Transpórtis virtual di Kauberdi pa Aulil: Miragens das Hespérides

16-06-2005
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Fotografia de João Paradela.1. O mito do jardim das Hespérides, um dos longínquos espaços edénicos herdados da cultura clássica, tem as suas descrições literárias mais precisas na Teogonia de Hesíodo (que refere os “formosos, áureos pomos”) e nas odes corais de Eurípides (que menciona as “nascentes de ambrósia” daquela “terra divina, geradora de vida” e a “serpente de fulvo dorso”, guardiã dos pomos de ouro). Depois de, na época clássica, ter deambulado por vários lugares (entre as penínsulas itálica e ibérica, por exemplo), este jardim é situado, ao tempo da expansão portuguesa, por João de Barros, Duarte Pacheco Pereira e, com determinante autoridade, pelo Camões épico, no arquipélago de Cabo Verde (é Maria Helena da Rocha Pereira quem ensina isto).2. José Lopes da Silva e Pedro Monteiro Cardoso, alvitra Manuel Ferreira, terão contactado com o mito hesperitano no elitista e classicizante Seminário-Liceu de S. Nicolau, onde ambos estudaram. E acrescenta, no mesmo artigo de A Aventura Crioula, a respeito dos “dois ou três poemas” daqueles autores versando as Hespérides, que eles se constituem como “o mito que veio preencher um vazio e dar sentido à componente histórica do fundamento pátrio alicerçado nas ilhas e não na metrópole. O mito que funcionou como corrector do equilíbrio pendular social e psicológico. Ainda mito criador do espaço da felicidade”. A questão do “fundamento pátrio” é aqui muito ambígua, já que o designativo pátria sofre nestes autores um uso poético polissémico, e não apenas pendular. Serve para designar a terra ou a ilha natais – dos pais –, como serve para referir a África. Quanto ao espaço da felicidade, é essa a vocação original da lenda dos jardins das Hespérides.3. O único poema de Pedro Cardoso inteiramente versando as Hespérides, “Referem lendas antigas…”, foi publicado em 1930, no volume Hespéridas. Trata-se possivelmente de um texto produzido no âmbito dos serões culturais da aristocracia foguense do início do século XX (sobrevivente do regime de morgadio ali implantado e anterior à ascensão dos merkanus). Neste texto, de registo lírico – e não narrativo, como é próprio do mito – Cardoso descreve as Hespérides em tom ortodoxamente eufórico: nelas estão o “marfim”, o “pórfiro”, os “pomos de ouro”, os “claros rios”… Mas este “Paraíso de ventura” é remetido para um tempo e um espaço definitivamente distantes – “Referem lendas antigas / que lá nos confins do mar / as Hespérides ficavam…” (itálicos meus); é um espaço tomado em estéril fixidez, em estatismo inoperante; tanto que o movimento dramático sugerido na última estofe é subitamente suspenso pelas longas reticências com que finda o poema. Das características do mito literário, serão visíveis a sua origem lendária (com um pendor fabuloso que substitui a serpente de Eurípides por um “dragão”) e a possível manifestação do escopo compensatório que Pageaux lê no mito, particularmente nas duas estrofes dedicadas à fertilidade da terra e abundância de águas nestes jardins. Torna-se difícil, porém, detectar neste texto qualquer sintoma daquela empatia identitária e colectiva que o tratamento de um mito deve supostamente comportar. Entendida como exercício poético assente em apenas mais um motivo literário, a representação das Hespérides neste texto de Cardoso tornar-se-á, abusando aqui de uma noção de Marc Augé, uma atopia, um não-lugar, com o qual o cabo-verdiano não estabelecerá, portanto, vínculos identitários decorrentes de um sentido de pertença histórica a um lugar.4. Outros textos ou versos dispersos parecem acentuar a percepção atópica das Hespérides. Num ambíguo “Soneto” que publica no Almanaque Lusitano, Pedro Cardoso atribui a Cabo Verde o riso, a beleza, o canto, a fama… para concluir como são “malditas” e “sofrem” as ilhas arsinária (consequência da incúria dos homens do seu tempo, e não dos condicionalismos geográficos, conforme sugere a exortação final de amor à terra); até onde podemos levar, portanto, o alcance deste epíteto literário? Por outro lado, José Lopes, no alegado afã de cantar as Hespérides, despedaça-as pelas “célebres irmãs” de Cabo Verde – as outras ilhas “pelo Atlântico dispersas”. Por isso, custa-me acompanhar Manuel Ferreira, para quem estas fragmentadas representações das Hespérides se constituíram como uma utopia mítica projectada em unidade proto-nacional do arquipélago..

