Papéis de Alexandria*: A terrível coisa

10-10-2009
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Crónica de Vítor Diasno Semanário de 23.08.2002A nossa conversa de hoje é assumidamente árida e, portanto, manifestamente imprópria para a estação que está a correr mas, do nosso ponto de vista, corresponde à necessidade de prestar uma espécie de serviço público de informação face a incontáveis e continuadas referências de jornalistas, comentadores e outros protagonistas políticos ao nefando, tenebroso e odioso “centralismo democrático” que regeria a orgânica e a vida interna do PCP.Antes do essencial, impõem-se porém algumas notas prévias de enquadramento.A primeira para sublinhar que, naquelas vozes, o doentio furor e hostilidade ao dito “centralismo democrático” (ou seja, um “centralismo” que, não por acaso, é adjectivado de “democrático”) só tem paralelo no contemporâneo silêncio, tolerância e prática face ao centralismo “tout court” que existe em numerosas esferas da sociedade, como por exemplo na administração pública, nas empresas, em partidos que não são objecto de ataques similares aos movidos ao PCP e que também é particularmente óbvio na organização e funcionamento interno dos órgãos de comunicação social.E é este vício fundamental que pode, por exemplo, explicar que até Miguel Sousa Tavares também entre à espadeirada contra o terrível “centralismo democrático” do PCP, ele que em 1998 foi dirigente do “Portugal Único” - movimento de cidadãos contra a regionalização - sem que na constituição desse movimento (baseada na recolha de assinaturas através de cupões publicados na imprensa !) tivesse sido cumprido a exigência legal de que as assinaturas aparecessem formalmente vinculadas à identificação de pelo menos 25 mandatários.A segunda nota prévia, ditada por uma atitude de rigor, destina-se a sublinhar que a referência ao “centralismo democrático” nos Estatutos do PCP em vigor constitui uma oração intercalada e não, como acontecia antes, uma oração principal, alteração que significou obviamente o passar-se a colocar a tónica não na fórmula ou nas suas petrificações ou sacralizações mas no conteúdo real e substantivo dos princípios orgânicos de que o PCP se reclama e que historicamente são apresentados como inseridos no “desenvolvimento criativo do centralismo democrático”.E embora saibamos que a história do conceito e das suas diferenciadas práticas não se esgota no que vem a seguir, a verdade é que só revisitando os princípios orgânicos estatutariamente definidos no PCP é que se poderá avaliar seriamente se “a coisa” ( correntemente identificada por “centralismo democrático”) é assim uma tão negativa excepção nas regras do conjunto dos partidos e se é assim tão tenebrosa e horrível. Começamos por dar de barato que ninguém se escandalize por o art.º 16º dos Estatutos do PCP apresentar como características essenciais dos objectivos dos seus princípios orgânicos o assegurar simultaneamente “uma profunda democracia interna uma única orientação geral e uma única direcção central”. Porque não há nenhum partido que consagre ou aceite o princípio de ter duas ou três orientações gerais ou direcções centrais.Sendo oito os “princípios orgânicos fundamentais” do PCP, vale a pena examinar cada um.O primeiro prescreve “a eleição dos organismos dirigentes do Partido, da base ao topo, e o direito de destituição de qualquer eleito pelo colectivo que o elegeu” e não vemos o que se possa objectar contra isso.O segundo estabelece “a obrigatoriedade de os organismos dirigentes prestarem regularmente contas da sua actividade às organizações respectivas e considerarem atentamente as opiniões e críticas que estas exprimam como contribuição para a sua própria reflexão e respectivas decisões e melhorar o funcionamento colectivo”. E sobre esta disposição, que curiosamente, não tem similar nos Estatutos do PS ou PSD, também ninguém se atreverá a dizer que é antidemocrática ou autoritária.O terceiro consagra “o carácter vinculativo para todos os organismos das decisões dos organismos de responsabilidade superior tomadas no âmbito das respectivas atribuições e competências e a obrigatoriedade de todos os organismos prestarem contas da sua actividade aos organismos de responsabilidade superior”, o que, mais coisa menos coisa, corresponde