Rabiscos e Garatujas: Meu amor meu poema meu silêncio

30-09-2009
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Faço um esforço para aclarar a memória. Debalde. Não consigo reconstituir o momento exacto em que me rendi ao seu encanto. Eu tinha 20 anos. Estou quase a completar os 32. Fiquei entontecida e ainda não me curei. Nem quero. Durante os últimos doze anos tenho-o amado semi-secretamente. Depois, uma pessoa casa-se, tem filhos, amadurece e compreende a existência de um mundo paralelo onde habita a fantasia, o sonho, a imaginação. Um mundo tão real que até dói. Tão real que não se intersecciona, não pode, com o outro mundo real. Aquele onde inspiramos oxigénio e expiramos dióxido de carbono. E quando uma pessoa compreende a existência daquele mundo outro, onde sem asas também voamos, retira-lhe delicadamente as amarras do segredo e deixa que lhe inunde o coração. Eu casei, tive filhos e compreendi que este meu mundo, tão belo e tão dolorosamente infinito, me pede uma configuração retórica.Já o conhecia dos livros mas, ao vivo e a cores, só no 3º ano da licenciatura. Foi meu professor de Literatura Portuguesa. Com ele redescobri Cesário Verde, Antero e Eça de Queiroz. Consegui um 17 no final do semestre. A Paula sempre achou deliciosa esta minha paixão avassaladora. A Nath e a Gorete, depois do choque inicial, confirmaram as suspeitas sobre a minha insanidade. O Paulo sorri; reconhece-lhe charme. A Tia Adoptada, entre risos, fala-me de dilema, terapia, alternativa. E entre risos ajuda-me a compor o título deste post. O C. abana a cabeça. Não lhe agrada muito, nada, tamanha tontaria. As minhas amigas sabem, como eu o sei tão bem, que esta paixão avassaladora vive num cantinho daquele mundo só meu. Da impossibilidade de qualquer interferência entre as duas dimensões. Eu sempre amei o C., homem da minha vida. Esta minha outra paixão também tem o seu amor. É casado com uma mulher lindíssima, alta e magra, exigente, rigorosa. Um passo fora do que assim é e o meu mundo ruiria. Em cacos, perderia a cor. E esta paixão, tão bela tão minha tão pura, ficaria com o travo amargo da desilusão. Gosto deste amor assim, que sem ser utópico não é tangível.Ele é magro. E delicado como um poema. Tem uma altura média. De bicos de pés conseguiria roubar-lhe um beijo. Nos olhos habitam mundos distantes. No sorriso, uma doçura antiga, quase pueril. Tem uma voz velada de onde saem bailando palavras com timbre de segredo. É sóbrio, recto, sério, rigoroso. Escreve ensaios legíveis que me fazem crescer e contos que me fazem pensar. É um homem belo. Intemporal. E eu esqueço-me dos vinte e seis anos que o distanciam de mim.Lembro-me de como estava nervosa no dia em que teria de apresentar um capítulo d’ O Crime do Padre Amaro, de como se aprochegou, de como fixou os olhos claros nos meus, de como suave poisou a mão no meu ombro direito, de como sorriu. Tranquilizou-me. Que correria bem. O que eu não lhe contei é que não era o trabalho que estava em causa. Sempre fora muito segura dos meus afazeres académicos. O nervosismo era por ele, pela proximidade física, pelo frio na espinha, pelo fogo no peito. Lembro-me de quando nos cruzámos no final da licenciatura, de como me chamou, e de como, com a mão na minha omoplata esquerda enquanto caminhávamos, me sugeriu a via científica em vez do estágio profissional. Senti um calor inusitado e um suor súbito nas palmas das mãos. Lembro-me de como, no jantar de finalistas, me chamou para um lugar vago na mesa e de como fiquei à sua esquerda no céu do meu vestido azul.Fiz o estágio, casei, os meninos nasceram. Nunca mais o vi. Até que num curso breve nos reencontrámos. O coração estremeceu, mas eu impus quietude ao resto do corpo. Quantos professores universitários se recordam d@s pupil@s que, aos magotes, lhes passaram pelas mãos durante um mísero semestre? Mas ele sorriu. E avançou. Sussurou o meu nome. Há palavras de que me possa socorrer? O meu nome. Há quanto tempo? Uns cinco anos? Reencontro-o em colóquios, congresso, eventos na capital. Estremeço, canto e bailo, endoideço. Só eu o sei. Imponho-me a decência social. Trocamos sorrisos, dois beijinhos, algumas palavras. Regressamos às nossas vidas. E trago-o comigo. Naquele mundo que já não é secreto. Colorido com matizes que não existem, perfumado com aroma de mar, terra molhada e alecrim.Fernando Cabral Martins.Meu professor. Meu poema. Meu amor. Meu silêncio.


