da literatura: O manto pesado do mito

21-07-2005
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Se a criação de um mito pode não ser tarefa fácil, a sua destruição chega a ter a aparência de uma missão impossível. A confirmá­‑lo está o mito do autor gerado à volta da morte de Mário de Sá­‑Carneiro, que alastra sobre a obra e impede uma visão nítida e rigorosa da mesma. Uma pequena nota de rodapé acaba de ser acrescentada a esta triste história com a publicação do volume Crónica de um Suicídio Anunciado, da responsabilidade editorial de 101 Noites, reunindo uma série de textos do autor de A Confissão de Lúcio à volta do tema do suicídio. O livrinho, com prefácio de Richard Zenith, teve direito a um texto no suplemento Mil Folhas do jornal Público de ontem, assinado por Alexandra Lucas Coelho, cuja única utilidade parece consistir em prolongar as asneiras e as incorrecções do volume. Sem que se possa perceber se é uma citação ou a tentativa de exibir um aprofundado conhecimento da matéria, a jornalista escreve que Sá­‑Carneiro «se suicidou com cinco frascos de estricnina, e tão bem­‑vestido para essa morte que não foi possível enterrá­‑lo melhor vestido». Ora, a verdade é que à morte do modernista apenas assistiu o amigo José Araújo, que diria depois que Sá­‑Carneiro «estava vestido, penteado», mas o pintor Jorge Barradas, numa descrição imaginária do acontecimento, exemplar do poder alucinatório do mito, haveria de acrescentar que o poeta de Orpheu vestira «o seu melhor fato». Em 1983, na tanatografia intitulada A Morte de Sá­‑Carneiro, João Pinto de Figueiredo transformaria esse fato em smoking, cunhando, em definitivo, o carácter ritualista do suicídio. Vem tudo detalhadamente exposto nas cerca de sessenta páginas iniciais de O Modernismo em Mário de Sá­‑Carneiro, de Fernando Cabral Martins, editado em 1997, pela Estampa, que constitui uma versão ligeiramente modificada da sua tese de doutoramento. Uma leitura atenta dessas páginas teria evitado que se insistisse na atribuição do título «Fim» ao célebre poema póstumo «Quando eu morrer batam em latas», pois sabe­‑se hoje que esse título foi da responsabilidade de Pessoa e não do autor de Dispersão. Inseria­‑se, aliás, num conjunto de poemas póstumos publicados pelo criador dos heterónimos na revista Athena. O título genérico com que foram dados a conhecer, Últimos Poemas de Mário de Sá­‑Carneiro, tem um evidente sentido extra­‑literário e condiciona as leituras que desses textos se fizeram. «Fim», por exemplo, origina no leitor, conhecedor de que o primeiro livro de Sá­‑Carneiro se intitula Princípio, a falsa sensação de estar perante um círculo que se fecha. António Quadros e Eduardo Prado Coelho estão entre os que se deixaram iludir e afirmaram sem rebuço que esse era mesmo o último poema do autor de Orpheu e teria sido escrito praticamente na véspera do seu suicídio, como um anúncio poético daquele propósito. Sabe­‑se hoje, afinal, que esses versos datam de mais de um mês antes. Por isso mesmo me parece indesculpável a desatenção de Richard Zenith ao escrever no prefácio que, para Sá­‑Carneiro, o suicídio foi, «de certo modo, a razão de ser da sua obra». É que ele trabalha com Fernando Cabral Martins na equipa que tem editado Pessoa na Assírio & Alvim. Ficava­‑lhe bem um pouco de atenção aos que os colegas investigam e revelam, de modo a evitar este contributo desastrado para a perniciosa vitalidade do mito do suicídio como destino.

Se a criação de um mito pode não ser tarefa fácil, a sua destruição chega a ter a aparência de uma missão impossível. A confirmá­‑lo está o mito do autor gerado à volta da morte de Mário de Sá­‑Carneiro, que alastra sobre a obra e impede uma visão nítida e rigorosa da mesma. Uma pequena nota de rodapé acaba de ser acrescentada a esta triste história com a publicação do volume Crónica de um Suicídio Anunciado, da responsabilidade editorial de 101 Noites, reunindo uma série de textos do autor de A Confissão de Lúcio à volta do tema do suicídio. O livrinho, com prefácio de Richard Zenith, teve direito a um texto no suplemento Mil Folhas do jornal Público de ontem, assinado por Alexandra Lucas Coelho, cuja única utilidade parece consistir em prolongar as asneiras e as incorrecções do volume. Sem que se possa perceber se é uma citação ou a tentativa de exibir um aprofundado conhecimento da matéria, a jornalista escreve que Sá­‑Carneiro «se suicidou com cinco frascos de estricnina, e tão bem­‑vestido para essa morte que não foi possível enterrá­‑lo melhor vestido». Ora, a verdade é que à morte do modernista apenas assistiu o amigo José Araújo, que diria depois que Sá­‑Carneiro «estava vestido, penteado», mas o pintor Jorge Barradas, numa descrição imaginária do acontecimento, exemplar do poder alucinatório do mito, haveria de acrescentar que o poeta de Orpheu vestira «o seu melhor fato». Em 1983, na tanatografia intitulada A Morte de Sá­‑Carneiro, João Pinto de Figueiredo transformaria esse fato em smoking, cunhando, em definitivo, o carácter ritualista do suicídio. Vem tudo detalhadamente exposto nas cerca de sessenta páginas iniciais de O Modernismo em Mário de Sá­‑Carneiro, de Fernando Cabral Martins, editado em 1997, pela Estampa, que constitui uma versão ligeiramente modificada da sua tese de doutoramento. Uma leitura atenta dessas páginas teria evitado que se insistisse na atribuição do título «Fim» ao célebre poema póstumo «Quando eu morrer batam em latas», pois sabe­‑se hoje que esse título foi da responsabilidade de Pessoa e não do autor de Dispersão. Inseria­‑se, aliás, num conjunto de poemas póstumos publicados pelo criador dos heterónimos na revista Athena. O título genérico com que foram dados a conhecer, Últimos Poemas de Mário de Sá­‑Carneiro, tem um evidente sentido extra­‑literário e condiciona as leituras que desses textos se fizeram. «Fim», por exemplo, origina no leitor, conhecedor de que o primeiro livro de Sá­‑Carneiro se intitula Princípio, a falsa sensação de estar perante um círculo que se fecha. António Quadros e Eduardo Prado Coelho estão entre os que se deixaram iludir e afirmaram sem rebuço que esse era mesmo o último poema do autor de Orpheu e teria sido escrito praticamente na véspera do seu suicídio, como um anúncio poético daquele propósito. Sabe­‑se hoje, afinal, que esses versos datam de mais de um mês antes. Por isso mesmo me parece indesculpável a desatenção de Richard Zenith ao escrever no prefácio que, para Sá­‑Carneiro, o suicídio foi, «de certo modo, a razão de ser da sua obra». É que ele trabalha com Fernando Cabral Martins na equipa que tem editado Pessoa na Assírio & Alvim. Ficava­‑lhe bem um pouco de atenção aos que os colegas investigam e revelam, de modo a evitar este contributo desastrado para a perniciosa vitalidade do mito do suicídio como destino.

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