manifestamente à prática de todos os partidos.O quarto assegura “ a livre expressão das opiniões e a sua atenta consideração e debate, procurando que, no trabalho, na reflexão, decisão e acção colectivas dos organismos e organizações do Partido, participe o maior número possível de membros e sejam inseridos os contributos individuais” e representa um compromisso estatutário superior às formulações usadas por outros partidos.O quinto sublinha “ o cumprimento por todos das decisões tomadas por consenso ou maioria” que, estando presente nos Estatutos de todos os partidos, é além do mais uma regra básica de uma associação livre de cidadãos.O sexto consagra “o trabalho colectivo e a direcção colectiva” e sendo sem dúvida uma especificidade do PCP é-o de forma positiva porque acentua a vertente democrática face ao centralismo e às suas versões personalizadas que permitem, por exemplo que noutros partidos, só os líderes possam formalizar coligações e a eles se atribuam quotas de candidatos a deputados.O sétimo enfatiza “o poder de decisão e a mais ampla iniciativa de todas as organizações do Partido na sua esfera de acção, no quadro dos princípios estatutários, da linha política do Partido e das resoluções dos organismos de responsabilidade superior” e igualmente não se percebe que excepcionalidade negativa tem este principio no panorama dos Estatutos e práticas dos restantes partidos.O oitavo pronuncia-se pelo “cumprimento das disposições estatutárias por todos os membros do Partido e a não admissão de fracções - entendidas como a formação de grupos ou tendências organizadas - que desenvolvam actividades em torno de propostas ou plataformas políticas próprias”, sendo que a primeira parte é idêntica às formulações de outros partidos e a segunda é similar à usada por alguns deles, sendo certo que dos principais não há nenhum em Portugal que aceite tendências ou fracções organizadas.A terminar, retenha-se pois que, dado o conteúdo real destes oito princípios orgânicos do PCP, tanta gritaria, hostilidade e clichés contra o “centralismo democrático” têm, no essencial, de ser filhos ou de uma insuperável ignorância ou de um preconceito sem limites.


Crónica de Vítor Diasno Semanário de 23.08.2002A nossa conversa de hoje é assumidamente árida e, portanto, manifestamente imprópria para a estação que está a correr mas, do nosso ponto de vista, corresponde à necessidade de prestar uma espécie de serviço público de informação face a incontáveis e continuadas referências de jornalistas, comentadores e outros protagonistas políticos ao nefando, tenebroso e odioso “centralismo democrático” que regeria a orgânica e a vida interna do PCP.Antes do essencial, impõem-se porém algumas notas prévias de enquadramento.A primeira para sublinhar que, naquelas vozes, o doentio furor e hostilidade ao dito “centralismo democrático” (ou seja, um “centralismo” que, não por acaso, é adjectivado de “democrático”) só tem paralelo no contemporâneo silêncio, tolerância e prática face ao centralismo “tout court” que existe em numerosas esferas da sociedade, como por exemplo na administração pública, nas empresas, em partidos que não são objecto de ataques similares aos movidos ao PCP e que também é particularmente óbvio na organização e funcionamento interno dos órgãos de comunicação social.E é este vício fundamental que pode, por exemplo, explicar que até Miguel Sousa Tavares também entre à espadeirada contra o terrível “centralismo democrático” do PCP, ele que em 1998 foi dirigente do “Portugal Único” - movimento de cidadãos contra a regionalização - sem que na constituição desse movimento (baseada na recolha de assinaturas através de cupões publicados na imprensa !) tivesse sido cumprido a exigência legal de que as assinaturas aparecessem formalmente vinculadas à identificação de pelo menos 25 mandatários.A segunda nota prévia, ditada por uma atitude de rigor, destina-se a sublinhar que a referência ao “centralismo democrático” nos Estatutos do PCP em vigor constitui uma oração intercalada e não, como acontecia antes, uma oração principal, alteração que significou obviamente o passar-se a colocar a tónica não na fórmula ou nas suas petrificações ou sacralizações mas no conteúdo real e substantivo dos princípios orgânicos de que o PCP se reclama e que historicamente são apresentados como inseridos no “desenvolvimento criativo do centralismo democrático”.E embora saibamos que a história do conceito e das suas diferenciadas práticas não se esgota no que vem a seguir, a verdade é que só revisitando os princípios orgânicos estatutariamente definidos no PCP é que se poderá avaliar seriamente se “a coisa” ( correntemente identificada por “centralismo democrático”) é assim uma tão negativa excepção nas regras do conjunto dos partidos e se é assim tão tenebrosa e horrível. Começamos por dar de barato que ninguém se escandalize por o art.