Lauro António Apresenta...: Televisão: Salazar em Mini Série

01-10-2009
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"A Vida Privada de Salazar" A humanização dos ditadores nunca me preocupou muito. A desumanização de que foram capazes, essa sim, preocupa-me, a mim e a todas as pessoas decentes, acredito. É muito mais inquietante percebermos que alguém que ama, que sofre, que gosta de passear e de fazer festas a um cão, que sorri para a empregada, que se preocupa com as vinhas e gosta de um bom copo de tinto, alguém que aprecia os prazeres da vida, é o mesmo alguém que reprime sem misericórdia, que manda matar, que sabe da tortura e a aceita. A existência de “monstros” desculpabiliza os homens. Mas haver homens iguais a mim que são capazes de tais torpezas alerta-me para o vizinho e para mim próprio. Nada é certo na vida, e é conveniente estar atento. Logo uma série de televisão sobre a vida amorosa de Salazar não me apoquenta. Saber que ele foi também capaz de pequenas tropelias sentimentais, que mentiu, traiu, escondeu-se, foi hipócrita, beijou, desejou, acariciou a pele de alguém, agarrou uma mão, tocou com o pé forrado a bota no delicado pé da mulher que estava ao seu lado no jantar, ou que deu uma queca bravia para os lados de Santa Comba Dão, com francesa ou portuguesa que se lhe atravessava pelo caminho, enquanto “estava casado com a Nação”, não me causa especiais engulhos. A Pide, a censura, o Tarrafal, Humberto Delgado (e muitos mais, com idêntica sorte), a guerra de África, as perseguições políticas, a falta de liberdade, o cinzentismo deste País (que ainda se prolonga em tantos salazarentos que por aí há, basta ler meia dúzia de blogues carregados de bolor e de ódio), isso sim, foi trágico. Saber que “ontem” existiu um homem, que até gostava de mulheres, mas que não gostava de pessoas que pensassem diferente dele, e que esse homem pôde chegar ao poder e fazer de um País o que lhe apeteceu, com a conivência cobarde de tantos, isso sim é revoltante. No entanto, salazarinhos de aviário continuam por aí, mandando beijinhos a senhoras, e proclamando a vontade de passar a ferro e fogo tudo quando mexa de forma diferente da sua. Preocupante, sobretudo quando há gente de boa fé (enfim, esperemos que estejam de boa fé!) que vai atrás da voz da sereia inquinada pelo ódio. Portanto, fica-se sabendo que amor e ódio coexistem na mesma pessoa facilmente. Quando ouvi falar na rodagem de “A Vida Privada de Salazar”, antecipei o pior, depois de livro de Felícia Cabrita, que oferecia pistas para uma escabrosa história de sexo e poder. Quase todos os portugueses sabiam do que se pretendia ter sido um “flirt” platónico com a jornalista francesa Christine Garnier que, no Verão de 1951, veio a Portugal fazer-lhe uma entrevista que deveria durar umas horas e acabou numa longa estada no retiro do Vimeiro, que culminaria num livro, “Vacances avec Salazar”. Mas, para lá desta aventura sentimental (e sexual), muitas outras se foram depois conhecendo a Salazar. Depois e antes, logo desde o seu tempo no seminário. É isso que esta mini-série de 180 minutos (dividida em dois episódios de 90’) pretende contar, partindo obviamente do livro de Christine Garnier que, apaixonada pelo ditador, tudo a ele entregou, a honra pessoal e a honra literária, e de algumas outras obras biográficas entretanto aparecidas. O resultado, porém, é uma agradável surpresa. A realização de Jorge Queiroga é de uma enorme sobriedade e eficácia, delicada e subtil nas sugestões (mesmo que aqui e ali force o tom erótico, por força do apelo comercial). A narrativa evolui com alguma argúcia, por entre diversas épocas e rostos de mulheres. Falta-lhe apenas, o que é grave, uma maior contextualização política e social. Os diálogos não ofendem. A reconstituição histórica, de ambientes e personagens, muito boa, credível e de bom gosto. (Quando não inventam quedas na banheira, que nunca existiram). Boas a fotografia e a partitura musical. E a interpretação bastante uniforme e bem conseguida, discreta, interiorizada, contida, feita de olhares e de gestos esboçados, conferindo ao todo uma consistência inusitada. Haverá quem não goste de ver esta “Vida Privada de Salazar”, mas tecnicamente e artisticamente, esta é definitivamente uma aposta ganha.Título original: A Vida Privada de SalazarRealização: Jorge Queiroga (Portugal, 2009); Argumento: Pedro Marta Santos/ António Costa Santos; Fotografia (cor): Orlando Alegria; Assistente de realização: João Roque; Produtora executiva: Ana Torres; Direcção de produção: Adelaide Empis; Produtor: Manuel S. Fonseca / Valentim de Carvalho / SIC.Intérpretes: António de Oliveira Salazar (Diogo Morgado), D. Maria de Jesus (Ana Guiomar/Margarida Carpinteiro), Júlia Perestelo (Catarina Wallenstein), Carolina Assenca (Ana Padrão), Christiane Garnier (Helena Nogueira), Hermínia (Benedita Pereira); Mário Figueiredo (João Lagarto), Felismina (Maria João Pinho), Sofia (Cláudia Vieira), Maria Emília Vieira (Soraia Chaves), Micas (Maria da Conceição) Jesus (Alexandra Viveiros/Alda Gomes), Maria Antónia (Beatriz Costa), Cardeal Cerejeira (Filipe Vargas), Padre confessor (José Pinto), Amália Rodrigues (Sandra Barata Belo), Duarte Pacheco (Tó Melo), etc.Duração: 2x90 minutos; Exibição na SIC, a 8 e 9 de Fevereiro de 2009


