Literatura Portuguesa do Século XX: A teoria crítica do grupo da «presença»

04-07-2009
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LITERATURA VIVAEm Arte, é vivo tudo o que é original. É original tudo o que provém da parte mais virgem, mais verda­deira e mais íntima duma personalidade artística. A pri­meira condição duma obra viva é pois ter uma persona­lidade e obedecer-lhe. Ora como o que personaliza um artista é, ao menos superficialmente, o que o diferen­cia dos mais (artistas ou não), certa sinonímia nasceu entre o adjectivo original e muitos outros, ao menos superficialmente aparentados; por exemplo: o adjectivo excêntrico, estranho, extravagante, bizarro... Eis como é falsa toda a originalidade calculada e astuciosa. Eis como também pertence à literatura morta aquela em que um autor pretende ser original sem personalidade própria. A excentricidade, a extravagância e a bizarria podem ser poderosas – mas só quando naturais a um dado temperamento artístico. Sobre outras qualidades, o produto desses temperamentos terá o encanto do raro e do imprevisto. Afectadas, semelhantes qualidades não passarão dum truque literário.Pretendo aludir nestas linhas a dois vícios que infe­riorizam grande parte da nossa literatura contemporânea. roubando-lhe esse carácter de invenção, criação e des­coberta que faz grande a arte moderna. São eles: a falta de originalidade e a falta de sinceridade. A falta de originalidade da nossa literatura contemporânea está documentada pelos nomes que mais aceitação pública gozam. É triste – mas é verdade. Em Portugal, raro uma obra é um documento humano, superiormente pes­soal ao ponto de ser colectivo. O exagerado gosto da retórica (e diga-se: da mais cediça) morde os próprios temperamentos vivos; e se a obra dum moço traz pro­babilidades de prolongamento evolutivo, raro esses ger­mes de literatura viva se desenvolvem. O pedantismo de fazer literatura corrompe as nascentes. Substitui-se a per­sonalidade pelo estilo. Mas criar um estilo já é ter uma personalidade. E quem não tem personalidade só pode ter um estilo feito, burocrático, erudito, amassado de reminiscências literárias, de autoplágios, e de pobres far­rapos sobreviventes ao naufrágio. Assim se substitui a arte viva pela literatura profissional. E é curioso: Só então os críticos portugueses começam a reparar em tal e tal obra: Quando ela exibe a sua velhice precoce e paramentada. Regra geral, os nossos críticos são ama­dores de antiguidades. Em vez de lhes alargar o gesto, a erudição amarelenta-lhes a alma... Mas esta é outra questão, bem digna de ser tratada menos acidentalmente. Volto ao meu assunto, e suponho agora um exemplo talvez mais consolador: O escritor português tem e man­tém uma personalidade. Pergunto: É essa personalidade suficientemente rica para que produza uma obra rica de conteúdo e de continente, de substância e de forma? É regra geral – presto homenagem às excepções – os nos­sos artistas terem uma mentalidade insuficiente; uma sensibilidade por vezes intensa, mas reduzida; e uma visão unilateral da vida. Esgotados em dois ou três livros, re­petem-se confrangedoramente. E o seu progresso é pu­ramente linguístico, superficial e negativo, porque breve a língua deixa de ser um meio vivo de expressão artística. É um instrumento quase inútil, que se aperfeiçoa (?) segundo este ou aquele preconceito.Da pouca originalidade da literatura portuguesa, na­turalmente resulta em grande parte a sua pouca since­ridade. Ter uma maneira, é para o nosso escritor achar um certo número de contrafacções que se lhe afiguram mais dentro da sua indecisão de personalidade. O escri­tor passa então a produzir literatura mais ou menos me­cânica. É-me desagradável falar destes pobres exemplares da nossa mediocridade, mas assim é preciso: tanto mais que o problema da sinceridade é hoje complicado, como, de resto, todos os problemas contemporâneos. A expressão directa, simples, organicamente ingénua, tenta sem dúvida o artista moderno; mas não parece ser característica dele. Os artistas de hoje mais directos, mais sim­ples, mais ingénuos – são-no conscientemente. Salvo raríssimas excepções. Ora ser conscientemente ingénuo, simples, directo, já é complicar-se. A complicação que julgo ver na arte moderna pode, pois, tomar aparências de pouca sinceridade: O lirismo e a ironia, o abandono e a atitude, o