilda!Já cozeste?Eu logo passo outra vez,Em prosa provavelmente.Arrozinho, Cacilda!Os melhores anos da nossa vida, Ilda!– Ausente.** *POEMA BÃOPreta cospe preta cospe preta cospeNo chãoIáú!Ilha de Nome Santo!O maré pró fábricade patalão.Poema bão!** *FANTASIA GRAMÁTICA E FUGA (COM ECO)No fundo eu não sinto minto minto mintoComo sou burguês vês? vês? vês?Vou ao baile baile aile aile aileMas não sei dançar ar ar arVisto de setim sim não simVou depressa e bem olha quemEu sei que serei reiDo mundo que vem muito bemBate coração ão! ão! ão!Palhaço em Palheiro mário de sá-carneiroMeu golpe de vista fu-tu-ris-taTapa a boca Oh pó-ni-pi-ni-póTapa a Boca Oh pó-ni-pi-ni-pótApa a bOca OhtaPa A boCa Ohtapa a boca sim Fim.Nota- Braço-braço?!;:...­ –** *RAIO DE LUZBurgueses somos nós todosou ainda menos.Burgueses somos nós todosdesde pequenos.Burgueses somos nós todosó literatos.Burgueses somos nós todosratos e gatos.Burgueses somos nós todospor nossas mãos.Burgueses somos nós todosque horror irmãos.Burgueses somos nós todosou ainda menos.Burgueses somos nós todosdesde pequenos.** *O ÚLTIMO POEMACavalo. Cavalinho. Cavalicoque.Deixá-lo.Coitadinho.Carvão de coque.Matá-loDevagarinho.Lá vai ele a reboque.Cavalo. Cavalinho. Cavalicoque.** *


** *NICOLAU CANSADO ESCRITOR** *NOTA AO PROJECTO DE EDIÇÃO ARARUTA PROVÍNCIA (1945)Perdida, entre tanta outra coisa que em Portugal se perdeu, à roda de 1944, a «Biografia de Nicolau Cansado» moldada em verso jâmbico por Papuça de Arrebol; desaparecida com esta, nas ruas de Constantina, toda a possível documen­tação para a descascagem ôntica de um ser a todos os títulos raro, na literatura e na vida; ingloriamente perdida também a obra em prosa do autor do «A Ti» – a qual não vi mas disseram, em 1944, ser ainda melhor do que os poemas: restam os versos que ora se publicam antecedidos de nótula crítica da incansável polígrafa e grande amiga do poeta Professora Doutora Marília Palhinha.Nas mãos de Crocodilo, pseudónimo literário do Ex.mo Sr. Luís de Oliveira Guimarães, lembra-me ter visto um fólio rabiscado pelo poeta a quando da sua viagem a Espanha, país onde, premido pela sua bem conhecida fome de autenticidade, Cansado fora colher em 1943 e o mais possível in loco alguns quadros multímodos da guerra civil espanhola. Tanto quanto me lembro, tratava-se de um feixe de ditirambos «ao pobre Frederico» claramente datados Agosto-Setembro de 1943. Esta peregrinagem terá dado a Cansado a possibilidade de uma destilação clarificadora de quanto ali se passou nos anos 1936-39, ao mesmo tempo que havia de preservá-lo de contactos directos com tiros, granadas e outras relações de incerteza como as então ali vividas por Hemingway, Malraux, Péret, Paz, Vallejo, Gascoyne, Penrose, Orwel e outros excessivos sequiosos de tiros nos cornos.Araruta Província** *EM TORNO DA POESIA DE CANSADONótula Crítica de Marília PalhinhaLisboa, 1945 – Os fortes laços de amizade que desde cedo me ligaram a Nicolau Cansado fazem com que seja a expensas de uma profunda mágoa que eu deva pôr aqui uma por assim dizer restrição aos inéditos vindos agora a lume: eles não serão compreendidos por toda a gente.Com efeito, só uma escassa roda de iniciados na última fenomenologia poética portuguesa (futurismo, sobrerrealismo, nervosismo, etc.) poderá acolher sem surpresa toda a sua mensagem. Uma vez mais, digamo-lo sem disfarce, a contradição fez a obra. E nisto como em tudo, apesar dumas coisas esquisitas, dumas audácias mais brilhantes que fecundas, o poeta seguiu a tradição. Tive oportunidade de verificá-lo ante o desprendimento que muitos homens da rua (eu buscava Cansado nas suas incursões aos habitáculos do povo) manifes­taram pela «Fantasia Gramática e Fuga», por exemplo*. Alguns chegaram mesmo a interromper nestes termos (tentava eu explicar a grandeza humanista que ia de par com a função social do poema): «Ó doutor dê cinco tostões para uma sopa, que ainda lá não fui hoje!». Em contrapartida, os literatos terão com que regozijar-se. Esses e mais quem anda a par sagrarão o poeta Cansado como um grande incompreendido, uma genial vítima de um meio estupefacto.Falar do substrato da sua obra – para quê? De certo modo, a