Fernando Cabral Martins é professor da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Um dos mais reputados especialistas portugueses do Modernismo, e da sua anunciação em Cesário Verde e no simbolismo, tem obra vasta sobre o período, tendo estudado as obras de Mário de Sá-Carneiro, que também editou, de Fernando Pessoa, sendo responsável directo por vários volumes da edição em curso na Assírio & Alvim, e de Almada Negreiros, cuja edição recente na mesma casa editorial vem coordenando. Coordenou um recente, e monumental, Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português. Preparou ainda, a sós ou em colaboração, edições da obra de Luiza Neto Jorge e Alexandre O’Neill. Deu rosto e voz a Pessoa em Conversa Acabada, filme de João Botelho, de 1981. É também autor de uma singular obra ficcional, cujos últimos títulos são O Deceptista, 2003, e Viagem ao Interior, 2004. Agradecemos a Fernando Cabral Martins a sua disponibilidade para colaborar no nosso inquérito.
1) Qual é, em seu entender, o melhor livro de ficção (romance, novela ou conto) portuguesa do século XX? Porquê?
2) Qual é, em seu entender, o melhor livro de poesia portuguesa do século XX? Porquê?
Creio que os dois livros mais importantes do século XX são o Livro do Desassossego de Pessoa, o grande livro de poesia, e Mau Tempo no Canal de Nemésio, o grande livro de ficção narrativa.
No caso de Pessoa, segundo o modo da explosão radical e de uma fragmentação absoluta (e apta, portanto, a tremendas oscilações editoriais) mas que, ainda assim e em permanente surpresa, guarda muitos momentos de contemplação e de intensidade. É o caso mais devastador que existe de uma poesia que se mostra, no fulgor das palavras enquanto tais, inteiramente um monólogo exterior.
No caso de Nemésio, segundo o modo da descrição que revela e inclui num caleidoscópio todas as sensações contadas, como se todos os aspectos do que chamamos realidade, física, cultural ou emocional, se tornassem transparentes e entrassem num estado de íntima correspondência.
3) Se a pergunta não fosse «qual o melhor» mas sim «qual o mais importante», as suas respostas seriam as mesmas ou seriam diferentes? Em quê, no segundo caso?
Pensando agora na minha experiência pobremente pessoal (e geracional), ela não se coaduna nada com uma constatação genérica de tipo histórico-literário. Para mim, o livro de ficção narrativa mais importante do meu século XX (o melhor, nesse particular sentido) é A Noite e o Riso de Nuno Bragança, e o melhor livro de poesia é 19 Recantos de Luiza Neto Jorge. Qualquer um deles lido em graus diferentes de exaltação e mudando o ponto de vista, exactamente como escrituras, contendo revelações que tivessem a ver misteriosamente comigo. Repare-se que estamos na passagem dos anos 60 para os 70, que é uma altura em que anda electricidade no ar.
Parece-me curioso que se veja já tão nitidamente que o romance de Nuno Bragança se enrugou e ressequiu (não consigo perceber o que se passou), transformando-o em alguma coisa que já não é literatura, mas uma experiência da imaginação directamente ligada à história e dela dependente – como, eventualmente, testemunho dela. De qualquer modo, aquele livro de Nuno Bragança em particular tem uma resolução estética que é ressonância das palavras desse tempo. Mas confesso que seria hoje incapaz de retomar consistentemente de algum modo A Noite e o Riso, porque esse romance menor me fez abrir muitos sentidos maiores. Deve ser, imagino eu, por essa mesma razão que me recuso terminantemente a rever À Bout de Souffle ou Pierrot le Fou, filmes na altura tão catalizadores e eufóricos e que o tempo ao passar (como?) esvaziou, até os tornar bandas de luz e som sem nada lá dentro a não ser lugares-comuns (e falo apenas por três minutos de revisionamento que, logo interrompidos para que a sagrada memória permanecesse, rapidamente concluiram dessa desgraça banal e gloriosa da arte que vai morrendo como tudo vai morrendo).
Já o livro de Luiza Neto Jorge continua a ser um grande livro de poesia do nosso século XX. Ainda. Se assim o quisesse, porque não?, dado que a partir de certo grau de complexidade e de brilho é só a escolha pessoal que «criticamente» nos orienta (e se por acaso não tivesse havido Pessoa, autor-catástrofe que nos aconteceu e desequilibra tudo), até poderia dizê-lo «o mais importante livro de poesia do século XX». A sua leitura permanece a mesma viagem aventurosa por um veloz curso de palavras que perderam a referência ao mundo e ganharam vida própria. A refundição alquímica que nos seus versos se opera é uma poética materialista, e os sentidos que faz são regidos pela música e pelos reflexos de luz.