subconsciente e a razão – emaranham-se na arte de vários mestres contemporâneos. Daí resulta uma novidade de processos e meios de expressão que sur­preende, irrita, perturba, ou provoca o desdém dos não iniciados. Mas os verdadeiros não iniciados são os que não têm probabilidades de iniciação. E desses, nada a esperar. O verdadeiro papel do crítico é pois discernir e separar os simuladores, mais ou menos hábeis que eles sejam, dos criadores autênticos. Os primeiros existiram em todos os tempos, e são os responsáveis de toda a li­teratura morta de qualquer tempo. Os segundos tam­bém existiram em qualquer tempo, e é através deles que a arte literária chegou até nós viva, portanto susceptí­vel de evolução. Os processos e as formas que eles descobriram eram os mais aptos a revelar a sua sensibili­dade; e por certo foram inovação no seu tempo. É natu­ral que a sensibilidade contemporânea já não caiba nes­sas fórmulas, consagradas por e para sensibilidades dife­rentes. Natural é, portanto, que os grandes artistas de hoje sigam o exemplo dos grandes artistas de ontem. O fundo eterno, imutável, contínuo, da humanidade e da arte manter-se-á poderosamente na obra de todos os grandes. E direi que é sobretudo nos inovadores que esse fundo aparecerá mais virgem.Eis como tudo isto se reduz a pouco: Literatura viva é aquela em que o artista insuflou a sua própria vida, e que por isso mesmo passa a viver de vida própria. Sendo esse artista um homem superior pela sensibili­dade, pela inteligência e pela imaginação, a literatura viva que ele produza será superior; inacessível, portanto, às condições do tempo e do espaço. E é apenas por isto que os autos de Gil Vicente são espantosamente vivos, e as comédias de Sá de Miranda irremediavelmente mor­tas; que todos os livros de Judith Teixeira não valem uma canção escolhida de António Botto; que os sone­tos de Camões são maravilhosos, e os de António Fe­reira maçadores; que um pequeno prefácio de Fernando Pessoa diz mais que um grande artigo de Fidelino de Figueiredo; que há mais força íntima em catorze versos de Antero que num poemeto de Junqueiro; e que é mais belo um adágio popular do que uma frase de literato.N.º 1 da presença, 10 de Março de 1927


LITERATURA VIVAEm Arte, é vivo tudo o que é original. É original tudo o que provém da parte mais virgem, mais verda­deira e mais íntima duma personalidade artística. A pri­meira condição duma obra viva é pois ter uma persona­lidade e obedecer-lhe. Ora como o que personaliza um artista é, ao menos superficialmente, o que o diferen­cia dos mais (artistas ou não), certa sinonímia nasceu entre o adjectivo original e muitos outros, ao menos superficialmente aparentados; por exemplo: o adjectivo excêntrico, estranho, extravagante, bizarro... Eis como é falsa toda a originalidade calculada e astuciosa. Eis como também pertence à literatura morta aquela em que um autor pretende ser original sem personalidade própria. A excentricidade, a extravagância e a bizarria podem ser poderosas – mas só quando naturais a um dado temperamento artístico. Sobre outras qualidades, o produto desses temperamentos terá o encanto do raro e do imprevisto. Afectadas, semelhantes qualidades não passarão dum truque literário.Pretendo aludir nestas linhas a dois vícios que infe­riorizam grande parte da nossa literatura contemporânea. roubando-lhe esse carácter de invenção, criação e des­coberta que faz grande a arte moderna. São eles: a falta de originalidade e a falta de sinceridade. A falta de originalidade da nossa literatura contemporânea está documentada pelos nomes que mais aceitação pública gozam. É triste – mas é verdade. Em Portugal, raro uma obra é um documento humano, superiormente pes­soal ao ponto de ser colectivo. O exagerado gosto da retórica (e diga-se: da mais cediça) morde os próprios temperamentos vivos; e se a obra dum moço traz pro­babilidades de prolongamento evolutivo, raro esses ger­mes de literatura viva se desenvolvem. O pedantismo de fazer literatura corrompe as nascentes. Substitui-se a per­sonalidade pelo estilo. Mas criar um estilo já é ter uma personalidade. E quem não tem personalidade só pode ter um estilo feito, burocrático, erudito, amassado de reminiscências literárias, de autoplágios, e de pobres far­rapos sobreviventes ao naufrágio. Assim se substitui a arte viva pela literatura profissional. E