Fotografia de João Paradela.1. O mito do jardim das Hespérides, um dos longínquos espaços edénicos herdados da cultura clássica, tem as suas descrições literárias mais precisas na Teogonia de Hesíodo (que refere os “formosos, áureos pomos”) e nas odes corais de Eurípides (que menciona as “nascentes de ambrósia” daquela “terra divina, geradora de vida” e a “serpente de fulvo dorso”, guardiã dos pomos de ouro). Depois de, na época clássica, ter deambulado por vários lugares (entre as penínsulas itálica e ibérica, por exemplo), este jardim é situado, ao tempo da expansão portuguesa, por João de Barros, Duarte Pacheco Pereira e, com determinante autoridade, pelo Camões épico, no arquipélago de Cabo Verde (é Maria Helena da Rocha Pereira quem ensina isto).2. José Lopes da Silva e Pedro Monteiro Cardoso, alvitra Manuel Ferreira, terão contactado com o mito hesperitano no elitista e classicizante Seminário-Liceu de S. Nicolau, onde ambos estudaram. E acrescenta, no mesmo artigo de A Aventura Crioula, a respeito dos “dois ou três poemas” daqueles autores versando as Hespérides, que eles se constituem como “o mito que veio preencher um vazio e dar sentido à componente histórica do fundamento pátrio alicerçado nas ilhas e não na metrópole. O mito que funcionou como corrector do equilíbrio pendular social e psicológico. Ainda mito criador do espaço da felicidade”. A questão do “fundamento pátrio” é aqui muito ambígua, já que o designativo pátria sofre nestes autores um uso poético polissémico, e não apenas pendular. Serve para designar a terra ou a ilha natais – dos pais –, como serve para referir a África. Quanto ao espaço da felicidade, é essa a vocação original da lenda dos jardins das Hespérides.3. O único poema de Pedro Cardoso inteiramente versando as Hespérides, “Referem lendas antigas…”, foi publicado em 1930, no volume Hespéridas. Trata-se possivelmente de um texto produzido no âmbito dos serões culturais da aristocracia foguense do início do século XX (sobrevivente do regime de morgadio ali implantado e anterior à ascensão dos merkanus). Neste texto, de registo lírico – e não narrativo, como é próprio do mito – Cardoso descreve as Hespérides em tom ortodoxamente eufórico: nelas estão o “marfim”, o “pórfiro”, os “pomos de ouro”, os “claros rios”… Mas este “Paraíso de ventura” é remetido para um tempo e um espaço definitivamente distantes – “Referem lendas antigas / que lá nos confins do mar / as Hespérides ficavam…” (itálicos meus); é um espaço tomado em estéril fixidez, em estatismo inoperante; tanto que o movimento dramático sugerido na última estofe é subitamente suspenso pelas longas reticências com que finda o poema. Das características do mito literário, serão visíveis a sua origem lendária (com um pendor fabuloso que substitui a serpente de Eurípides por um “dragão”) e a possível manifestação do escopo compensatório que Pageaux lê no mito, particularmente nas duas estrofes dedicadas à fertilidade da terra e abundância de águas nestes jardins. Torna-se difícil, porém, detectar neste texto qualquer sintoma daquela empatia identitária e colectiva que o tratamento de um mito deve supostamente comportar. Entendida como exercício poético assente em apenas mais um motivo literário, a representação das Hespérides neste texto de Cardoso tornar-se-á, abusando aqui de uma noção de Marc Augé, uma atopia, um não-lugar, com o qual o cabo-verdiano não estabelecerá, portanto, vínculos identitários decorrentes de um sentido de pertença histórica a um lugar.4. Outros textos ou versos dispersos parecem acentuar a percepção atópica das Hespérides. Num ambíguo “Soneto” que publica no Almanaque Lusitano, Pedro Cardoso atribui a Cabo Verde o riso, a beleza, o canto, a fama… para concluir como são “malditas” e “sofrem” as ilhas arsinária (consequência da incúria dos homens do seu tempo, e não dos condicionalismos geográficos, conforme sugere a exortação final de amor à terra); até onde podemos levar, portanto, o alcance deste epíteto literário? Por outro lado, José Lopes, no alegado afã de cantar as Hespérides, despedaça-as pelas “célebres irmãs” de Cabo Verde – as outras ilhas “pelo Atlântico dispersas”. Por isso, custa-me acompanhar Manuel Ferreira, para quem estas fragmentadas representações das Hespérides se constituíram como uma utopia mítica projectada em unidade proto-nacional do arquipélago..

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