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Fernando Cabral Martins é professor da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Um dos mais reputados especialistas portugueses do Modernismo, e da sua anunciação em Cesário Verde e no simbolismo, tem obra vasta sobre o período, tendo estudado as obras de Mário de Sá-Carneiro, que também editou, de Fernando Pessoa, sendo responsável directo por vários volumes da edição em curso na Assírio & Alvim, e de Almada Negreiros, cuja edição recente na mesma casa editorial vem coordenando. Coordenou um recente, e monumental, Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português. Preparou ainda, a sós ou em colaboração, edições da obra de Luiza Neto Jorge e Alexandre O’Neill. Deu rosto e voz a Pessoa em Conversa Acabada, filme de João Botelho, de 1981. É também autor de uma singular obra ficcional, cujos últimos títulos são O Deceptista, 2003, e Viagem ao Interior, 2004. Agradecemos a Fernando Cabral Martins a sua disponibilidade para colaborar no nosso inquérito.
1) Qual é, em seu entender, o melhor livro de ficção (romance, novela ou conto) portuguesa do século XX? Porquê?
2) Qual é, em seu entender, o melhor livro de poesia portuguesa do século XX? Porquê?
Creio que os dois livros mais importantes do século XX são o Livro do Desassossego de Pessoa, o grande livro de poesia, e Mau Tempo no Canal de Nemésio, o grande livro de ficção narrativa.
No caso de Pessoa, segundo o modo da explosão radical e de uma fragmentação absoluta (e apta, portanto, a tremendas oscilações editoriais) mas que, ainda assim e em permanente surpresa, guarda muitos momentos de contemplação e de intensidade. É o caso mais devastador que existe de uma poesia que se mostra, no fulgor das palavras enquanto tais, inteiramente um monólogo exterior.
No caso de Nemésio, segundo o modo da descrição que revela e inclui num caleidoscópio todas as sensações contadas, como se todos os aspectos do que chamamos realidade, física, cultural ou emocional, se tornassem transparentes e entrassem num estado de íntima correspondência.
3) Se a pergunta não fosse «qual o melhor» mas sim «qual o mais importante», as suas respostas seriam as mesmas ou seriam diferentes? Em quê, no segundo caso?
Pensando agora na minha experiência pobremente pessoal (e geracional), ela não se coaduna nada com uma constatação genérica de tipo histórico-literário. Para mim, o livro de ficção narrativa mais importante do meu século XX (o melhor, nesse particular sentido) é A Noite e o Riso de Nuno Bragança, e o melhor livro de poesia é 19 Recantos de Luiza Neto Jorge. Qualquer um deles lido em graus diferentes de exaltação e mudando o ponto de vista, exactamente como escrituras, contendo revelações que tivessem a ver misteriosamente comigo. Repare-se que estamos na passagem dos anos 60 para os 70, que é uma altura em que anda electricidade no ar.
Parece-me curioso que se veja já tão nitidamente que o romance de Nuno Bragança se enrugou e ressequiu (não consigo perceber o que se passou), transformando-o em alguma coisa que já não é literatura, mas uma experiência da imaginação directamente ligada à história e dela dependente – como, eventualmente, testemunho dela. De qualquer modo, aquele livro de Nuno Bragança em particular tem uma resolução estética que é ressonância das palavras desse tempo. Mas confesso que seria hoje incapaz de retomar consistentemente de algum modo A Noite e o Riso, porque esse romance menor me fez abrir muitos sentidos maiores. Deve ser, imagino eu, por essa mesma razão que me recuso terminantemente a rever À Bout de Souffle ou Pierrot le Fou, filmes na altura tão catalizadores e eufóricos e que o tempo ao passar (como?) esvaziou, até os tornar bandas de luz e som sem nada lá dentro a não ser lugares-comuns (e falo apenas por três minutos de revisionamento que, logo interrompidos para que a sagrada memória permanecesse, rapidamente concluiram dessa desgraça banal e gloriosa da arte que vai morrendo como tudo vai morrendo).
Já o livro de Luiza Neto Jorge continua a ser um grande livro de poesia do nosso século XX. Ainda. Se assim o quisesse, porque não?, dado que a partir de certo grau de complexidade e de brilho é só a escolha pessoal que «criticamente» nos orienta (e se por acaso não tivesse havido Pessoa, autor-catástrofe que nos aconteceu e desequilibra tudo), até poderia dizê-lo «o mais importante livro de poesia do século XX». A sua leitura permanece a mesma viagem aventurosa por um veloz curso de palavras que perderam a referência ao mundo e ganharam vida própria. A refundição alquímica que nos seus versos se opera é uma poética materialista, e os sentidos que faz são regidos pela música e pelos reflexos de luz.