A velhice é um naufrágio, sabe?*Quando um Homem de 105 anos diz que vai ao funeral de um amigo do coração, nem que seja a última coisa que faz, as palavras pesam muito mais do que o corpo, pesam mais do que a vida.Tive o privilégio de o conhecer hoje, de conversar com ele - quer dizer, de escutá-lo -, de olhá-lo nos olhos, por causa de um outro homem, um amigo dele, um amigo nosso.A velhice é um naufrágio, sabe?, disse-me ele no fim do encontro, veja se consegue extrair alguma coisa desta mina, que já deu muito mas agora não dá grande coisa. Quis dizer-lhe que estava enganado, tentei, mas duvido que me tenha ouvido. A conversa foi curta, porque nestas coisas é mesmo assim: chega-se com pressa, sai-se a correr, sem espaço para respirar. O melro do jardim não se desviou do carro mas percebendo a extemporaneidade voou para longe, antes que eu pudesse fixá-lo na memória.- Evadi-me porque nunca me habituei a estar preso - recorda com um sorriso -, o doutor Fernando Valle também passou pela cadeia mas teve mais sorte, nunca teve de estar longe da sua pátria.(...) Mas por que é que estou agora a recordar-me destas coisas que não interessam nada?(...)Sinto-me velho, cansado e é com alegria que vou dormir o sono eterno, como o meu grande amigo Fernando Valle.* Palavras de Emídio Guerreiro, na ressaca do desaparecimento de Fernando Valle.
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A velhice é um naufrágio, sabe?*Quando um Homem de 105 anos diz que vai ao funeral de um amigo do coração, nem que seja a última coisa que faz, as palavras pesam muito mais do que o corpo, pesam mais do que a vida.Tive o privilégio de o conhecer hoje, de conversar com ele - quer dizer, de escutá-lo -, de olhá-lo nos olhos, por causa de um outro homem, um amigo dele, um amigo nosso.A velhice é um naufrágio, sabe?, disse-me ele no fim do encontro, veja se consegue extrair alguma coisa desta mina, que já deu muito mas agora não dá grande coisa. Quis dizer-lhe que estava enganado, tentei, mas duvido que me tenha ouvido. A conversa foi curta, porque nestas coisas é mesmo assim: chega-se com pressa, sai-se a correr, sem espaço para respirar. O melro do jardim não se desviou do carro mas percebendo a extemporaneidade voou para longe, antes que eu pudesse fixá-lo na memória.- Evadi-me porque nunca me habituei a estar preso - recorda com um sorriso -, o doutor Fernando Valle também passou pela cadeia mas teve mais sorte, nunca teve de estar longe da sua pátria.(...) Mas por que é que estou agora a recordar-me destas coisas que não interessam nada?(...)Sinto-me velho, cansado e é com alegria que vou dormir o sono eterno, como o meu grande amigo Fernando Valle.* Palavras de Emídio Guerreiro, na ressaca do desaparecimento de Fernando Valle.