poesia é o real absoluto, já o disse um editor que também escreve. Atravancador se torna pois qualquer didactismo, e ainda mais no caso de Cansado. Este homem, que abandonou as concepções burguesas sem por isso ter mudado de vida, é um artista muito complexo. Formalmente, não é raro vê-lo brincar com as subtis experiências de um Paulo Neruda. Noutros passos, chama a si Majakovsky, e, então, que esplendor épico! Noutros ainda, deita um olhar amigo a, por assim dizer, Fernando Pessoa. E ao Camões­ – um Camões que tivesse lido Afonso Duarte! Conhece a fase íntima. Atravessa a fronteira do religioso. E quando já desistíamos de ver nele mais do que um jogral de prodigiosos recursos, eis que nos atira com as iluminações do «Herói», do «Raio de Luz», do «A Ti»!Obra pequena, sim, mas de tentado alcance e forte significado, eu quero repeti-lo: ainda é cedo para falar de Nicolau. Não faltará porém gente disposta a acusá-lo de ter chateado meio mundo e vivido, como dizer?, assim. ASSIM! Eternos incompreensivos! Das vossas impotentes instâncias hão-de altear-se sempre a dedicação funda e o labor sem mácula de Prof. Araruta Província, que, no seu regresso de Las Palmas, logo meteu ombros ao conhecimento do valor dos textos e à sua pronta edição.Outra coisa: Cansado nunca versou o tema do amor. lnapetência? Excesso de ombridade? Penso que não. O amor é, para muitos poetas de hoje, um tema de segunda ou terceira categoria.Novos luzeiros brilham no estelar do mundo, como Cansado, certa vez, me disse. E todos compreendemos.* «Fantasia Gramática e Fuga, Com Eco». Nota do Dr. Araruta Província: O poema deste título foi perdido pela própria Marília Palhinha durante a última das manifestações de rua que entre nós assinalaram o fim da segunda guerra mundial. Tendo sido, como se sabe, particularmente dura essa manifestação, quase se aceita tão infeliz descuido – levar um poema daqueles para o meio da rua!** *NOTA À SEGUNDA EDIÇÃO(Jan. 1976)Tão cedo pude desocupar-me das investigações e desaterros da obra de Fernando Pessoa (baús do Castelo de S. Jorge, muros de Penalva e Aljustrel, celhas da Ordem Terceira de S. Francisco e Mineiros Associados (Mafamede» logo acorri de novo ao meu querido Nicolau. E hoje, finalmente, comovidamente, até às lágrimas, posso anunciar: a «Fantasia Gramática e Fuga», obra-prima da gesta de Cansado, indevidamente considerada perdida à data da primeira edição dos poemas, estava depositada num gaveto da Sociedade Portuguesa de Escritores pouco antes desta ter sido fechada pelo Governo. Alguém, que não sabemos quem, a enviou para ali. Chamada eu própria, logo reconheci o fólio, que não conduz, como abusiva e fantasiosamente Araruta Província algures aventou, a série alguma de versos escritos em Espanha, mas, além da finalmente recuperada «Fantasia Gramática» apresenta ainda uma contribuição de primeira plana: os poemas surgem dedicados pelo punho do poeta a todos quantos, mestres ou amigos, o inspiraram. Achamos esta acha muito importante pois a quando da primeira publicação, 1961, estabeleceu-se dúvida quanto a certas atribuições.Agora, de acordo com o canhenho original, indica-se como segue - e não repetimos na portada dos poemas, para não desfear – :«MIGRAÇÃO» – Ao Ex.mo Sr. Dr. Poeta Adolfo Casais Monteiro.«A TI» – Ao Sr. Dr. Poeta Ruy Cinatti.«HERÓI» – Ao Poeta Dr. Joaquim Namorado.«REABASTECIMENTO» – Ao Poeta Dr. D. Pedro I«BRASILEIRA» – Correcção ao Poeta Decadentista Manuel Bandeira..«POEMA BÃO» – A Poeta Dr. Francisco José Tenreiro.«RURAL» – Ao Poeta Escritor Dr. Fernando Namora.«FANTASIA GRAMÁTICA E FUGA COM ECO» – APoeta Dr. Mário Dionísio.