º 16º dos Estatutos do PCP apresentar como características essenciais dos objectivos dos seus princípios orgânicos o assegurar simultaneamente “uma profunda democracia interna uma única orientação geral e uma única direcção central”. Porque não há nenhum partido que consagre ou aceite o princípio de ter duas ou três orientações gerais ou direcções centrais.Sendo oito os “princípios orgânicos fundamentais” do PCP, vale a pena examinar cada um.O primeiro prescreve “a eleição dos organismos dirigentes do Partido, da base ao topo, e o direito de destituição de qualquer eleito pelo colectivo que o elegeu” e não vemos o que se possa objectar contra isso.O segundo estabelece “a obrigatoriedade de os organismos dirigentes prestarem regularmente contas da sua actividade às organizações respectivas e considerarem atentamente as opiniões e críticas que estas exprimam como contribuição para a sua própria reflexão e respectivas decisões e melhorar o funcionamento colectivo”. E sobre esta disposição, que curiosamente, não tem similar nos Estatutos do PS ou PSD, também ninguém se atreverá a dizer que é antidemocrática ou autoritária.O terceiro consagra “o carácter vinculativo para todos os organismos das decisões dos organismos de responsabilidade superior tomadas no âmbito das respectivas atribuições e competências e a obrigatoriedade de todos os organismos prestarem contas da sua actividade aos organismos de responsabilidade superior”, o que, mais coisa menos coisa, corresponde manifestamente à prática de todos os partidos.O quarto assegura “ a livre expressão das opiniões e a sua atenta consideração e debate, procurando que, no trabalho, na reflexão, decisão e acção colectivas dos organismos e organizações do Partido, participe o maior número possível de membros e sejam inseridos os contributos individuais” e representa um compromisso estatutário superior às formulações usadas por outros partidos.O quinto sublinha “ o cumprimento por todos das decisões tomadas por consenso ou maioria” que, estando presente nos Estatutos de todos os partidos, é além do mais uma regra básica de uma associação livre de cidadãos.O sexto consagra “o trabalho colectivo e a direcção colectiva” e sendo sem dúvida uma especificidade do PCP é-o de forma positiva porque acentua a vertente democrática face ao centralismo e às suas versões personalizadas que permitem, por exemplo que noutros partidos, só os líderes possam formalizar coligações e a eles se atribuam quotas de candidatos a deputados.O sétimo enfatiza “o poder de decisão e a mais ampla iniciativa de todas as organizações do Partido na sua esfera de acção, no quadro dos princípios estatutários, da linha política do Partido e das resoluções dos organismos de responsabilidade superior” e igualmente não se percebe que excepcionalidade negativa tem este principio no panorama dos Estatutos e práticas dos restantes partidos.O oitavo pronuncia-se pelo “cumprimento das disposições estatutárias por todos os membros do Partido e a não admissão de fracções - entendidas como a formação de grupos ou tendências organizadas - que desenvolvam actividades em torno de propostas ou plataformas políticas próprias”, sendo que a primeira parte é idêntica às formulações de outros partidos e a segunda é similar à usada por alguns deles, sendo certo que dos principais não há nenhum em Portugal que aceite tendências ou fracções organizadas.A terminar, retenha-se pois que, dado o conteúdo real destes oito princípios orgânicos do PCP, tanta gritaria, hostilidade e clichés contra o “centralismo democrático” têm, no essencial, de ser filhos ou de uma insuperável ignorância ou de um preconceito sem limites.

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