Faço um esforço para aclarar a memória. Debalde. Não consigo reconstituir o momento exacto em que me rendi ao seu encanto. Eu tinha 20 anos. Estou quase a completar os 32. Fiquei entontecida e ainda não me curei. Nem quero. Durante os últimos doze anos tenho-o amado semi-secretamente. Depois, uma pessoa casa-se, tem filhos, amadurece e compreende a existência de um mundo paralelo onde habita a fantasia, o sonho, a imaginação. Um mundo tão real que até dói. Tão real que não se intersecciona, não pode, com o outro mundo real. Aquele onde inspiramos oxigénio e expiramos dióxido de carbono. E quando uma pessoa compreende a existência daquele mundo outro, onde sem asas também voamos, retira-lhe delicadamente as amarras do segredo e deixa que lhe inunde o coração. Eu casei, tive filhos e compreendi que este meu mundo, tão belo e tão dolorosamente infinito, me pede uma configuração retórica.Já o conhecia dos livros mas, ao vivo e a cores, só no 3º ano da licenciatura. Foi meu professor de Literatura Portuguesa. Com ele redescobri Cesário Verde, Antero e Eça de Queiroz. Consegui um 17 no final do semestre. A Paula sempre achou deliciosa esta minha paixão avassaladora. A Nath e a Gorete, depois do choque inicial, confirmaram as suspeitas sobre a minha insanidade. O Paulo sorri; reconhece-lhe charme. A Tia Adoptada, entre risos, fala-me de dilema, terapia, alternativa. E entre risos ajuda-me a compor o título deste post. O C. abana a cabeça. Não lhe agrada muito, nada, tamanha tontaria. As minhas amigas sabem, como eu o sei tão bem, que esta paixão avassaladora vive num cantinho daquele mundo só meu. Da impossibilidade de qualquer interferência entre as duas dimensões. Eu sempre amei o C., homem da minha vida. Esta minha outra paixão também tem o seu amor. É casado com uma mulher lindíssima, alta e magra, exigente, rigorosa. Um passo fora do que assim é e o meu mundo ruiria. Em cacos, perderia a cor. E esta paixão, tão bela tão minha tão pura, ficaria com o travo amargo da desilusão. Gosto deste amor assim, que sem ser utópico não é tangível.Ele é magro. E delicado como um poema. Tem uma altura média. De bicos de pés conseguiria roubar-lhe um beijo. Nos olhos habitam mundos distantes. No sorriso, uma doçura antiga, quase pueril. Tem uma voz velada de onde saem bailando palavras com timbre de segredo. É sóbrio, recto, sério, rigoroso. Escreve ensaios legíveis que me fazem crescer e contos que me fazem pensar. É um homem belo. Intemporal. E eu esqueço-me dos vinte e seis anos que o distanciam de mim.Lembro-me de como estava nervosa no dia em que teria de apresentar um capítulo d’ O Crime do Padre Amaro, de como se aprochegou, de como fixou os olhos claros nos meus, de como suave poisou a mão no meu ombro direito, de como sorriu. Tranquilizou-me. Que correria bem. O que eu não lhe contei é que não era o trabalho que estava em causa. Sempre fora muito segura dos meus afazeres académicos. O nervosismo era por ele, pela proximidade física, pelo frio na espinha, pelo fogo no peito. Lembro-me de quando nos cruzámos no final da licenciatura, de como me chamou, e de como, com a mão na minha omoplata esquerda enquanto caminhávamos, me sugeriu a via científica em vez do estágio profissional. Senti um calor inusitado e um suor súbito nas palmas das mãos. Lembro-me de como, no jantar de finalistas, me chamou para um lugar vago na mesa e de como fiquei à sua esquerda no céu do meu vestido azul.Fiz o estágio, casei, os meninos nasceram. Nunca mais o vi. Até que num curso breve nos reencontrámos. O coração estremeceu, mas eu impus quietude ao resto do corpo. Quantos professores universitários se recordam d@s pupil@s que, aos magotes, lhes passaram pelas mãos durante um mísero semestre? Mas ele sorriu. E avançou. Sussurou o meu nome. Há palavras de que me possa socorrer? O meu nome. Há quanto tempo? Uns cinco anos? Reencontro-o em colóquios, congresso, eventos na capital. Estremeço, canto e bailo, endoideço. Só eu o sei. Imponho-me a decência social. Trocamos sorrisos, dois beijinhos, algumas palavras. Regressamos às nossas vidas. E trago-o comigo. Naquele mundo que já não é secreto. Colorido com matizes que não existem, perfumado com aroma de mar, terra molhada e alecrim.Fernando Cabral Martins.Meu professor. Meu poema. Meu amor. Meu silêncio.

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