«RAIO DE LUZ» – ­«O ÚLTIMO POEMA» – Ao Paulo Éluard.Note-se como, apesar do crescente à vontade com que Cansado dedica, o tom é sempre forte, claro, VESPERAL!Quanto ao belíssimo «Poema Bão», também aqui produzido pela primeira vez, recebi-o em correio registado, sem qualquer palavra de companhia, cinco dias antes do falecimento do Poeta Dr. Francisco José Tenreiro.Bem hajam, todas e todos!Palhinha, 1970** *ADENDA CORRIGENDANem a infausta morte de Marília Palhinha nem a admiração respeitosa em que tenho a sua memória podem inibir-me de taxar de aleivosas algumas declarações que faz da minha pessoa. Eu vi, de facto, nas mãos de Crocodilo, pseudónimo literário do Ex. mo Sr. Luís de Oliveira Guimarães, um caderno de versos de Cansado, firmados e datados: Talavera de La Reina e Buçaco, 1944, que todavia não li. O facto de tais poemas não estarem na Sociedade Portuguesa de Escritores quando esta foi fechada pelo Governo nada demonstra contra a existência do caderno. E sendo D. Marília useira e vezeira em deixar cair mais me inclino, a contra gosto o digo, para um novo descuido da morta. O que apenas sugiro e faço publicar para que de todo em todo não se perca de virmos a encontrar («não procuro, encontro» dizia Kandinski) os «Ditirambos Hispânicos» de Nicolau Rosendo Gastendo Cansado.Araruta Província** *MIGRAÇÃOAhnão me venham dizerohnão quero saberahquem me dera esquecerSó e incerto é que o poema é abertoe a Palavra flui inesgotável!** *A TIÓ minha casta esposavais sofrendo... E eu sofrode ver-te sofrer!Espera um pouco! Façamoscomo o caule da rosades­-fo-­lhada.Nosso convívio é triste. A vida, errada.Só a tortura existe e o poema é.AhTENHO A ALMA CHEIA DE GAROTOS.Não queiras ah não queiras vir comigopara esta atmosfera de chimpòzé. ** «Chimpòzé» não existe em língua oficial portuguesa, sequer nos pàlóps.Parece ser corrUptela de «chimpanzé». «Garoto» é nome dado na capital doImpério (Lisboa) ao café com leite servido em chávena.** *HERÓIDo claro sol e de hum teatro cheoSeriam dignas tão notáveis obras...Ó noite que em teu seio tenebrosoTão grandes feitos d'armas escondeste!TORQUATO TASSO - Jerusalém LibertadaHerói é o meu nome.Meu olhar frio, arguto,Não vê coisa que o dome.Meu esforço rudo e sanoNão desmaia um minuto.Sou herói todo o ano.Quando passar por vós, naturalmente,Com este meu ar simples e no entanto diferenteE no entanto diferente do ar do resto da gente,Não digais: é fulano.Dizei: é o Herói.O herói, simplesmente.** *BRASILEIRAO vento não varria as folhasO vento não varria os frutosO vento não varria as flores...E a minha vida não ficavaCada vez mais cheiaDe frutos, de flores, de folhas...O vento não varria as luzesO vento não varria as músicasO vento não varria os aromasE a minha vida não ficavaCada vez mais cheiaDe aromas, de estrelas, de cânticos...O vento não varria os sonhosE não varria as amizades...O vento não varria as mulheres...E a minha vida não ficavaCada vez mais cheiaDe afectos e de mulheres...O vento não varria os mesesE não varria os teus sorrisos...O vento não varria tudo!E a minha vida não ficavaCada vez mais cheiaDe tudo.** *REABASTECIMENTOVamos ver o povoQue lindo éVamos ver o povo.Dá cá o pé.Vamos ver o povo.Hop-Iá!Vamos ver o povo.Já está.** *RURALComo chove, Cacilda!Como vem ai o inverno, Cacilda!Como tu estás, Cacilda!Da janela da choça o verde é um pratoQue deve ser lavado, Cacilda!E o boi, Cacilda!E o ancinho, Cacilda!E o arroz, a batata, o agrião, Cacilda!Já cozeste?Eu logo passo outra vez,Em prosa provavelmente.Arrozinho, Cacilda!Os melhores anos da nossa vida, Ilda!– Ausente.** *POEMA BÃOPreta cospe preta cospe preta cospeNo chãoIáú!Ilha de Nome Santo!O maré pró fábricade patalão.Poema bão!** *FANTASIA GRAMÁTICA E FUGA (COM ECO)No fundo eu não sinto minto minto mintoComo sou burguês vês? vês? vês?Vou ao baile baile aile aile aileMas não sei dançar ar ar arVisto de setim sim não simVou depressa e bem olha quemEu sei que serei reiDo mundo que vem muito bemBate coração ão! ão! ão!Palhaço em Palheiro mário de sá-carneiroMeu golpe de vista fu-tu-ris-taTapa a boca Oh pó-ni-pi-ni-póTapa a Boca Oh pó-ni-pi-ni-pótApa a bOca OhtaPa A boCa Ohtapa a boca sim Fim.Nota- Braço-braço?!;:...­ –** *RAIO DE LUZBurgueses somos nós todosou ainda menos.Burgueses somos nós todosdesde pequenos.Burgueses somos nós todosó literatos.Burgueses somos nós todosratos e gatos.Burgueses somos nós todospor nossas mãos.Burgueses somos nós todosque horror irmãos.Burgueses somos nós todosou ainda menos.Burgueses somos nós todosdesde pequenos.** *O ÚLTIMO POEMACavalo. Cavalinho. Cavalicoque.Deixá-lo.Coitadinho.Carvão de coque.Matá-loDevagarinho.Lá vai ele a reboque.Cavalo. Cavalinho. Cavalicoque.** *

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