é curioso: Só então os críticos portugueses começam a reparar em tal e tal obra: Quando ela exibe a sua velhice precoce e paramentada. Regra geral, os nossos críticos são ama­dores de antiguidades. Em vez de lhes alargar o gesto, a erudição amarelenta-lhes a alma... Mas esta é outra questão, bem digna de ser tratada menos acidentalmente. Volto ao meu assunto, e suponho agora um exemplo talvez mais consolador: O escritor português tem e man­tém uma personalidade. Pergunto: É essa personalidade suficientemente rica para que produza uma obra rica de conteúdo e de continente, de substância e de forma? É regra geral – presto homenagem às excepções – os nos­sos artistas terem uma mentalidade insuficiente; uma sensibilidade por vezes intensa, mas reduzida; e uma visão unilateral da vida. Esgotados em dois ou três livros, re­petem-se confrangedoramente. E o seu progresso é pu­ramente linguístico, superficial e negativo, porque breve a língua deixa de ser um meio vivo de expressão artística. É um instrumento quase inútil, que se aperfeiçoa (?) segundo este ou aquele preconceito.Da pouca originalidade da literatura portuguesa, na­turalmente resulta em grande parte a sua pouca since­ridade. Ter uma maneira, é para o nosso escritor achar um certo número de contrafacções que se lhe afiguram mais dentro da sua indecisão de personalidade. O escri­tor passa então a produzir literatura mais ou menos me­cânica. É-me desagradável falar destes pobres exemplares da nossa mediocridade, mas assim é preciso: tanto mais que o problema da sinceridade é hoje complicado, como, de resto, todos os problemas contemporâneos. A expressão directa, simples, organicamente ingénua, tenta sem dúvida o artista moderno; mas não parece ser característica dele. Os artistas de hoje mais directos, mais sim­ples, mais ingénuos – são-no conscientemente. Salvo raríssimas excepções. Ora ser conscientemente ingénuo, simples, directo, já é complicar-se. A complicação que julgo ver na arte moderna pode, pois, tomar aparências de pouca sinceridade: O lirismo e a ironia, o abandono e a atitude, o subconsciente e a razão – emaranham-se na arte de vários mestres contemporâneos. Daí resulta uma novidade de processos e meios de expressão que sur­preende, irrita, perturba, ou provoca o desdém dos não iniciados. Mas os verdadeiros não iniciados são os que não têm probabilidades de iniciação. E desses, nada a esperar. O verdadeiro papel do crítico é pois discernir e separar os simuladores, mais ou menos hábeis que eles sejam, dos criadores autênticos. Os primeiros existiram em todos os tempos, e são os responsáveis de toda a li­teratura morta de qualquer tempo. Os segundos tam­bém existiram em qualquer tempo, e é através deles que a arte literária chegou até nós viva, portanto susceptí­vel de evolução. Os processos e as formas que eles descobriram eram os mais aptos a revelar a sua sensibili­dade; e por certo foram inovação no seu tempo. É natu­ral que a sensibilidade contemporânea já não caiba nes­sas fórmulas, consagradas por e para sensibilidades dife­rentes. Natural é, portanto, que os grandes artistas de hoje sigam o exemplo dos grandes artistas de ontem. O fundo eterno, imutável, contínuo, da humanidade e da arte manter-se-á poderosamente na obra de todos os grandes. E direi que é sobretudo nos inovadores que esse fundo aparecerá mais virgem.Eis como tudo isto se reduz a pouco: Literatura viva é aquela em que o artista insuflou a sua própria vida, e que por isso mesmo passa a viver de vida própria. Sendo esse artista um homem superior pela sensibili­dade, pela inteligência e pela imaginação, a literatura viva que ele produza será superior; inacessível, portanto, às condições do tempo e do espaço. E é apenas por isto que os autos de Gil Vicente são espantosamente vivos, e as comédias de Sá de Miranda irremediavelmente mor­tas; que todos os livros de Judith Teixeira não valem uma canção escolhida de António Botto; que os sone­tos de Camões são maravilhosos, e os de António Fe­reira maçadores; que um pequeno prefácio de Fernando Pessoa diz mais que um grande artigo de Fidelino de Figueiredo; que há mais força íntima em catorze versos de Antero que num poemeto de Junqueiro; e que é mais belo um adágio popular do que uma frase de literato.N.º 1 da presença, 10 de Março de 1927

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