O Acidental: O retrato de Cunhal (segundo Vasco Rato) *

23-05-2009
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A morte de Álvaro Cunhal gerou um curioso unanimismo. Afirmou-se que o antigo líder comunista combateu o regime autoritário, que desempenhou um “papel relevante” na nossa História recente e que foi um “fundador” da democracia portuguesa. Que Cunhal tenha combatido o regime anterior, ou que teve um “papel relevante” no pós-25 de Abril, parece-me incontroverso. Mas acrescentar que foi um “fundador” da democracia – e que a nossa democracia muito lhe deve - não passa de um revisionismo político inaceitável que diminui todos os cidadãos que genuinamente combateram pelo pluralismo no nosso país. Homem público que sempre cultivou o mistério em volta da sua vida privada, Cunhal, em tudo que dizia e fazia, reconhecia haver significado político. A sua morte, como seria de esperar, transformou-se num acontecimento político, simbolizado pela exposição do caixão na sede do PCP coberto pela bandeira do partido. Não houve, pois, nada de “privado” na morte de Álvaro Cunhal. E não faltaram os elogios à sua “coerência”, à sua defesa do marxismo-leninismo e à sua fé quanto ao triunfo final do socialismo. Tornou-se fashionable – à esquerda e à direita – enaltecer Cunhal. Todavia, a tragédia política de Cunhal reside precisamente na sua “coerência”. Como disse Emídio Guerreiro, em entrevista ao “Jornal de Notícias”, “essa coerência, para mim, é uma catástrofe. O facto de ser coerente com um bandido como era o Estaline não beneficia nada a personalidade do Cunhal. Isso pode ser sinal de fundamentalismo.”Perante o desastre monumental que foi o comunismo, Cunhal continuava a acreditar na superioridade de um sistema que fez milhões de vítimas. Contra todas as evidências, nunca deixou de acreditar nos “amanhãs que cantam”. Recusando-se a expressar a mais pequena dúvida, permaneceu convencido de que tinha razão. Mesmo quando o mundo o desmentia. Porquê? A resposta pode ser encontrada num pequeno texto de autoria de Cunhal: “A superioridade moral dos comunistas” (Edições Avante). É um texto esclarecedor porque revela a mentalidade de um homem “esclarecido”, disposto a fazer tudo pela utopia. Um homem que se sente moralmente superior aos seus adversários políticos porque se julga detentor da “verdade”. Um homem que, sendo moralmente superior aos seus adversários, nunca os poderia tolerar. Trata-se, no fundo, de um texto que denuncia a mente de um fanático. O comunismo defendido por Cunhal foi – a par do fascismo/nazismo - uma das duas experiências políticas mais trágicas do Século XX. A construção do “socialismo real” na União Soviética e outros “países fraternos” saldou-se pelo fracasso económico, e pela negação da liberdade individual. E por muitos cadáveres. O terror foi um dos instrumentos privilegiados para “construir o socialismo”, e a ditadura de classe nunca passou de uma ditadura do partido. Esses mesmos partidos - desde a Polónia à Camboja de Pol Pot - dizimaram povos, sociedades e pessoas. Tudo em nome de uma sociedade ideal sonhada por seitas messiânicas que estavam dispostas a usar o terror para fazer a engenharia das almas. Em suma, o comunismo não passou de um gigantesco crime contra a humanidade. As boas intenções - o ideário comunista – apenas mascarava a barbárie que era a realidade socialista. É necessário recordar que o projecto do PCP – ao contrário daquilo que muitos disseram ao longo dos últimos dias – não visava garantir a democracia e a liberdade. Cunhal combateu o regime autoritário, mas não o fez em nome da democracia e da liberdade. Fê-lo para reproduzir em Portugal o modelo de construção socialista soviético, caracterizado por Cunhal como “o sol na terra”. Fê-lo para impor uma ditadura leninista assente no terror. Convém recordar a distinção feita por Mário Soares durante o processo revolucionário de 1974/75. Soares defendia o socialismo “em liberdade” contra o socialismo ditatorial do PCP. Sobre isto não pode haver esquecimento, nem a morte de Cunhal pode servir para mistificar estes factos. Respeitar os mortos não passa pelo branqueamento do “papel relevante” desempenhado por Cunhal na nossa História recente.Mesmo depois do desmoronamento da União Soviética e do seu império europeu, Cunhal recusou perceber o mundo que o rodeava. O fracasso do comunismo europeu resultava apenas de erros subjectivos, das decisões de traidores que haviam renegado o marxismo-leninismo. Era uma explicação pouco “materialista”, mas não importava. Nada do que Cunhal havia previsto ao longo de uma vida se confirmara. As economias de mercado reforçaram-se, as revoluções extinguiram-se, os partidos comunistas ruíram, e o proletariado deixou de ser uma força sociológica relevante. E, apesar de tudo, Cunhal continuava a acreditar. Restava-lhe a fé. Restava-lhe a certeza de que – num futuro longínquo – a História iria absolvê-lo. Restava-lhe a fé messiânica do profeta. Mas, politicamente, não lhe restava nada. Foi um vencido. [Vasco Rato]* Artigo de opinião publicado hoje n'O Independente.