"A Vida Privada de Salazar" A humanização dos ditadores nunca me preocupou muito. A desumanização de que foram capazes, essa sim, preocupa-me, a mim e a todas as pessoas decentes, acredito. É muito mais inquietante percebermos que alguém que ama, que sofre, que gosta de passear e de fazer festas a um cão, que sorri para a empregada, que se preocupa com as vinhas e gosta de um bom copo de tinto, alguém que aprecia os prazeres da vida, é o mesmo alguém que reprime sem misericórdia, que manda matar, que sabe da tortura e a aceita. A existência de “monstros” desculpabiliza os homens. Mas haver homens iguais a mim que são capazes de tais torpezas alerta-me para o vizinho e para mim próprio. Nada é certo na vida, e é conveniente estar atento. Logo uma série de televisão sobre a vida amorosa de Salazar não me apoquenta. Saber que ele foi também capaz de pequenas tropelias sentimentais, que mentiu, traiu, escondeu-se, foi hipócrita, beijou, desejou, acariciou a pele de alguém, agarrou uma mão, tocou com o pé forrado a bota no delicado pé da mulher que estava ao seu lado no jantar, ou que deu uma queca bravia para os lados de Santa Comba Dão, com francesa ou portuguesa que se lhe atravessava pelo caminho, enquanto “estava casado com a Nação”, não me causa especiais engulhos. A Pide, a censura, o Tarrafal, Humberto Delgado (e muitos mais, com idêntica sorte), a guerra de África, as perseguições políticas, a falta de liberdade, o cinzentismo deste País (que ainda se prolonga em tantos salazarentos que por aí há, basta ler meia dúzia de blogues carregados de bolor e de ódio), isso sim, foi trágico. Saber que “ontem” existiu um homem, que até gostava de mulheres, mas que não gostava de pessoas que pensassem diferente dele, e que esse homem pôde chegar ao poder e fazer de um País o que lhe apeteceu, com a conivência cobarde de tantos, isso sim é revoltante. No entanto, salazarinhos de aviário continuam por aí, mandando beijinhos a senhoras, e proclamando a vontade de passar a ferro e fogo tudo quando mexa de forma diferente da sua. Preocupante, sobretudo quando há gente de boa fé (enfim, esperemos que estejam de boa fé!) que vai atrás da voz da sereia inquinada pelo ódio. Portanto, fica-se sabendo que amor e ódio coexistem na mesma pessoa facilmente. Quando ouvi falar na rodagem de “A Vida Privada de Salazar”, antecipei o pior, depois de livro de Felícia Cabrita, que oferecia pistas para uma escabrosa história de sexo e poder. Quase todos os portugueses sabiam do que se pretendia ter sido um “flirt” platónico com a jornalista francesa Christine Garnier que, no Verão de 1951, veio a Portugal fazer-lhe uma entrevista que deveria durar umas horas e acabou numa longa estada no retiro do Vimeiro, que culminaria num livro, “Vacances avec Salazar”. Mas, para lá desta aventura sentimental (e sexual), muitas outras se foram depois conhecendo a Salazar. Depois e antes, logo desde o seu tempo no seminário. É isso que esta mini-série de 180 minutos (dividida em dois episódios de 90’) pretende contar, partindo obviamente do livro de Christine Garnier que, apaixonada pelo ditador, tudo a ele entregou, a honra pessoal e a honra literária, e de algumas outras obras biográficas entretanto aparecidas. O resultado, porém, é uma agradável surpresa. A realização de Jorge Queiroga é de uma enorme sobriedade e eficácia, delicada e subtil nas sugestões (mesmo que aqui e ali force o tom erótico, por força do apelo comercial). A narrativa evolui com alguma argúcia, por entre diversas épocas e rostos de mulheres. Falta-lhe apenas, o que é grave, uma maior contextualização política e social. Os diálogos não ofendem. A reconstituição histórica, de ambientes e personagens, muito boa, credível e de bom gosto. (Quando não inventam quedas na banheira, que nunca existiram). Boas a fotografia e a partitura musical. E a interpretação bastante uniforme e bem conseguida, discreta, interiorizada, contida, feita de olhares e de gestos esboçados, conferindo ao todo uma consistência inusitada. Haverá quem não goste de ver esta “Vida Privada de Salazar”, mas tecnicamente e artisticamente, esta é definitivamente uma aposta ganha.Título original: A Vida Privada de SalazarRealização: Jorge Queiroga (Portugal, 2009); Argumento: Pedro Marta Santos/ António Costa Santos; Fotografia (cor): Orlando Alegria; Assistente de realização: João Roque; Produtora executiva: Ana Torres; Direcção de produção: Adelaide Empis; Produtor: Manuel S. Fonseca / Valentim de Carvalho / SIC.Intérpretes: António de Oliveira Salazar (Diogo Morgado), D. Maria de Jesus (Ana Guiomar/Margarida Carpinteiro), Júlia Perestelo (Catarina Wallenstein), Carolina Assenca (Ana Padrão), Christiane Garnier (Helena Nogueira), Hermínia (Benedita Pereira); Mário Figueiredo (João Lagarto), Felismina (Maria João Pinho), Sofia (Cláudia Vieira), Maria Emília Vieira (Soraia Chaves), Micas (Maria da Conceição) Jesus (Alexandra Viveiros/Alda Gomes), Maria Antónia (Beatriz Costa), Cardeal Cerejeira (Filipe Vargas), Padre confessor (José Pinto), Amália Rodrigues (Sandra Barata Belo), Duarte Pacheco (Tó Melo), etc.Duração: 2x90 minutos; Exibição na SIC, a 8 e 9 de Fevereiro de 2009

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