A morte de Álvaro Cunhal gerou um curioso unanimismo. Afirmou-se que o antigo líder comunista combateu o regime autoritário, que desempenhou um “papel relevante” na nossa História recente e que foi um “fundador” da democracia portuguesa. Que Cunhal tenha combatido o regime anterior, ou que teve um “papel relevante” no pós-25 de Abril, parece-me incontroverso. Mas acrescentar que foi um “fundador” da democracia – e que a nossa democracia muito lhe deve - não passa de um revisionismo político inaceitável que diminui todos os cidadãos que genuinamente combateram pelo pluralismo no nosso país. Homem público que sempre cultivou o mistério em volta da sua vida privada, Cunhal, em tudo que dizia e fazia, reconhecia haver significado político. A sua morte, como seria de esperar, transformou-se num acontecimento político, simbolizado pela exposição do caixão na sede do PCP coberto pela bandeira do partido. Não houve, pois, nada de “privado” na morte de Álvaro Cunhal. E não faltaram os elogios à sua “coerência”, à sua defesa do marxismo-leninismo e à sua fé quanto ao triunfo final do socialismo. Tornou-se fashionable – à esquerda e à direita – enaltecer Cunhal. Todavia, a tragédia política de Cunhal reside precisamente na sua “coerência”. Como disse Emídio Guerreiro, em entrevista ao “Jornal de Notícias”, “essa coerência, para mim, é uma catástrofe. O facto de ser coerente com um bandido como era o Estaline não beneficia nada a personalidade do Cunhal. Isso pode ser sinal de fundamentalismo.”Perante o desastre monumental que foi o comunismo, Cunhal continuava a acreditar na superioridade de um sistema que fez milhões de vítimas. Contra todas as evidências, nunca deixou de acreditar nos “amanhãs que cantam”. Recusando-se a expressar a mais pequena dúvida, permaneceu convencido de que tinha razão. Mesmo quando o mundo o desmentia. Porquê? A resposta pode ser encontrada num pequeno texto de autoria de Cunhal: “A superioridade moral dos comunistas” (Edições Avante). É um texto esclarecedor porque revela a mentalidade de um homem “esclarecido”, disposto a fazer tudo pela utopia. Um homem que se sente moralmente superior aos seus adversários políticos porque se julga detentor da “verdade”. Um homem que, sendo moralmente superior aos seus adversários, nunca os poderia tolerar. Trata-se, no fundo, de um texto que denuncia a mente de um fanático. O comunismo defendido por Cunhal foi – a par do fascismo/nazismo - uma das duas experiências políticas mais trágicas do Século XX. A construção do “socialismo real” na União Soviética e outros “países fraternos” saldou-se pelo fracasso económico, e pela negação da liberdade individual. E por muitos cadáveres. O terror foi um dos instrumentos privilegiados para “construir o socialismo”, e a ditadura de classe nunca passou de uma ditadura do partido. Esses mesmos partidos - desde a Polónia à Camboja de Pol Pot - dizimaram povos, sociedades e pessoas. Tudo em nome de uma sociedade ideal sonhada por seitas messiânicas que estavam dispostas a usar o terror para fazer a engenharia das almas. Em suma, o comunismo não passou de um gigantesco crime contra a humanidade. As boas intenções - o ideário comunista – apenas mascarava a barbárie que era a realidade socialista. É necessário recordar que o projecto do PCP – ao contrário daquilo que muitos disseram ao longo dos últimos dias – não visava garantir a democracia e a liberdade. Cunhal combateu o regime autoritário, mas não o fez em nome da democracia e da liberdade. Fê-lo para reproduzir em Portugal o modelo de construção socialista soviético, caracterizado por Cunhal como “o sol na terra”. Fê-lo para impor uma ditadura leninista assente no terror. Convém recordar a distinção feita por Mário Soares durante o processo revolucionário de 1974/75. Soares defendia o socialismo “em liberdade” contra o socialismo ditatorial do PCP. Sobre isto não pode haver esquecimento, nem a morte de Cunhal pode servir para mistificar estes factos. Respeitar os mortos não passa pelo branqueamento do “papel relevante” desempenhado por Cunhal na nossa História recente.Mesmo depois do desmoronamento da União Soviética e do seu império europeu, Cunhal recusou perceber o mundo que o rodeava. O fracasso do comunismo europeu resultava apenas de erros subjectivos, das decisões de traidores que haviam renegado o marxismo-leninismo. Era uma explicação pouco “materialista”, mas não importava. Nada do que Cunhal havia previsto ao longo de uma vida se confirmara. As economias de mercado reforçaram-se, as revoluções extinguiram-se, os partidos comunistas ruíram, e o proletariado deixou de ser uma força sociológica relevante. E, apesar de tudo, Cunhal continuava a acreditar. Restava-lhe a fé. Restava-lhe a certeza de que – num futuro longínquo – a História iria absolvê-lo. Restava-lhe a fé messiânica do profeta. Mas, politicamente, não lhe restava nada. Foi um vencido. [Vasco Rato]* Artigo de opinião publicado hoje n'O Independente.

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